Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Morto em novembro, arquiteto foi
interlocutor de grande criatividade entre a cultura erudita de sua arte e a
cultura popular e cotidiana das populações pobres
A morte, em novembro, do arquiteto Ruy
Ohtake privou a inteligência brasileira de um personagem dos mais
representativos de nossas possibilidades na área da cultura. Ele foi
interlocutor de grande criatividade entre a cultura erudita de sua arte e a
cultura popular e cotidiana das populações pobres.
O confinamento e as interdições decorrentes
da epidemia da covid restringiram e abreviaram o tempo de sua disponibilidade
para o diálogo enriquecedor com os que podiam aprender com ele. Como nós, que,
na Academia Paulista de Letras, poderíamos ouvi-lo sobre suas ideias de
superação da degradação urbana de São Paulo.
Filho mais velho da grande Tomie Ohtake, sua família foi criada no bairro industrial e operário da Mooca. O que pode ter influenciado sua sensibilidade em relação à situação dos que nasceram para o trabalho, mas não para os melhores frutos do trabalho. Uma característica própria da realidade social dos bairros e do subúrbio de São Paulo.
As obras que projetou e dirigiu na favela
de Heliópolis, na divisa com a atual São Caetano e em território do antigo
bairro de São Caetano do Tijucuçu, são indícios fortíssimos de sua competência
para compreender o que, como Antonio Candido, podemos definir como necessidades
expressionais, neste caso as dos moradores da localidade.
Ruy Ohtake engrandeceu sua militância
social de intelectual ao libertar a possibilidade do belo como um dos
componentes decisivos da revolução na vida cotidiana ao eleger como sujeito e
pensador dessa transformação social o homem simples. A vítima de um modelo
patológico de crescimento da cidade, o da favela.
Ele comentara, certa vez, que aquela favela
era feia. E era. Foi, então, procurado por líderes dos moradores e desafiado a
mudar-lhe o cenário e a aparência. Estabeleceu com eles um diálogo
investigativo em que, em vez do arquiteto enquadrar o usuário da habitação nos
marcos formais do seu imaginário profissional, deixa sua profissão ser
enquadrada no marco da imaginação do morador e usuário da obra a ser projetada.
Em vez de uma arquitetura repressiva, de
aprisionamento das pessoas, que da moradia carecem, nos limites formais do
imaginário técnico, sem vínculo antropológico com o sonho de quem vai nela
morar, propôs uma arquitetura libertadora, no reconhecimento do direito à
imaginação inventiva e criadora como referência da obra a ser projetada. O
arquiteto dispondo-se como instrumento do destinatário e usuário da obra.
Ele se destacou por obras notáveis de
arquitetura, na valorização das formas e sua libertação da linearidade sem
graça e opressiva das estruturas. Em suas obras há claramente a insurgência da
liberdade criativa da forma contra a tirania de formas subjugadas pelo poder
nelas embutido.
Tendo sido aluno de arquitetura da
Universidade de São Paulo, expressa em suas obras e em suas opções sociais um
dos grandes e decisivos legados da universidade paulista. O que nos vem do
sonho do seu fundador, Júlio de Mesquita Filho, uma universidade pública, laica
e gratuita. Uma universidade com a missão de emancipar a sociedade por meio da
cultura erudita. Nessa linha, Ruy Ohtake incluiu no elenco dos direitos de
todos, também, das pessoas comuns, o direito à beleza, um direito
revolucionário e libertador.
Em entrevista que deu ao arquiteto Terence
Riley, expôs o método de sua arquitetura como arquitetura para pessoas. Em
Heliópolis, em dois momentos da intervenção, os moradores queriam, em primeiro
lugar, bibliotecas.
Os autores de planos de solução dos
problemas sociais, em todos os campos do conhecimento, raramente imaginam que
os pobres incluem no elenco de suas necessidades sociais a necessidade de
bibliotecas. Imaginamos os pobres como carentes de comida, e não como carentes
de livros e de cultura erudita. Esquecemos que o espírito também precisa ser
nutrido, coisa de que os pobres têm consciência.
Os moradores de Heliópolis queriam, também,
livrar-se da feiura de suas habitações. Quem conhece o interior de uma
construção de favela conhece o cuidado dos moradores para dar às quatro paredes
rústicas a aparência de um lar. Há nas favelas uma arquitetura popular
criativa, na prioridade do lado de dentro em relação ao lado de fora, do lado
do vivido em relação ao lado para ser visto. Mesmo pessoas em situação de rua
inventam seus cafofos como uma espécie de sonho de uma casa possível.
Em Heliópolis, no projeto chamado pelos
moradores de “Redondinhos”, um condomínio popular de grande beleza e
originalidade, Ruy Ohtake deixa evidente o protagonismo dos destinatários da
obra. Aquela é uma ilha de arquitetura e urbanização criativos, expressão de
uma pós-modernidade reconciliada com a condição humana.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisa dor Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante”(Editora Unesp).
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