O Globo
A esta altura, esperava confirmar duas
semanas de férias em Salvador (BA) e reencontrar, no 2 de Fevereiro, a
celebração a Iemanjá que se tornara tradição dos meus verões. Esperava não
temer assistir presencialmente ao show de Maria Bethânia, após um par de anos
aplaudindo-a do sofá. Esperava frequentar ensaios de rua das escolas de samba,
abraçar os amigos, franquear a todos os queridos a visita a meu neto, nascido
há um ano, no momento mais agudo da pandemia da Covid-19. Mas, a exemplo de
ilustração viralizada há tempos sobre a ponta final da Teoria da Evolução, tive
de encarar o espelho e proclamar: “Volta que deu ruim”.
É hora de reconhecer que a reabertura foi exagerada e precipitada. Antes mesmo da multiplicação da variante Ômicron, Brasil e mundo afora, o surto —no Rio de Janeiro, epidemia — fora de época da gripe H3N2 estava a confirmar. Abolimos as máscaras, abrimos a porteira, saímos às ruas, os vírus nos alcançaram. As celebrações de fim de ano — incluído o Réveillon carioca descentralizado em dez queimas, com a Praia de Copacabana restrita — deram numa confirmação de casos de Covid-19, que não produziu luto como em janeiro de 2021 em Manaus, porque a vacinação foi robusta. Não sei você, mas eu não me lembro de tantos conhecidos simultaneamente confirmados com a doença em dois anos de pandemia.
Há corrida por testes; há muitas ausências
no trabalho. Na capital fluminense, a proporção de diagnósticos confirmados
saltou de 0,7% no início de dezembro para inéditos 41% nesta primeira semana de
2022. A Universidade Federal de Pelotas (RS) calculou em 1,83 a taxa de
transmissão na última segunda-feira; é a maior da pandemia na cidade. Significa
que cada infectado contagia praticamente outras duas pessoas — nos piores
momentos da pandemia, o país chegou a três. Para completar, o Brasil está
mergulhado num apagão de dados que impede a elaboração de análises robustas
sobre casos, internações, óbitos, faixa etária e localidades mais afetadas. A
Fiocruz não tem conseguido produzir nem o boletim Infogripe, com estatísticas
sobre síndrome respiratória aguda grave, nem o Observatório Covid-19.
Se nossos amados não tiveram quadros
graves, livraram-se de internações e seguem vivos não significa que nossos
corações se aquietaram, como nos tempos de viroses e resfriados. A preocupação
é diuturna. Talvez porque sou avó de um menininho que ficará desprotegido,
ainda que o Brasil fosse governado por gente empenhada em garantir pronta
imunidade à população. Não é. Anteontem, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga,
anunciou a compra de 20 milhões de doses da vacina da Pfizer para crianças de 5
a 11 anos. É quantidade suficiente para aplicar a primeira dose em 20,5 milhões
de brasileirinhos na faixa etária, segundo estimou o IBGE. A segunda dose terá
intervalo de oito semanas, mais que o dobro das três recomendadas na bula.
As vacinas serão entregues pelo fabricante
ao longo do primeiro trimestre. Até o fim de janeiro, o país receberá 3,7
milhões de doses, divididos em três lotes de 1,248 milhão. É certo que as
crianças voltarão às aulas presenciais sem a cobertura vacinal e com uma
variante altamente transmissível à espreita. A Prefeitura do Rio apresentou um
calendário de vacinação, que começa em 17 de janeiro e termina em 9 de
fevereiro. Matematicamente inviável. A encomenda do primeiro mês não é
suficiente sequer para imunizar todos os meninos e as meninas de 11 e 10 anos —
nas contas do IBGE, 2,896 milhões e 2,907 milhões, respectivamente. Embarcamos
novamente no enredo “chegou vacina, acabou a vacina”.
Em janeiro de 2021, a vacinação começou com
8,7 milhões de doses de CoronaVac, adquiridos pelo Instituto Butantan (SP), e 2
milhões de AstraZeneca, importados às pressas da Índia pela Fiocruz. Em
fevereiro, chegaram 11,3 milhões de doses. Só a partir do segundo trimestre,
CPI da Covid-19 assentada, a vacinação ganhou escala. Chegamos a janeiro de
2022 testemunhando, outra vez, um governo que, a começar pelo presidente da
República, sabota, desqualifica e rejeita a vacinação. Posterga a compra e
dificulta a distribuição de imunizante. Estimula aglomeração, permite
multiplicação de casos, internações e óbitos, promove apagão de dados. Fez
isso, impunemente, com o plano de imunização de adultos, de adolescentes e,
agora, com as crianças.
Na virada do ano, o país alcançou 75% de
população com uma dose de vacina. Um em quatro brasileiros, por negacionismo,
desinformação, falta de acesso, não se vacinou, incluindo 35 milhões de
crianças de zero a 11 anos. Por isso, repito a podcaster Morena Mariah dias
atrás: quem me viu nos três meses da janela sanitária viu. Voltei ao
isolamento. Meu compromisso, agora, é com a dose de reforço. Com ver crescer
meu neto. E que ele cresça.
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