domingo, 21 de novembro de 2021

Paulo Fábio Dantas Neto* - Quatro ou cinco estrelas no céu da política: a realidade chã bate à porta

Tudo se move, nesse novembro ainda distante das eleições de 2022, na direção de que vire água uma ideia que, desde 2020, anima o desenho, ou espectro, da chamada terceira via. Refiro-me não à possibilidade, que considero cada vez mais real, de que uma candidatura se apresente como alternativa à de Bolsonaro em condições de enfrentar, competitivamente, a de Lula, num eventual segundo turno. Tão certo é esse perigo para o PT (atenção, digo que certo é o perigo, não o êxito dessa provável candidatura antipetista) que os movimentos do ex-presidente, internamente e no plano internacional, dirigem-se, paulatinamente, mas cada mais resolutamente, a uma articulação ao centro que descortina o óbvio objetivo de liquidar a fatura no primeiro turno. Se há chances, não é o tema aqui.

A ideia gasosa a que me refiro, que parece se desmanchar antes de atingir o estado sólido, é a de uma terceira via constituída sob o signo de uma agregação política para a pacificação racional do país. Aqui outro aviso: não quero com isso insinuar que seria de algum modo possível uma conciliação com a situação a que chegou, desde 2019, o Poder Executivo, como consequência do aventureirismo que prevaleceu nas urnas em 2018. A alusão é à hipótese, de todos os modos desejável, de uma convergência eleitoral dos democratas brasileiros, ao menos no segundo turno das eleições. O que vemos é que a convergência comprovada que há em defesa da democracia e das eleições, não está se traduzindo em convergência, programática ou mesmo pragmática, entre pré-candidaturas.

Nada é ainda líquido e certo a um ano de eleições livres como têm sido e serão as do Brasil. Mas o cardápio que se desenha é indigesto para quem quer alívio e desanuviamento do ambiente predatório, maniqueísta, propício a frequentes ataques abaixo da cintura, no qual se exerce a política entre nós, desde 2014. Sem ser de nenhum modo uma jaboticaba brasileira e na contramão dos presságios revigorantes saídos das eleições municipais de 2020, já se encontra previamente instalada, na arena em que se dará a disputa presidencial, uma lógica antipolítica que é um nirvana para novas aventuras míticas.  

Bolsonaro, Sergio Moro e Lula são personagens muito diferentes. Diante do primeiro, um dejeto da subpolítica, Lula parece de fato um primor de estadista. Diante do guardião do moralismo antipolítico, o mesmo Lula parece a salvação do saber prático que urdiu as melhores democracias. Mas os três têm, em comum, a tendência a consolidar no eleitorado a seguinte percepção: já que só há insetos, prefiro um inseticida para chamar de meu.

Mas Lula tem um grande diferencial. Não, não estou falando de sua preocupação com o “social” porque essa é uma preocupação que não diferencia ninguém. Com variados graus de “sinceridade” ela é disposição indispensável a qualquer político relevante que atue numa democracia. Quem não a possuir é, por definição, um suicida eleitoral. Aí está uma das maiores virtudes da democracia, que é obrigar até autocratas a bajular o eleitor.

Falo de Lula como uma personagem internacional. Guardados certos limites, análoga a um pop star. Esse é, sem dúvida, o seu maior diferencial e pode se tornar o seu melhor argumento político. No atual momento de (má) inserção do Brasil num mundo necessitado de concertações, esse argumento pode ter, internamente, eficácia política (e não apenas eleitoral) equivalente à da Carta aos Brasileiros de 2002, tanto no sentido de agregação como principalmente na criação de expectativas tranquilizantes. Coisa para profissionais.

Lula está começando a conseguir, no plano internacional, a coalizão ampla que tem dificuldade de construir internamente. No Brasil, por compreensíveis motivos ligados ao contencioso político nacional de quase toda a década passada, as forças liberais negam-lhe o papel que suas equivalentes lá fora nele parecem vislumbrar. É visível que Lula passa a ser internacionalmente considerado, no que tange à política brasileira, a alternativa até aqui disponível contra o que se pode chamar, para simplificar, de “esquema Bannon”, ao qual Bolsonaro está associado. O espraiamento desse esquema, de uma direita potencialmente antissistema, pela América Latina, foi tratado com propriedade pelo professor Pablo Ortellado (“Ultradireita sobe na América Latina” – O Globo, 20.11.21), de um modo a compreendermos que a articulação internacional de Lula tende a transbordar da tradicional esquerda europeia, que lhe é tradicionalmente simpática, para incorporar forças liberais. A recepção recente que ele teve de Macron aponta nessa direção.

