É imperativo que analistas voltados à
compreensão dos cenários anterior e posterior à agressão russa usem informação
qualificada, multilateral, o mais isenta possível de vieses e produzam interpretações
equilibradas, dotadas de senso de objetividade. Tão imperativo quanto isso é não
faltar, por outro lado, em declarações de líderes, partidos e outros agentes da
política, a capacidade de se colocar, com clareza e senso de urgência, em oposição
a um gesto político-militar imediato e concreto que liquida, por decisão
unilateral do governo de um país, instituições e vidas humanas que importam a
todos, seja no sentido da solidariedade entre indivíduos e entre povos, seja no
da autopreservação de cada pessoa, ou país. São igualmente problemáticas, numa hora dessas,
a contaminação ideológica de quem se propõe a ocupar o lugar de analista e a ausência,
no caso de agentes políticos, da disposição subjetiva de encarar a agressão
militar sob a orientação primordial de valores.
Nenhuma posição política realista precisa ou deve ser cancelada em emergências assim. Ao contrário, nessas situações-limite elas são ainda mais requisitadas, porém, o que delas se requer, como uma de suas premissas, é que não confundam uma saudável recusa à ideologia com sua diluição num varejo destituído de causas, o que denota, não política realista, apenas uma política pequena. Daí que a condenação da agressão não comporta meias palavras da parte de quem tem responsabilidade política.
Minha opinião é desprovida de pretensões
analíticas do contencioso geopolítico que ora se degenera em guerra. Faltam-me
informação e reflexão sistemática sobre o assunto para estar apto a tais
pretensões. Mas me é possível analisar, sim, ainda que evitando assertivas fortes,
a conduta de atores politicamente responsáveis, no Brasil e no exterior. Em
particular, a de forças que historicamente se autodefinem como esquerda, para
as quais guerra e paz – como par de opostos - constituem, por tradição, um tema
político nobre, que se mantém perene após o eclipse factual da oposição entre
capitalismo e socialismo. Além de nobre, tema decisivo para a esquerda
brasileita, face à hipótese provável dela voltar a ser governo.
Escapa a semileigos como eu, em relações
internacionais, uma plena compreensão das razões mais ou menos determinantes
pelas quais a derrocada, há mais de três décadas, do chamado socialismo real -
da qual o fim da URSS foi o recibo de quitação – não levou, apesar de
esforços feitos nesta direção, à desmilitarização da Europa. E das razões pelas
quais não houve conversão mais relevante de recursos de estados nacionais e
organismos multilaterais empregados em objetivos militares, em estratégias
globais de caráter econômico, social, ambiental ou cultural. Como a ideologia
não pode suprir esse déficit cognitivo, a discussão segue enevoada e
convoca a política para não permitir que a controvérsia derive em guerra
durante o tempo em que impera. A democracia é o melhor recurso que a política pôde
até aqui oferecer ao mundo para cumprir sua missão de promover convívio pacifico
aos humanos do presente, sem ofender a memória dos que já morreram, nem
comprometer a vida de gerações futuras.
A democracia associada a instituições
liberais não é um imperativo moral que possa ser imposto, a fórceps, a
sociedades que jamais a experimentaram, como se pode dizer, sem exagero, que é
o caso da sociedade russa. Ela não é uma crença universal, mas é uma fórmula
política universalizável. Em vários países em que se firmou também como crença,
tornou-se uma evidência institucionalizada, possível de ser oferecida, como
alternativa de organização política e como dinâmica processual para resolução
de conflitos, a sociedades submetidas a autocracias. O método desse
oferecimento precisa ser, no entanto, o mais próprio da política democrática, o
da persuasão e da participação políticas, continuamente praticadas em
sociedades plurais. É a democracia ganhando
força pelo exemplo, mais que pela coerção.
O arranjo liberal-democrático é um achado
histórico que vigora numa parte do mundo, sob sério risco. Analistas e
pensadores diversos apontam uma crise da fórmula, mas quase nenhum nega a sua
vigência. As raízes e saídas da crise, bem como as chances da fórmula se manter
vigente são temas controversos. Na prateleira há explicações e prognósticos
úteis a vários credos políticos. Mas há sempre uma escolha política a fazer
entre agir para deter ou para aprofundar essa crise. Escolha limitada pelas
famosas condições objetivas tão evocadas em clássicos discursos da esquerda
vinculada ao tronco principal da tradição marxista. Mas ainda assim escolha,
mais ou menos assumida, ou dissimulada.
