sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Vinicius Torres Freire - A morte das promessas

Folha de S. Paulo

Teto caído soterra Guedes, Moro foi acusado de negocista e Bolsolão revive velha política

O liberalismo de Paulo Guedes sempre foi caricatura. Na noite de quarta-feira, essa fantasia grotesca estrebuchava sob as ruínas do teto de gastos, a grande obra da coalizão liberal que depôs Dilma Rousseff. Na mesma noite, Jair Bolsonaro dizia à Polícia Federal que Sérgio Moro é um tipo negocista, que troca um pedido presidencial por uma nomeação para o Supremo.

No Congresso, a derrubada do teto era conduzida pelo centrão, com auxílio de ministros, com votos sendo cabalados por meio da promessa de emendas parlamentares. A "velha política" sapateava e pedalava sobre a "responsabilidade fiscal" agonizante.

O centrão marombado pelo bolsonarismo contribuiu para o enterro da Lava Jato e ajuda Bolsonaro a rasgar os trapos da sua fantasia liberal, lavajatismo e liberalismo que serviram de desculpa para elites várias subirem na barca do inferno (em última instância, os motivos eram mesmo o antipetismo, a recusa de pagar mais impostos e a acomodação habitual com a incivilidade).

De certo modo, foi uma noite de glória para o capitão das "fake news" e outras patranhas. As maiores promessas da campanha de 2018 brilhavam como mentiras peladas no palco da farsa bolsonarista.

Coadjuvante menor, lá também estava o PSDB, que fazia o papel de cuspir na "responsabilidade fiscal" enquanto Bolsonaro, Guedes e o centrão esfaqueavam esse unicórnio do liberalismo fantástico brasileiro. Faz um quarto de século, o PSDB foi um partido de quadros da elite. Em 2014-15, deu o pontapé inicial em Dilma Rousseff —vinha com uma conversa moralizante a fim de abafar o que era de fato a raiva de perder tanta eleição. Agora, é uma espécie de PP do centro-sul do Brasil. Não ficou nada no lugar. Por mal falar nisso, seu compadre, o DEM, ex-PFL, um dia Arena, volta às origens como ajudante de ordens da extrema direita, a tal União Brasil.

As mudanças mais relevantes para que o país venha a ter uma economia de mercado funcional eram conversa mole do bolsonarismo e da maioria das corporações empresariais que o apoiaram. Sem também reforma tributária e abertura comercial não haverá concorrência e aumento bastante de produtividade, outro nome de crescimento econômico. Mas a pimenta da reforma é boa nos olhos dos outros, não na fuça do capitalismo de compadres e de favor. A zorra macroeconômica acaba com o resto de perspectiva de aumento de renda. O liberalismo à brasileira ataca outra vez.

Esse vexame sórdido faz lembrar de Jânio Quadros e de Fernando Collor, outras Mulas de Troia em que a direita chegou ao poder. Sim, eram outros Brasis, mas esses tipos surfaram também o mesmo moralismo santarrão e autoritário que ajudou a levar Bolsonaro ao poder.

A direita pode dizer que preferia um Carlos Lacerda ou, vá lá, um Geraldo Alckmin. Na prática e na hipótese mais benevolente, não faz mais do que aderir a picaretagens como a vassoura janista, o caçador de marajás ou o capitão da reação, quando não os financia ou propagandeia com gosto.

As consequências de Bolsonaro são piores. Além de normalizar o autoritarismo, o reacionarismo, a cafajestagem e a tolerância a crimes de responsabilidade, soltou a cordinha do partido militar, agora também fisiológico, e o fantasma da religião como assunto de Estado, que mal e muito mal estavam presos na casinha.

A fraude imensa ficou muito evidente no espetáculo de desnudamento de mentiras desta semana, mas não se trata de um show pontual em uma noite escura da alma deste país. No Brasil, é uma história muito velha que o liberalismo realmente existente, o liberex, encarne na prática em monstruosidades. Aconteceu de novo.

 

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