Na conexão internacional está se realizando a polarização Lula-Bolsonaro que os preconizadores da terceira via querem, por motivações nacionais, evitar. A provável candidatura de Sergio Moro é até aqui uma promessa de complicar aquela polarização na medida em que dê certo a sua tentativa de ocupar o lugar de Bolsonaro num confronto final com Lula. No primeiro turno pode até dar certo um discurso provinciano contra uma corrupção suposta pelo discurso do ex-juiz como um mal brasileiro. Mas num eventual segundo turno - caso Moro consiga chegar lá – é previsível sua adesão ou, ao menos, sua indulgência para com a articulação internacional da extrema-direita.

Moro à parte, quem quer construir terceira via está convidado a pensar se não corre o risco de ser provinciano também. Ou, pior, o de acabar, num segundo turno contra o PT, sendo arrastado, ao menos no mundo das fakenews (que não é nem de longe monopólio da extrema-direita, ainda que ela ali reine), pela dimensão internacional da polarização. 

Para evitar esse destino inglório, resta às forças que ainda estejam empenhadas nessa agregação entender o timing e tornar mais urgente a apresentação de uma candidatura (não pode ser a de Moro, claro, cujo mister é a desagregação política) que, na hipótese de chegar ao segundo turno graças à pulverização da direita voluntarista entre Bolsonaro e Moro, permita a diversificação da “frente única” que Lula monta, internacionalmente, em torno de si. Talvez assim setores da política liberal global, notando que passou o perigo imediato das eleições brasileiras serem vencidas pela extrema-direita mundial, fiquem à vontade para se entenderem com outras forças políticas nacionais. No momento, o que é relevante para liberais no mundo, quando olham (se é que olham) para a política eleitoral brasileira, é saber quem pode reagir com êxito à conversão do país em cabeça de ponte permanente do anti-globalismo da extrema-direita. Até agora esse alguém é Lula. Quem se vende como novo anti-Lula saiu do mundo da toga, passou pelo breu das tocas e chega aos holofotes da guerra plebiscitária sem vacina contra a extrema direita, muito ao contrário.

Ciro Gomes pode ser lembrado para negar o que afirmo e mitigar o cenário insípido que percebo hoje para uma terceira via. Afinal, é um democrata provado e vacinado contra ovos de serpente, seja o fascista ou o guardiânico. Assim como Lula, ele tem um diferencial positivo, aos olhos de quem aposta em política racional, que Bolsonaro e Moro abominam. No caso dele trata-se do esforço continuado que empreende há anos para apontar com mais clareza um projeto economicamente informado para o país, expondo-o, mais do que qualquer outro dos seus concorrentes, ao escrutínio público. É possível discutir a orientação autárquica desse projeto ou o seu grau de realismo político, mas ao permitir que se faça isso, sua contribuição já é relevante e aduba racionalmente o ambiente político.

Porém, Ciro parece provar a cada dia também que exerce um efeito viral contra a ideia de convergência democrática. A personalidade autárquica transborda seus poros e acha-se em fogo alto após sua associação ao publicitário João Santana, cuja expertise em marketing pode igualar, sem superar, sua escolaridade em cancelamentos. Quem sou eu para discutir se dará eleitoralmente certo? A memória das eleições de 2014 e 2018 pode indicar que sim, ou que não. Fora de dúvida, porém, parece estar o potencial que tem Ciro de se somar ao trio de mitos em cena para ajudar a tornar ainda mais tenso, cruento e rebaixado o nível da disputa eleitoral. E as barbas de Lula, assim como a vida privada do PT, fariam bem se ficassem de molho nesse ponto, sendo João Santana quem é e tendo sido o que foi.   

Ao capo di tutti capi, paladino de taras fascistas de homens toscos (e aqui é relevante o “recorte de gênero”), ao apologista corporativo da virtude de guardiães do moralismo antipolítico e ao pai pródigo da pátria que quer retomar as rédeas do que pensa ser sua casa, junta-se, em quarteto nada amistoso, o gestor voluntarista que também é um político sem papas na língua, dono de um saber tecnocrático e solitário, caminho único das pedras, saber vocacionado a colisões agonísticas. Sua permanência no cardápio (ademais certa, desde sempre) não desfaz o que afirmei no início. A ideia de terceira via está se esvaindo como hipótese de agregação política para a pacificação do país.

