Folha de S. Paulo
Bolsonaro gostaria de unir-se à Otan, como
os ucranianos, e instaurar uma ditadura como a de Putin
No que se refere à invasão da Ucrânia
por tropas russas, duas coisas devem ser óbvias para a esquerda
latino-americana: em primeiro lugar, ninguém precisa nos explicar que os
Estados Unidos também são capazes de agressões imperialistas. Em
segundo lugar, ninguém aqui aceita a ideia de que potências nucleares têm o
direito de invadir países vizinhos que tentam
sair de suas áreas de influência.
A Ucrânia é um país soberano que deve
ter suas fronteiras preservadas.
Qualquer outra posição dentro
da esquerda está errada. Não, uma vitória russa não será um triunfo do
anti-imperialismo; será uma vitória
do imperialismo russo.
Não, um fortalecimento do imperialismo
russo não aumentará a margem de manobra dos países mais pobres para extrair
concessões econômicas dos impérios em disputa: a
Rússia continua sendo um país com graves problemas econômicos que não
está em condições de ajudar ninguém.
E, pelo amor de Deus, uma vitória russa não
representará progresso para os ideais de esquerda. Isso já não era verdade na
época da União Soviética: a exportação da revolução pelos tanques soviéticos
foi sempre uma tragédia. Mas no caso do regime russo atual a ideia é
francamente bizarra: Putin
é um conservador militarista que governa aliado a oligarcas.
Sim, com todos esses problemas, a Rússia
pode ser um aliado na formação de um mundo multipolar. Mas se você acha isso, a
guerra é uma tragédia: um aliado potencial do multipolarismo se
enfiou em um conflito que pode lhe tirar legitimidade na arena
internacional por muitos anos.
Por fim, há gente comemorando a invasão como desafio à ordem
internacional pós-Guerra
Fria. Na verdade, o que se viu na esfera internacional nos últimos anos foi
o seguinte movimento: tudo que a globalização capitalista tem de mais selvagem
—superexploração da força de trabalho, degradação ambiental, especulação
financeira— prolifera livremente.
O que entrou em crise foram os esforços de
tornar esse processo um pouco mais civilizado, como a ONU ou a
União Europeia. A invasão reforça essa tendência.
Enfim, a
invasão da Ucrânia foi uma notícia muito ruim para quem defende os
valores da esquerda ou para os liberais que esperam que o capitalismo seja
acompanhado das instituições de uma sociedade aberta.
Para quem defende as versões mais reacionárias do capitalismo, porém,
alguma confusão
ideológica diante da guerra na Ucrânia é compreensível.
Na semana passada, políticos e comentaristas de extrema-direita
americanos, como
Steve Bannon, elogiaram o atual regime russo: segundo Bannon, na
Rússia as pessoas sabem em que banheiro ir, sem essa história de transgênero.
Não é por acaso, portanto, que o
bolsonarismo ficou atordoado com a invasão da Ucrânia. Bolsonaro havia
acabado de ir à Rússia proclamar-se
"solidário" a Putin; mas seus militantes sempre defenderam
"ucranizar" o Brasil, referindo-se às táticas da extrema-direita
ucraniana.
Bolsonaro gostaria
de unir-se à Otan, como o governo da Ucrânia, mas também gostaria de
instaurar uma ditadura como a de Putin.
Sonha exatamente com o capitalismo sem
civilização que vem ganhando espaço, mas não tem coragem de desafiar os Estados
Unidos. Como Steve Bannon diante do banheiro, Jair ficou paralisado pela dúvida
e sujou as próprias calças.
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