A ideia gasosa a que me refiro, que parece se desmanchar antes de atingir o estado sólido, é a de uma terceira via constituída sob o signo de uma agregação política para a pacificação racional do país. Aqui outro aviso: não quero com isso insinuar que seria de algum modo possível uma conciliação com a situação a que chegou, desde 2019, o Poder Executivo, como consequência do aventureirismo que prevaleceu nas urnas em 2018. A alusão é à hipótese, de todos os modos desejável, de uma convergência eleitoral dos democratas brasileiros, ao menos no segundo turno das eleições. O que vemos é que a convergência comprovada que há em defesa da democracia e das eleições, não está se traduzindo em convergência, programática ou mesmo pragmática, entre pré-candidaturas.
Nada é ainda líquido e certo a um ano de
eleições livres como têm sido e serão as do Brasil. Mas o cardápio que se
desenha é indigesto para quem quer alívio e desanuviamento do ambiente
predatório, maniqueísta, propício a frequentes ataques abaixo da cintura, no
qual se exerce a política entre nós, desde 2014. Sem ser de nenhum modo uma
jaboticaba brasileira e na contramão dos presságios revigorantes saídos das
eleições municipais de 2020, já se encontra previamente instalada, na arena em
que se dará a disputa presidencial, uma lógica antipolítica que é um nirvana
para novas aventuras míticas.
Bolsonaro, Sergio Moro e Lula são
personagens muito diferentes. Diante do primeiro, um dejeto da subpolítica,
Lula parece de fato um primor de estadista. Diante do guardião do moralismo
antipolítico, o mesmo Lula parece a salvação do saber prático que urdiu as
melhores democracias. Mas os três têm, em comum, a tendência a consolidar no
eleitorado a seguinte percepção: já que só há insetos, prefiro um inseticida
para chamar de meu.
Mas Lula tem um grande diferencial. Não,
não estou falando de sua preocupação com o “social” porque essa é uma
preocupação que não diferencia ninguém. Com variados graus de “sinceridade” ela
é disposição indispensável a qualquer político relevante que atue numa
democracia. Quem não a possuir é, por definição, um suicida eleitoral. Aí está
uma das maiores virtudes da democracia, que é obrigar até autocratas a bajular o
eleitor.
Falo de Lula como uma personagem
internacional. Guardados certos limites, análoga a um pop star. Esse é,
sem dúvida, o seu maior diferencial e pode se tornar o seu melhor argumento
político. No atual momento de (má) inserção do Brasil num mundo necessitado de
concertações, esse argumento pode ter, internamente, eficácia política (e não
apenas eleitoral) equivalente à da Carta aos Brasileiros de 2002, tanto no
sentido de agregação como principalmente na criação de expectativas
tranquilizantes. Coisa para profissionais.
Lula está começando
a conseguir, no plano internacional, a coalizão ampla que tem dificuldade de construir
internamente. No Brasil, por compreensíveis motivos ligados ao contencioso
político nacional de quase toda a década passada, as forças liberais negam-lhe
o papel que suas equivalentes lá fora nele parecem vislumbrar. É visível que
Lula passa a ser internacionalmente considerado, no que tange à política
brasileira, a alternativa até aqui disponível contra o que se pode chamar, para
simplificar, de “esquema Bannon”, ao qual Bolsonaro está associado. O
espraiamento desse esquema, de uma direita potencialmente antissistema, pela
América Latina, foi tratado com propriedade pelo professor Pablo Ortellado (“Ultradireita
sobe na América Latina” – O Globo, 20.11.21), de um modo a compreendermos
que a articulação internacional de Lula tende a transbordar da tradicional esquerda
europeia, que lhe é tradicionalmente simpática, para incorporar forças
liberais. A recepção recente que ele teve de Macron aponta nessa direção.
Na conexão
internacional está se realizando a polarização Lula-Bolsonaro que os
preconizadores da terceira via querem, por motivações nacionais, evitar. A
provável candidatura de Sergio Moro é até aqui uma promessa de complicar aquela
polarização na medida em que dê certo a sua tentativa de ocupar o lugar de Bolsonaro
num confronto final com Lula. No primeiro turno pode até dar certo um discurso
provinciano contra uma corrupção suposta pelo discurso do ex-juiz como um mal
brasileiro. Mas num eventual segundo turno - caso Moro consiga chegar lá – é previsível
sua adesão ou, ao menos, sua indulgência para com a articulação internacional
da extrema-direita.
