O Globo
Dubai e Jair foram feitos um para o outro.
É que a monarquia absolutista do emirado fincado no deserto reconhece de longe
o mandão de passagem que se deixará seduzir pelo kit ostentação da casa: luxo,
mordomias jamais imaginadas, arroubo tecnológico e paisagem futurista. Era tudo
do que Bolsonaro precisava para poder circular sem olhar de soslaio, à
espreita, como quem teme a própria sombra. Sob essa ótica, deu tudo certo,
tanto nos Emirados Árabes Unidos (dos quais Dubai, mesmo não sendo a capital,
desempenha o papel mais cintilante) como no Qatar e no Bahrein, igualmente
regados a petrodólares. Dessa comitiva oficial à prova de qualquer protesto não
quiseram faltar a primeira-dama, dois dos filhos-zero do presidente e o maior
número de áulicos de Brasília.
Mas cinco dias em tapetes voadores passam depressa, e o Brasil real estava a sua espera. Como primeira lufada indigesta, a inevitável comparação entre seu giro estéril-nababesco e a acolhida recebida por Luiz Inácio Lula da Silva na Europa, como líder brasileiro que vale a pena cortejar. A tríade inflação-desemprego-fome, a nova rodada de pesquisas que teimam em não lhe dar trégua para 2022, a queixada trabalhada do desafeto Sergio Moro para lhe estragar o noticiário, o “orçamento secreto” encrencado, enfim, nada a festejar no país por ele governado.
Exceto, talvez, um relatório elaborado pela
Universidade de Gotemburgo, na Suécia, que aponta para um declínio acentuado da
democracia liberal no mundo. Entre as 202 nações analisadas no relatório
intitulado “Democracia 2021”, o Brasil ocupa o quarto lugar entre os países em
processo de autocratização, terminologia empregada no levantamento — logo atrás
de Polônia, Hungria e Turquia. Na década 2010-2020 analisada pelo estudo, a fatia
da população mundial que vive sob regimes autocráticos saltou de 48% para 68%,
e o número de países onde a liberdade de expressão está ameaçada quase dobrou
nos últimos três anos. Pelo relatório, os 213 milhões de brasileiros se somam
aos 34% da população mundial que vive em países autocratizantes. (Uma década
atrás, esse percentual mundial não ultrapassava 6% dos bípedes).
É injusto resumir em poucas frases
levantamento de tamanha complexidade e envergadura, fruto do trabalho de mais
de 3.500 estudiosos. Mas é possível atribuir aos três anos de governo Bolsonaro
o enfraquecimento mais acentuado das instituições nacionais. Difícil não
constatar que é deliberada a desconstrução da nação brasileira pelo presidente.
E que, através de lente tão enviesada, o próprio ocupante do Palácio da
Alvorada considere mérito seu o resultado do estudo de Gotemburgo.
Foi em Dubai que Jair Bolsonaro se
autocongratulou pela embicada oficial dada ao Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem), que se inicia neste domingo e terá o menor número de inscritos em 14
anos — serão pouco mais de 4 milhões de aspirantes ao ansiado ensino superior
gratuito. As questões agora “começam a ter a cara do governo”, vangloriou-se o
presidente:
— Ninguém precisa ficar preocupado. Aquelas
questões absurdas que caíam no passado, que não tinha nada a ver com nada.
E prognosticou:
—O Milton [ministro da Educação Milton
Ribeiro] é uma pessoa séria, responsável, é do ramo. Ele mandou mensagem para
mim agora há pouco, diz que a prova do Enem vai correr na mais absoluta
tranquilidade.
Noves fora o pedido de exoneração de 37
servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep),
responsável pela elaboração das provas; noves fora o mal explicado acesso de um
policial à sala mais segura e restrita do exame; noves fora a denúncia de
irregularidades no Inep enviada ao Tribunal de Contas e à Controladoria-Geral
da União; noves fora o caos geral, é a “tranquilidade absoluta” de Jair em
Dubai que melhor retrata o desprezo do presidente pelos sonhos de toda uma
geração de jovens brasileiros.
Foi numa recente reportagem de Luigi Mazza
na revista Piauí que o Brasil tomou conhecimento dos primórdios do Enem “com
cara deste governo”. O repórter teve acesso a um documento de 2019, em que
servidores do Inep solicitavam ao então presidente do instituto, Marcus
Vinícius Rodrigues, a “reabilitação” de 38 das 66 questões que haviam sido
censuradas. O crivo fora obra de uma equipe de três pessoas montada a pedido do
próprio Bolsonaro no primeiro ano de governo e destinava-se a analisar as
questões do ponto de vista ideológico. Municiado dos carimbos “sim” e “não”, o
grupúsculo vetou desde uma letra de música da cantora Madonna sobre gravidez
adolescente até uma poesia de Manoel de Barros, por “ferir sentimento religioso
e a liberdade de crença”, passando por uma tira do cartunista Quino e, como não
poderia deixar de ser, um Chico Buarque que fala em “ditadura”. Vale a pena ler
na íntegra a reportagem intitulada “Mafalda é reprovada no Enem” para entender
o tamanho do desmonte histórico-cultural em marcha.
Recorro novamente à espertíssima atriz Mary
Astor: “Uma pessoa sem memória ou é criança ou é amnésica, e um país sem
memória não é criança nem amnésico. Mas também não é um país”. Continua
valendo.
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