O Estado de S. Paulo
Os socialistas de hoje, particularmente no Brasil, deveriam rever as relações com o extraordinariamente complexo mundo do liberalismo político
Não é bem o caso de nos sentirmos
irremediavelmente condenados ou nos imaginarmos como em território ocupado,
vivendo passivamente o programa de destruição nada criativa que nos foi imposto
a partir das últimas eleições presidenciais. Sabemos, desde a “resistível
ascensão” de Donald Trump em 2016, que nenhuma democracia moderna, nem mesmo a
mais antiga delas, está a salvo da investida de demagogos que pareceriam
inverossímeis há apenas uma geração ou até menos.
Não se trata de autocomplacência, mas sim
da percepção de estar em meio a um fenômeno que nos ultrapassa. Párias,
certamente, mas entre pares, bastando mencionar o nutrido grupo de autoritários
que, um pouco por toda parte, venceram eleições e, a seguir, passaram a minar
instituições do Estado e a simplificar em proveito próprio a riqueza e a
pluralidade da sociedade civil.
Sem querer desviar minimamente o foco do
drama principal, é preciso lembrar ações e consignas que balizaram há pouco
mais de duas décadas o chamado “socialismo do século 21”. Lideranças populares
ou militares de patentes intermediárias lançaram-se à política em diferentes
contextos nacionais, marcados, todos eles, por um liberalismo restrito ou oligárquico.
A promessa era a de varrer “tudo o que está aí” e inaugurar o imaginado poder
popular direto.
De fato, num país após o outro, em sequência inquietante, à primeira vitória presidencial seguiram-se assembleias constituintes que consagraram tanto o novo capo providencial quanto seu partido, o qual, se não era único, passaria a controlar paulatinamente as alavancas de comando político e econômico. Por certo, uma contrafação do espírito bolchevique original supostamente aggiornato para o novo século.
Com as adaptações que cada caso requer e
que a algaravia nas redes sociais exige, a estratégia revolucionarista viria a
mudar de lado, a ponto de agora se poder apontar a existência de bizarros
“bolcheviques de direita”, seguindo uma pista dada por Anne Applebaum. Os novos
atores revolucionários, algozes do que chamam de establishment, têm sido
capazes, entre outros “feitos”, de contestar ferozmente as eleições americanas
e o “regime de Biden” ou levar a efeito contundentes ofensivas subversivas,
como a que, no Brasil, culminou no 7 de setembro passado. Sem falar nos casos
exemplares – do ponto de vista de tais subversivos – de Polônia ou Hungria,
realidades em que se instalaram com aparente solidez e em que ditam regras
práticas de dominação e imposturas conceituais, como a da “democracia
iliberal”.
Há fraturas curiosas na variedade destes
“leninistas” de novo tipo. Uma delas, a tensão entre a evidente vocação
minoritária, que só um golpe da fortuna, em atmosfera plebiscitária, pode
transformar em vitória eleitoral, e a certeza dogmática de encarnar o espírito
do tempo, que os faz singularmente audaciosos. Outra, aquela entre a crueza
material dos objetivos perseguidos, condensados na restauração dos instintos
animais do capitalismo, e a manipulação obscena de sentimentos religiosos,
colocando-os a serviço de forças avessas não só ao socialismo, seja qual for o
sentido que se dê ao termo, como também ao liberalismo clássico e, em geral,
aos processos característicos da modernidade. Um anticomunismo caricato completa
o baú de ossos: caricato, pois sem razão de ser nem objeto definido, a menos
que se considere Cuba como potência ameaçadora ou a China como líder de uma
revolução mundial em andamento.
Significativa a contraposição frontal que
volta a se dar entre, por um lado, a extrema direita e, por outro, duas
correntes essenciais da modernidade ocidental, a saber, o liberalismo e o
socialismo, na diversidade das suas manifestações. Em condições diferentes, há
quase cem anos estas duas últimas tendências, com inclusão dos comunistas no
grupo socialista, traçaram um complicado percurso até se juntarem na grande
frente antifascista para combater a extrema direita de então. A bravura dos
comunistas na luta antifascista constituiu um fator relevantíssimo na recriação
do mundo no pós-guerra, ainda que não os pudesse redimir da incapacidade de
renovarem a própria cultura política e de se afastarem das realidades nada
atraentes – muito pelo contrário! – do que viria a se chamar socialismo real.
Os socialistas de hoje, particularmente no
Brasil, ao examinar este passado e ao avaliar as possibilidades do presente,
deveriam rever as relações com o mundo extraordinariamente complexo do
liberalismo político. A bem da verdade, os social-democratas, na generalidade
dos países ocidentais, há muito fizeram a transição para o universo
democrático, afastando-se de tentações autoritárias e tornando-se um sólido
pilar dos regimes constitucionais.
Seria tolice ignorar as pulsões
autoritárias da esquerda terceiro-mundista, as mesmas que, como dissemos,
envenenaram o termo “socialismo” no início do século. Mais tolice, ainda,
deixar-se dominar por elas, renunciando ao papel essencial de defesa da
República e do próprio País, talvez na sua hora mais difícil.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil
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