Moro à
parte, quem quer construir terceira via está convidado a pensar se não corre o
risco de ser provinciano também. Ou, pior, o de acabar, num segundo turno
contra o PT, sendo arrastado, ao menos no mundo das fakenews (que não é
nem de longe monopólio da extrema-direita, ainda que ela ali reine), pela
dimensão internacional da polarização.
Para
evitar esse destino inglório, resta às forças que ainda estejam empenhadas
nessa agregação entender o timing e tornar mais urgente a apresentação
de uma candidatura (não pode ser a de Moro, claro, cujo mister é a desagregação
política) que, na hipótese de chegar ao segundo turno graças à pulverização da
direita voluntarista entre Bolsonaro e Moro, permita a diversificação da
“frente única” que Lula monta, internacionalmente, em torno de si. Talvez assim
setores da política liberal global, notando que passou o perigo imediato das
eleições brasileiras serem vencidas pela extrema-direita mundial, fiquem à
vontade para se entenderem com outras forças políticas nacionais. No momento, o
que é relevante para liberais no mundo, quando olham (se é que olham) para a política
eleitoral brasileira, é saber quem pode reagir com êxito à conversão do país em
cabeça de ponte permanente do anti-globalismo da extrema-direita. Até agora esse
alguém é Lula. Quem se vende como novo anti-Lula saiu do mundo da toga, passou
pelo breu das tocas e chega aos holofotes da guerra plebiscitária sem vacina contra
a extrema direita, muito ao contrário.
Ciro Gomes
pode ser lembrado para negar o que afirmo e mitigar o cenário insípido que
percebo hoje para uma terceira via. Afinal, é um democrata provado e vacinado contra
ovos de serpente, seja o fascista ou o guardiânico. Assim como Lula, ele tem um
diferencial positivo, aos olhos de quem aposta em política racional, que
Bolsonaro e Moro abominam. No caso dele trata-se do esforço continuado que
empreende há anos para apontar com mais clareza um projeto economicamente informado
para o país, expondo-o, mais do que qualquer outro dos seus concorrentes, ao
escrutínio público. É possível discutir a orientação autárquica desse projeto
ou o seu grau de realismo político, mas ao permitir que se faça isso, sua
contribuição já é relevante e aduba racionalmente o ambiente político.
Porém, Ciro
parece provar a cada dia também que exerce um efeito viral contra a ideia de
convergência democrática. A personalidade autárquica transborda seus poros e acha-se
em fogo alto após sua associação ao publicitário João Santana, cuja expertise
em marketing pode igualar, sem superar, sua escolaridade em
cancelamentos. Quem sou eu para discutir se dará eleitoralmente certo? A memória
das eleições de 2014 e 2018 pode indicar que sim, ou que não. Fora de dúvida, porém,
parece estar o potencial que tem Ciro de se somar ao trio de mitos em cena para
ajudar a tornar ainda mais tenso, cruento e rebaixado o nível da disputa
eleitoral. E as barbas de Lula, assim como a vida privada do PT, fariam bem se
ficassem de molho nesse ponto, sendo João Santana quem é e tendo sido o que
foi.
Ao capo
di tutti capi, paladino de taras fascistas de homens toscos (e aqui é
relevante o “recorte de gênero”), ao apologista corporativo da virtude de
guardiães do moralismo antipolítico e ao pai pródigo da pátria que quer retomar
as rédeas do que pensa ser sua casa, junta-se, em quarteto nada amistoso, o
gestor voluntarista que também é um político sem papas na língua, dono de um saber
tecnocrático e solitário, caminho único das pedras, saber vocacionado a
colisões agonísticas. Sua permanência no cardápio (ademais certa, desde sempre)
não desfaz o que afirmei no início. A ideia de terceira via está se esvaindo como
hipótese de agregação política para a pacificação do país.
O PSDB
ainda não é carta posta claramente na mesa, mas talvez já o seja quando a
coluna começar a circular. Na impossibilidade de esperar o resultado das
prévias daquele partido, porque hoje é sábado, arrisco um comentário. Vencendo
o governador João Dória, como prediz, nesse exato momento, a maior parte dos
entendidos em tucanato, o quarteto já em cena ganhará o reforço de uma quinta
estrela, tornando a pacificação ainda mais invisível no horizonte político
imediato. Azeite adicional ao motor que move lógicas plebiscitárias, egocentradas
e oniscientes. Lula assumirá, ao menos provisoriamente, o lugar do mais
moderado nesse quinteto do barulho. Para fazer justiça a Lula, não se
pode acusá-lo de ser centro apenas para europeu ver. Internamente ele também
tenta, mas a distância entre intenção, gesto e sucesso parece aqui maior do que
a que o separa de um alvissareiro acordo com Geraldo Alckmin.