O gesto agressor do regime de Vladimir
Putin induz-nos à explicitação de uma escolha política. Ser institucionalmente conservador
diante de contextos onde a democracia liberal prevalece, reformador onde está
constrangida por instituições iliberais e subversivo onde simplesmente ela inexiste
ou foi revogada por atos arbitrários internos ou de agressão externa, como pode
vir a ocorrer na Ucrânia. Essa escolha implica respaldar esforços ocidentais
para dissuadir o governo russo de prosseguir na agressão; em confrontar
argumentos nacional-militaristas de Putin que conferem ao interesse nacional
russo um suposto direito de produzir efeitos negativos globais ao agredir
“preventivamente” outro país, enquanto cala, autocraticamente, a oposição
interna; por fim, implica em solidariedade à Ucrânia e à resistência dos que,
naquele país, se opuserem à agressão em curso, apontando sempre a diplomacia e
a pressão política como vias adequadas para detê-la. O que por sua vez implica, para não ser
discurso oco, aceitar as consequências de tal opção, entre as quais a principal
é que sub ótimos são o céu que a limita. Respaldar a aliança das democracias ocidentais
não resolve os seus problemas. Enfrentar Putin não anula seu poder. A
solidariedade à Ucrânia e seu povo não anula o extremismo do seu atual governo.
Essa escolha política também não expressa
opção ideológica ou “cultural” pelo Ocidente ou por esse ou aquele tipo de
organização econômica e social. Expressa alinhamento com a paz como valor e com
a democracia, como instituições e conduta. Isso, em boa hora, tem orientado
posicionamentos de líderes e partidos de esquerda ocidentais para os quais
seria bom que a esquerda brasileira se voltasse em busca de referência e
convergência. Refiro-me, como exemplos, à posição do primeiro-ministro
português António Costa, à declaração pública do seu partido, o PS, bem como à
da Internacional Socialista.
Observadores agudos do quadro internacional
hão de analisar essas e outras falas e textos, indo além da recepção
esperançosa que lhes dedico. Mais especialmente ao pronunciamento do presidente
chileno Gabriel Boric, firme, simples e abrangente, dirigindo-se, sem omissões
e sem excessos ou contorcionismos verbais, aos pontos cruciais: “Rusia há
optado por la guerra como medio para resolver conflictos. Desde Chile
condenamos la invasion a Ucrania, la violación de su soberania y el uso ilegítimo
de la fuerza. Nuestra solidaridad estará com las víctimas y nuestros humildes
esfuerzos com la paz”.
É ocioso
comentar o flagrante contraste das palavras do presidente do Chile com o
silêncio no mínimo leniente do presidente brasileiro, que sucedeu a suas
palavras e gestos públicos de simpatia dirigidos a Putin. Mais significativo é
comparar a fala do jovem líder chileno com a do experimentado líder popular da
esquerda brasileira que, conforme indicações de todas as pesquisas, é o político
com mais possibilidades de livrar o país da hipótese de reeleição do
extremista. Pode-se dizer, sem dúvida, que as posições dos dois líderes da
esquerda sul-americana têm sentidos gerais convergentes. Leiamos Lula: “É lamentável que na segunda década do
século 21, a gente tenha países tentando resolver suas divergências
territoriais, políticas ou comerciais através de bombas, tiros e ataques,
quando deveria ter sido resolvido em uma mesa de negociação. Ninguém pode
concordar com guerra, ninguém pode concordar com ataques militares de um país
sobre outro". Convergindo
no sentido geral, as duas declarações em tuíte distinguem-se, pela presença
(Boric) e ausência (Lula) do termo invasão na descrição do fato ocorrido.
Também pelo anonimato dos protagonistas (Rússia e Ucrânia), no caso de Lula e
pela nomeação dos bois, no de Boric.
Entre o tom explícito do chileno e o genérico do
brasileiro poder-se-ia ver o efeito da maior experiência do segundo, seu maior
traquejo na lida com as distinções entre política e diplomacia. Essa
interpretação seria, no entanto, benevolente com Lula. Em outros momentos da
mesma comunicação, divulgada por Leonardo Sakamotto, o insuspeito colunista do
Uol, em 24.02, fica claro que a diferença não é o que falta, mas o que sobra na
análise de Lula, em relação ao posicionamento político de Boric. Fala Lula: "A gente está acostumado a ver potências fazendo isso de vez em
quando sem pedir licença. Foi assim que os Estados Unidos invadiram o
Afeganistão e o Iraque. Foi assim que a França e a Inglaterra invadiram a
Líbia. E é assim que a Rússia está fazendo com a Ucrânia”. Aí estão os nomes do boi agressor e do boi agredido, porém, diluídos em
meio a outros bois, que pastaram em outros contextos.
