segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Celso Rocha de Barros: Esquerda e direita diante da Ucrânia

Folha de S. Paulo

Bolsonaro gostaria de unir-se à Otan, como os ucranianos, e instaurar uma ditadura como a de Putin

No que se refere à invasão da Ucrânia por tropas russas, duas coisas devem ser óbvias para a esquerda latino-americana: em primeiro lugar, ninguém precisa nos explicar que os Estados Unidos também são capazes de agressões imperialistas. Em segundo lugar, ninguém aqui aceita a ideia de que potências nucleares têm o direito de invadir países vizinhos que tentam sair de suas áreas de influência.

A Ucrânia é um país soberano que deve ter suas fronteiras preservadas.

Qualquer outra posição dentro da esquerda está errada. Não, uma vitória russa não será um triunfo do anti-imperialismo; será uma vitória do imperialismo russo.

Não, um fortalecimento do imperialismo russo não aumentará a margem de manobra dos países mais pobres para extrair concessões econômicas dos impérios em disputa: a Rússia continua sendo um país com graves problemas econômicos que não está em condições de ajudar ninguém.

E, pelo amor de Deus, uma vitória russa não representará progresso para os ideais de esquerda. Isso já não era verdade na época da União Soviética: a exportação da revolução pelos tanques soviéticos foi sempre uma tragédia. Mas no caso do regime russo atual a ideia é francamente bizarra: Putin é um conservador militarista que governa aliado a oligarcas.

Sim, com todos esses problemas, a Rússia pode ser um aliado na formação de um mundo multipolar. Mas se você acha isso, a guerra é uma tragédia: um aliado potencial do multipolarismo se enfiou em um conflito que pode lhe tirar legitimidade na arena internacional por muitos anos.

Por fim, há gente comemorando a invasão como desafio à ordem internacional pós-Guerra Fria. Na verdade, o que se viu na esfera internacional nos últimos anos foi o seguinte movimento: tudo que a globalização capitalista tem de mais selvagem —superexploração da força de trabalho, degradação ambiental, especulação financeira— prolifera livremente.

O que entrou em crise foram os esforços de tornar esse processo um pouco mais civilizado, como a ONU ou a União Europeia. A invasão reforça essa tendência.

Enfim, a invasão da Ucrânia foi uma notícia muito ruim para quem defende os valores da esquerda ou para os liberais que esperam que o capitalismo seja acompanhado das instituições de uma sociedade aberta.

Para quem defende as versões mais reacionárias do capitalismo, porém, alguma confusão ideológica diante da guerra na Ucrânia é compreensível.

Na semana passada, políticos e comentaristas de extrema-direita americanos, como Steve Bannon, elogiaram o atual regime russo: segundo Bannon, na Rússia as pessoas sabem em que banheiro ir, sem essa história de transgênero.

Não é por acaso, portanto, que o bolsonarismo ficou atordoado com a invasão da Ucrânia. Bolsonaro havia acabado de ir à Rússia proclamar-se "solidário" a Putin; mas seus militantes sempre defenderam "ucranizar" o Brasil, referindo-se às táticas da extrema-direita ucraniana.

Bolsonaro gostaria de unir-se à Otan, como o governo da Ucrânia, mas também gostaria de instaurar uma ditadura como a de Putin.

Sonha exatamente com o capitalismo sem civilização que vem ganhando espaço, mas não tem coragem de desafiar os Estados Unidos. Como Steve Bannon diante do banheiro, Jair ficou paralisado pela dúvida e sujou as próprias calças.

 

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