O PSDB ainda não é carta posta claramente na mesa, mas talvez já o seja quando a coluna começar a circular. Na impossibilidade de esperar o resultado das prévias daquele partido, porque hoje é sábado, arrisco um comentário. Vencendo o governador João Dória, como prediz, nesse exato momento, a maior parte dos entendidos em tucanato, o quarteto já em cena ganhará o reforço de uma quinta estrela, tornando a pacificação ainda mais invisível no horizonte político imediato. Azeite adicional ao motor que move lógicas plebiscitárias, egocentradas e oniscientes. Lula assumirá, ao menos provisoriamente, o lugar do mais moderado nesse quinteto do barulho. Para fazer justiça a Lula, não se pode acusá-lo de ser centro apenas para europeu ver. Internamente ele também tenta, mas a distância entre intenção, gesto e sucesso parece aqui maior do que a que o separa de um alvissareiro acordo com Geraldo Alckmin.

Voltando ao PSDB, em caso de vitória de Dória nas prévias (ou talvez em qualquer caso) o partido faltará, outra vez, ao dever de reapresentar ao país o discurso agregador que Aécio Neves apresentou no segundo turno de 2014. A quem, por petismo ou lavajatismo (sejam eles conscientes ou não), se indignar com o que acabei de afirmar, sugiro um esforço franco de memória. Disse Aécio, naquele segundo turno, que, ao chegar ali, deixava de ser apenas o candidato do PSDB para ser um candidato de convergência democrática, disposto a nela incluir, dentre outros, o projeto do PSB de Eduardo Campos, que Marina Silva acabara de representar, com admirável dignidade, no primeiro turno. Nem um indício ele permitiu de intolerância, de flerte com a extrema-direita, de preconceito político ou cultural de qualquer espécie. Um discurso social-democrata clássico, como poucas vezes o PSDB foi capaz de vocalizar. Chegou muito perto da vitória. Junto com aquele discurso de campanha estão soterrados os mais recentes ecos de uma política democrática e unitária, pela qual significativa parte da sociedade brasileira hoje ainda segue clamando, expondo-se, mais uma vez, a imenso risco de frustração pelos ouvidos moucos que variadas forças políticas de centro insistem em fazer a esse clamor. 

Tenho compromisso zero com o destino politicamente mesquinho que Aécio Neves, ao emular o bolso-dória em busca de aterrisagem em São Paulo, deu ao capital político acumulado naquela campanha nacional. São conhecidos os seus erros que, no dizer dos seus adversários, só fizeram confirmar uma profecia. Também não me vejo fiador de sua sinceridade, ademais, um valor de problemático uso para analisar política, porque as pedras certamente atiradas na direção de quem o usa tendem a se neutralizar mutuamente, tal é, no caso, a incapacidade elucidativa desse valor. O que não temos direito é ao esquecimento politicamente interessado porque ele é inimigo da lucidez de que precisamos como oxigênio nessa quadra perigosa, daí ter tirado essa lembrança do baú. 

Se ganhar Leite admito que uma luz se acende, mas não é possível avaliar a capacidade desse fato reverter a tendência que se aponta. Isso dependerá, em boa parte, do potencial de retaliação de Dória, governador de São Paulo, do qual ninguém pode ter a imprudência de duvidar. Assim como não se pode ter a ingenuidade de imaginar que, existindo essa potência desagregadora, Dória, sendo o político que é, deixe de colocá-la em movimento.

 Impossível prever o que ocorrerá e não gastarei tempo com o imponderável. Vale assinalar apenas que as possibilidades porventura remanescentes de uma terceira via por agregação política estarão depositadas num eventual entendimento positivo entre o PSDB que seguir a decisão, o MDB que resistir a Lula e a acordos regionais e o PSD, que quer achar brecha para viabilizar o nome de Rodrigo Pacheco, sem dúvida um contraponto à melodia voluntarista do atual quarteto, quase quinteto. Quanto ao União Brasil, a maior, a mais materialmente empoderada e, também, a mais recente força partidária, não parece calibrar seus passos iniciais por escolhas na arena presidencial. Sua banda DEM segue entre brumas, virtualmente paralisada, enquanto a banda PSL cuida do futuro de seus deputados, para muitos dos quais o barco de Sergio Moro, cruzando as águas turvas da antipolítica travestida de nova política, pode ensejar pescaria senão igual, próxima à de 2018, a qual fez, desse agregado de mandatos, uma sigla relevante na pequena política.

De certo, além disso, há o fato de que teremos todos que mastigar algo, seja qual for a qualidade do cardápio. Isso é ainda mais importante num momento crítico em que eleição e voto se tornaram bens de sobrevivência coletiva. Logo, quem gostar de “grande política” deve monitorar seus narizes para que eles não sugiram dieta aos respectivos cérebros. Face ao cardápio que se monta, quem tem nariz fisicamente generoso, como é o caso do imprudente que ora escreve, terá trabalho para conservar alguma lucidez e certo realismo.  

*Cientista político e professor da UFBa.

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