A constatação desse fato benévolo torna ainda mais gritante a ausência dos partidos políticos democráticos, principalmente os de esquerda, nos movimentos sociais, limitados às suas ações no âmbito parlamentar numa conjuntura onde ainda se fazem presentes ameaças reacionárias e fascistas. No mundo desertificado da política atual não se pode fazer ouvidos moucos a importante iniciativa de dois próceres da nossa política, Lula e Alkmin, de conceber uma ampla coalizão a fim de pela via eleitoral fechar as portas para o caminho de desgraças que acomete o país.
A esquerda é herdeira de uma rica história
de alianças, às vezes celebradas em condições adversas como nas lutas contra o
nazi-fascismo em que soube, nos interesses do bem comum, superar divergências e
antagonismos. É verdade que no teatro das nações do mundo nosso país ocupa
ainda uma posição secundária, embora estejamos situados bem perto do coração do
país ainda hegemônico nas relações internacionais, hoje polarizado em torno dos
projetos de Biden e de Trump, o primeiro empenhado em devolver seu país aos
trilhos que lhe foram naturais, e o segundo claramente orientado por um
neoliberalismo que o conduz a uma política isolacionista e imperial.
Estamos, desde já, envolvidos nessa disputa, basta ver os contatos frequentes entre o vértice do bolsonarismo e quadros dirigentes do Partido Republicano dos EUA, inevitável que as posições que resultarem das nossas próximas eleições vão interferir nesse tabuleiro, circunstância que empresta a elas, além da possibilidade de livrar o país do flagelo do governo Bolsonaro, uma maior significação no cenário internacional.
É preciso impedir que o trumpismo estabeleça uma cabeça de ponte em nosso país e daí irradie sua influência para os demais países latino-americanos. O tamanho da encrenca exige o recurso a remédios heroicos como o que ora entra em linha de elaboração, a que o conjunto das forças e personalidades democráticas não pode ser indiferente. Ao contrário, deve proceder para melhor cimentar e alargar as vias ainda em esboço para uma ampla coalizão democrática.
Em política
o que é, é, não há uma terceira via no horizonte, salvo na fabulação de uns
poucos. Não faz sentido, registre-se, conceber um juiz julgado pelos mais
eminentes dos seus pares como parcial em sentenças que proferiu como alguém
credenciado à postulação presidencial.
De fato, nas trajetórias dos dois
personagens envolvidos na trama dessa auspiciosa negociação houve momentos
erráticos, mas nada que os comprometa em suas adesões aos princípios da
democracia política. São ambos confiáveis nesse quesito incontornável, e como
detém currículos que atestam suas práticas de governança, podem e devem ser
advertidos pelas forças e personalidades que a eles vierem se agregar para
participarem da coalizão que lideram do que recusam em seus comportamentos
pretéritos. No caso do PT, particularmente sua história pregressa de
hegemonismo e sua nem sempre nítida percepção de que governo e Estado são
dimensões separadas e dotadas de autonomia são temas a exigir manifestações
autocríticas diante da opinião democrática.
Em negociações francas e abertas animadas
pelo propósito de remover a política nefasta que a todos oprime, tal objetivo,
certamente difícil, mas de nenhum modo impossível, pode descerrar o que ainda
impede a construção da estrada real que nos livre dos males da hora presente.
Igualmente não consiste em tarefa acima da escala humana encontrar soluções
para os complexos ajustes entre as eleições presidenciais e as estaduais, com
que contamos com o tirocínio de políticos experimentados capazes de dar nó em
pingo d´água.
Não experimentar essa janela de
oportunidade, cedendo, mais uma vez, espaço para que ambições pessoais por
poder e patriotismos identitários ocupem o lugar que deve ser protegido em nome
da defesa do interesse comum, é tudo o que desejam aqueles que atuam no sentido
de reproduzir nas eleições o governo que aí está.
Não é preciso conhecer as lições de
Maquiavel em A arte da Guerra a fim de ponderar o papel da correlação de forças
políticas nos desfechos das disputas pelo poder. Grossos e poderosos interesses
fazem parte das linhas de sustentação do governo Bolsonaro, que detém o poder
da caneta, como se diz, e o controle da imensa e capilarizada malha com que o
Estado recobre a sociedade, inclusive nos seus remotos rincões.
A experiência nesses já longos anos com a
clique que se mantém no poder ensina que não se deve subestimar sua capacidade
de manobrar no terreno da política. A rusticidade da sua aparência é
enganadora, como restou demonstrado na bem-sucedida operação em que, num
momento de fraqueza, recorreu a aliança com o Centrão afastando os riscos de um
iminente impeachment e ganhando novo fôlego nas disputas eleitorais.
No passado as forças democráticas, em
momentos decisivos, souberam inovar na construção de amplas coalizões
políticas, essa experiência faz parte do seu repertório que nos cumpre agora
reprisar.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
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