Voltando
ao PSDB, em caso de vitória de Dória nas prévias (ou talvez em qualquer caso) o
partido faltará, outra vez, ao dever de reapresentar ao país o discurso
agregador que Aécio Neves apresentou no segundo turno de 2014. A quem, por
petismo ou lavajatismo (sejam eles conscientes ou não), se indignar com o que
acabei de afirmar, sugiro um esforço franco de memória. Disse Aécio, naquele
segundo turno, que, ao chegar ali, deixava de ser apenas o candidato do PSDB
para ser um candidato de convergência democrática, disposto a nela incluir,
dentre outros, o projeto do PSB de Eduardo Campos, que Marina Silva acabara de
representar, com admirável dignidade, no primeiro turno. Nem um indício ele permitiu
de intolerância, de flerte com a extrema-direita, de preconceito político ou
cultural de qualquer espécie. Um discurso social-democrata clássico, como
poucas vezes o PSDB foi capaz de vocalizar. Chegou muito perto da vitória.
Junto com aquele discurso de campanha estão soterrados os mais recentes ecos de
uma política democrática e unitária, pela qual significativa parte da sociedade
brasileira hoje ainda segue clamando, expondo-se, mais uma vez, a imenso risco
de frustração pelos ouvidos moucos que variadas forças políticas de centro insistem
em fazer a esse clamor.
Tenho
compromisso zero com o destino politicamente mesquinho que Aécio Neves, ao
emular o bolso-dória em busca de aterrisagem em São Paulo, deu ao capital
político acumulado naquela campanha nacional. São conhecidos os seus erros que,
no dizer dos seus adversários, só fizeram confirmar uma profecia. Também não me
vejo fiador de sua sinceridade, ademais, um valor de problemático uso para
analisar política, porque as pedras certamente atiradas na direção de quem o usa
tendem a se neutralizar mutuamente, tal é, no caso, a incapacidade elucidativa
desse valor. O que não temos direito é ao esquecimento politicamente
interessado porque ele é inimigo da lucidez de que precisamos como oxigênio
nessa quadra perigosa, daí ter tirado essa lembrança do baú.
Se ganhar
Leite admito que uma luz se acende, mas não é possível avaliar a capacidade
desse fato reverter a tendência que se aponta. Isso dependerá, em boa parte, do
potencial de retaliação de Dória, governador de São Paulo, do qual ninguém pode
ter a imprudência de duvidar. Assim como não se pode ter a ingenuidade de
imaginar que, existindo essa potência desagregadora, Dória, sendo o político
que é, deixe de colocá-la em movimento.
Impossível prever o que ocorrerá e não
gastarei tempo com o imponderável. Vale assinalar apenas que as possibilidades
porventura remanescentes de uma terceira via por agregação política estarão
depositadas num eventual entendimento positivo entre o PSDB que seguir a
decisão, o MDB que resistir a Lula e a acordos regionais e o PSD, que quer
achar brecha para viabilizar o nome de Rodrigo Pacheco, sem dúvida um
contraponto à melodia voluntarista do atual quarteto, quase quinteto. Quanto ao
União Brasil, a maior, a mais materialmente empoderada e, também, a mais
recente força partidária, não parece calibrar seus passos iniciais por escolhas
na arena presidencial. Sua banda DEM segue entre brumas, virtualmente
paralisada, enquanto a banda PSL cuida do futuro de seus deputados, para muitos
dos quais o barco de Sergio Moro, cruzando as águas turvas da antipolítica
travestida de nova política, pode ensejar pescaria senão igual, próxima à de
2018, a qual fez, desse agregado de mandatos, uma sigla relevante na pequena
política.
De certo,
além disso, há o fato de que teremos todos que mastigar algo, seja qual for a
qualidade do cardápio. Isso é ainda mais importante num momento crítico em que
eleição e voto se tornaram bens de sobrevivência coletiva. Logo, quem gostar de
“grande política” deve monitorar seus narizes para que eles não sugiram dieta
aos respectivos cérebros. Face ao cardápio que se monta, quem tem nariz fisicamente
generoso, como é o caso do imprudente que ora escreve, terá trabalho para
conservar alguma lucidez e certo realismo.
*Cientista político e professor da UFBa.
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