O Globo
A intensa movimentação no cenário político
nas últimas semanas sugere que a entrada de Sergio Moro (Podemos) na corrida
presidencial tem potencial para alterar a correlação de forças na eleição. Mas
o crescente interesse pela candidatura também o colocou bem cedo diante da
pergunta que o acompanhará enquanto tiver alguma chance no pleito: de que forma
Moro lidará com o Congresso, caso seja eleito? Que tipo de negociação o ex-juiz
da Lava-Jato pretende fazer com as lideranças de partidos que foram alvo da
operação conduzida por ele?
Como pretende convencer os eleitores de que, se eleito, terá mais sucesso do que quando era ministro da Justiça na aprovação de seus projetos? Qual a garantia de que a relação conflituosa entre o ex-juiz e a classe política não paralisará um eventual governo seu (e o país) por mais quatro anos?
Sempre que confrontado com essas questões,
Moro recorre a declarações de livro-texto. Numa reunião com investidores da
corretora XP, em São Paulo, afirmou que é um “homem do diálogo” e que considera
possível negociar em torno de projetos. De acordo com ele, o absoluto fracasso
de Jair Bolsonaro em ter uma relação livre do fisiologismo e do toma lá dá cá
com o Parlamento é fruto da falta de liderança do presidente.
Também disse que, embora não vá abandonar o
combate à corrupção, tem consciência de que o papel de um presidente da
República é garantir a governabilidade. Numa entrevista à Bloomberg, falou que
“há pessoas boas no Centrão” e que “dentro de cada partido tem bons indivíduos que
podem somar com projeto e diálogo republicano”.
Não há dúvidas de que um governo
republicano e democrático pressupõe uma relação de respeito entre Legislativo,
Executivo e Judiciário, nem de que não há nada de intrinsecamente errado em
fazer coalizões políticas — desde que sejam limpas — para governar. Mas não
deixa de ser irônico que um personagem que se fez popular combatendo o
“sistema” agora tenha como uma de suas missões provar que poderá conviver
harmonicamente com esse mesmo sistema em nome da governabilidade.
É verdade que o discurso antissistema
perdeu o apelo e a credibilidade desde 2018. O momento histórico é outro.
Bolsonaro, que se elegeu prometendo governar diretamente com o povo e dar uma
banana ao “sistema”, foi fagocitado por ele e por seu orçamento secreto. Lula,
por sua vez, conduziu seus governos do mensalão ao petrolão, e não consta que
teria problemas em se relacionar com esse mesmo Congresso. O próprio Moro se
viu acuado pelo caso Vaza-Jato, aderiu ao governo Bolsonaro e perdeu a aura de
herói impoluto.
Nessa troca de pele de juiz para político,
Moro diz que venderá um “sonho” ao país e se propõe a ser diferente dos
principais competidores. Como ele pretende fazer isso, não se sabe. O que ele
diz no livro que acaba de lançar, “Sergio Moro contra o sistema da corrupção”,
não ajuda a dissipar as dúvidas.
Ao relatar sua experiência no governo, Moro
diz que mais de uma vez acreditou que Bolsonaro cumpriria a promessa de punir
Flávio e Fabrício Queiroz, se fosse preciso. Enumera situações em que o
presidente deu provas de que o compromisso com o combate à corrupção era tão
fake quanto algumas das notícias que espalhou na campanha eleitoral. “Se não
vai ajudar, não atrapalhe”, teria dito Bolsonaro quando Moro lhe pediu para
ajudar a derrubar a liminar de Dias Toffoli que suspendeu todas as
investigações do Coaf, incluindo as que flagraram a rachadinha de Flávio e
Queiroz.
É o ex-juiz da Lava-Jato quem escreve: “Por
uma questão pessoal, o presidente pedia a mim que ignorasse aquela séria ameaça
ao sistema nacional de prevenção à lavagem de dinheiro”. Ainda assim, Moro
ficou no governo, aguentando mais humilhações. Engoliu o abandono de Bolsonaro
ao pacote anticrime, aceitou trocar um superintendente da Polícia Federal e só
saiu quando o próprio presidente tornou sua permanência inviável.
Difícil acreditar que alguém que diz ter o
couro grosso e está habituado a situações difíceis, como Moro, tenha realmente
sido tão ingênuo com Bolsonaro como ele diz que foi. É ele mesmo quem admite
que, enquanto pôde, ficou em silêncio. Hoje, diz que errou ao aceitar o convite
de Bolsonaro. Não se pode saber o que mais o ex-ministro viu no governo que não
contou, nem qual sua solução para lidar com o “sistema” sem confrontá-lo, como
fez na Lava-Jato, ou se calar, como fez com Bolsonaro.
Mas é certo que, enquanto persistir a
contradição entre o que Moro diz que fará e o que de fato fez no governo, ele
continuará sendo um candidato a presidente com pés de barro.
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