O Globo
André Mendonça estava irreconhecível na sabatina e não apenas pelo novo penteado. Escolhido por ser evangélico e tendo prometido ao presidente orar no início das sessões, defendeu, com argumento até religioso, o Estado laico. Autor de ações contra jornalistas, com base na Lei de Segurança Nacional, garantiu não ter perseguido a imprensa. Tendo chamado de “profeta” um adorador de ditaduras, fez profissão de fé na democracia, como primeira de todas as conquistas. Assim, dissimulando, apresentou-se o candidato a ministro, que, aprovado no fim do dia, ficará por 27 anos no Supremo Tribunal Federal.
Em alguns momentos preferiu uma estratégia
cômoda. Sobre a liberação de armas, que tem sido uma obsessão no governo
Bolsonaro, disse que pode vir a julgar o tema no Supremo, por isso não
adiantaria o que pensa. Usou o mesmo truque, quando a relatora Eliziane Gama
(Cidadania-MA) perguntou sobre o marco temporal. Alegou que sempre defendeu os
indígenas, o que ninguém no governo Bolsonaro fez até o momento. Nem ele, nem
seu sucessor. Tampouco seu antecessor Sergio Moro. O Ministério da Justiça
nesta administração não fez um único gesto por demarcação de terra indígena e
mantém uma Funai aparelhada com bolsonaristas, que teve, inclusive, um
missionário no departamento de índios isolados.
Em abril, ao defender a abertura dos
templos, o então advogado-geral da União fez uma defesa baseada no texto
bíblico e usando argumentos religiosos. Disse que os fiéis estavam dispostos a
morrer pela “liberdade de culto”. Não se tratava, claro, de ameaça à liberdade
de culto, mas de medida protetiva da saúde coletiva. Na sustentação, tropeçou
curiosamente na própria Bíblia, ao citar um versículo de Mateus. “Onde
estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estarei eu no meio deles”. Ora,
isso ilumina a ideia de que não é preciso estar na Igreja, muito menos
aglomerado. Bastam “dois ou três”. E a fé.
A questão religiosa se coloca não por ser
ele evangélico, mas porque Bolsonaro o escolheu por essa razão e usou isso
politicamente. Em agosto, o presidente, falando numa convenção da Assembleia de
Deus, disse o seguinte: “Tenho conversado muito com o pastor Mendonça, porque a
vida dele vai mudar. Fiz um pedido a ele, ou melhor, dei uma missão a ele. E
ele se comprometeu a cumprir. Toda a primeira sessão da semana no STF ele
pedirá a palavra e iniciará os trabalhos após uma oração.” Bolsonaro fala isso
para manipular a fé das pessoas.
Na Comissão de Constituição e Justiça, o
novo ministro negou que vá julgar conforme a sua visão religiosa. Disse que é
presbiteriano, igreja que nasceu na Reforma Protestante, que tem um dos seus
pilares na separação entre Estado e Igreja. O Estado laico é também um comando
constitucional. Se ele agir no STF como agiu na AGU estará rasgando a
Constituição.
Seu divórcio com o que defendera no passado
continuou durante toda a sessão, na qual ele foi aprovado. Por pressão do
senador Fabiano Contarato (Rede-ES), Mendonça voltou atrás na defesa que
fizera, como AGU, de que homofobia não é crime. Contarato conseguiu que ele
corrigisse até o que dissera na própria sabatina. Mendonça fizera uma
falsificação histórica ao dizer que a democracia não havia custado vidas. Negou
a repressão. Perguntado pelo senador capixaba, ele disse que na verdade se
referia a outros momentos da História em que não houve derramamento de sangue e
deu o exemplo da República e da Independência. Mendonça precisa urgentemente
informar-se com os historiadores porque, pelo visto, acredita em mitos.
Ele negou que tivesse perseguido
jornalistas, mas os perseguiu. Foram muitos. O grande escritor Ruy Castro é
apenas um exemplo. Deu uma alegação curiosa para os seus atos. Disse que
estaria prevaricando se não iniciasse processos contra os jornalistas, já que a
Lei de Segurança Nacional estava em vigor tipificando o crime de ataque à honra
do presidente da República, que, na opinião dele, esses jornalistas haviam
cometido. Ora, outros presidentes antes dele foram criticados com a caduca LSN
ainda em vigor. E não houve essa reação.
Mendonça pôde desfazer os seus feitos e
desdizer os seus ditos impunemente, porque passou com facilidade pela CCJ e no
fim do dia foi aprovado no plenário. Seguiu com suas contradições para suas
quase três décadas de decisões supremas.
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