Folha de S. Paulo
O antiamericanismo explica a indesculpável
conivência com ditaduras de esquerda
Aplaudido pelas principais lideranças da
social-democracia europeia e recebido
em Paris como chefe de Estado pelo presidente centrista Emmanuel
Macron, Lula definiu em sua recente turnê uma agenda internacional para o país
léguas à frente de seu próprio partido e de quaisquer que venham a ser seus
adversários em 2022.
No Parlamento Europeu, foi irretocável ao associar o imperativo do combate à crise do clima à redução da pobreza e das desigualdades no mundo. Entrelaçando esses temas —que requerem renovada cooperação multilateral e compromisso com a justiça ambiental—, esboçou o que seria a contribuição específica do Brasil pós-Bolsonaro ao debate dos desafios globais. Ao fazê-lo, mostrou fina sintonia com as vozes do mundo, escandalosamente ausente da retórica governista.
Só que, no início da mesma sessão em que
leu o discurso nota 10, improvisou uma defesa delirante do que seria o direito
dos presidentes à reeleição ilimitada —perguntando por que a chanceler
alemã Angela
Merkel podia permanecer 16 anos no poder, enquanto ao então presidente
boliviano, Evo Morales, não foi dado aspirar a um quarto mandato (vedado pela
Constituição de seu país). Dias depois, tornou a bater na mesma tecla, ao citar
ditador nicaraguense Daniel Ortega.
Antipetistas se apressaram a apontar o dedo
para a cumplicidade de Lula com as ditaduras de Manágua e Caracas —e, por
supuesto, Havana—— como prova cabal do descompromisso do líder e de seus
liderados com os valores e as regras democráticas. Embora, nesse quesito, a sua
conduta tenha sido impecável, não só nos 13 anos em que o PT esteve no poder,
mas também durante o impeachment de Dilma Rousseff, na contestada prisão de seu
padrinho e na disputa eleitoral de 2018.
É mais provável que a indesculpável
conivência com ditaduras de esquerda na região venha de um comum e arraigado
antiamericanismo —por efeito de uma certa visão do sistema internacional
durante e depois da Guerra Fria.
Foi quando o Brasil tratou de afirmar
autonomia externa, distanciando-se dos EUA e se aliando a seus opositores
dentro e fora da América Latina. Pronunciado na esquerda, o antiamericanismo a
ela não se circunscreve —é traço comum aos nacionalistas em geral. Persistiu no
plano retórico mesmo quando as relações de Brasília com Washington amadureceram
sob salutar pragmatismo.
Mais do que nunca, o antiamericanismo
mal-ajambrado de nada serve para lidar com ameaças globais em um mundo onde a
China é potência ascendente com forte presença econômica e comercial no país.
Uma esquerda contemporânea não tem por que esposá-lo.
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