Os excessos
dispersores do foco não são os únicos a retirar da fala de Lula o caráter de
posição política orientada por valores diante da emergência dramática de uma
crise atual, para torná-la uma incursão no mundo da estratégia politicamente
orientada para o médio e o longo
prazos, na qual presente, passado e futuro fundem-se em ritmo de tese. Para
tanto, contribui também, na mesma fala, um discurso crítico da ONU que parece
remetido ao contexto em que ele governou o Brasil, ou mesmo, mais atrás, o da eclosão,
em plena guerra fria, do movimento dos não-alinhados a lembrar à ONU que a
geopolítica do mundo mudara no sentido de congelá-la. Como entender a evocação, em
flashback, neste momento, de uma política alternativa, embora não
antagônica, à do globalismo liberal, que Bolsonaro xinga e Putin desafia? É
possível que, em momentos não críticos, ela conte com simpatia e até parceria
de Boric. Logo, não se trata de ver entre ambos os líderes, uma divergência de
fundo. Mas a que atribuir a recusa de Lula a traduzir suas intenções em
política externa em tática de efetivo e decidido engajamento contra o atual
agressor da paz e ao lado do presente agredido? A pergunta requer olhar o que
se dá na esquerda brasileira, mormente no PT, retaguarda que Lula pode
interpelar, não confrontar,
É fato que se detecta no Brasil disposição semelhante
à de Boric, por parte de algumas lideranças de esquerda, como se dá no caso do
deputado carioca Marcelo Freixo, que certamente não é voz solitária. Frustram,
por outro lado, e até preocupam as dificuldades do maior partido da esquerda
brasileira em posicionar-se como a hora exige de agentes políticos que não
podem se refugiar, como se analistas fossem, nas ambiguidades certamente reais
e sérias que uma situação complexa envolve. Esse dilema entre se posicionar
politicamente ou escapar pela análise é que parece acossar o ex-presidente
Lula. O modo como enfrentará essa esquina é de alto interesse público no
momento em que sob seus ombros se depositam as expectativas de muitos brasileiros que
querem ou precisam sair do beco, sem sair do país.
Produz algum alívio saber que uma
desastrada nota da bancada do partido no Senado - que criticava e
responsabilizava principalmente os EUA e a aliança ocidental e secundariamente
a Rússia, desviando o foco do caso concreto que tensiona o mundo - foi revista
e tirada de circulação a tempo. Bom saber que há no PT anticorpos contra
atrações ideológicas típicas de esquerda negativa, seja a saudade da guerra
fria, seja a simulação ideal de uma polaridade norte/sul. Mas fica evidente ali também a presença
relevante de posições que confundem alvos num momento tão delicado da política
mundial e brasileira. Um mero ponto intermediário entre o olhar grudado no
retrovisor e a inspiração no que se desenha como esquerda no horizonte do nosso
século ainda jovem não basta porque pode, no máximo, produzir declarações
genéricas que podem ser anódinas num contexto em que até o Talibã prega que se resolva a crise “por meio de diálogo e
meios pacíficos”. Antes de ceder a piadas é preciso pensar que não basta pregar
paz, tem que participar e se engajar, não cumprir tabela e depois torcer contra,
entre amigos.
Sem agora mais me referir a líderes ou
partidos específicos, registro a percepção, fora da direita autoritária (onde
esse tipo de fenômeno é, a princípio, mais esperado) de uma admiração contida pela
performance guerreira de Putin em áreas gauche de nossa elite
política e da nossa intelectualidade. O traço é determinante na virtual
extrema-esquerda (insignificante no Brasil) mas afeta, de viés, também a
esquerda política, mais ainda em suas conexões universitárias, onde incide um
esquerdismo doutrinário superficialmente intelectualizado. Mesmo quando se vê como
“centro-esquerda”, ele segue refém da mentalidade bipolar dos tempos da guerra
fria, agora aplicada a novas polaridades. A antiga atitude política
anti-imperialista recicla-se pela denúncia de um “neo-liberalismo” elástico a
ponto de estigmatizar todo o campo liberal, pressionando a porta do edifício
liberal-democrático que é hoje o grande alvo de Putin. Mas se o olhar ousar uma
penetração mais funda cogitará que a admiração pelo seu lado de “estadista”
abriga reminiscências ideológicas que independem do antiamericanismo e da
aversão “cultural” ao capitalismo e ao Ocidente. Pode-se ver aversão a pecados
mundanos da política liberal-democrática, desfavoravelmente comparada à potência de um líder forte
para promover justiça.
Como se não nos bastassem os ataques que a
democracia sofre hoje no Brasil, um problema adicional seria as cadeiras de
geopolítica renderem-se ao pontificado de autocratas militaristas como Putin. Será
uma lástima se, na atual quadra crítica, parte relevante da esquerda brasileira
admitir retroceder à lógica e à retórica da guerra fria. Nessa hipótese, ela caberá
como uma luva na máxima do poeta Samuel Coleridge, da qual Roberto Campos
retirou a expressão-título do seu famoso livro "Lanterna na Popa": "(...)
a paixão cega nossos olhos e a luz que nos dá é a de uma lanterna na popa, que
ilumina apenas as ondas que deixamos para trás". Para personagens como
Roberto Campos, um liberista tido como radical, adversário ardoroso do
socialismo e desconfiado da democracia, a esquerda sempre contribuiu para esse
atraso em que via o Brasil mergulhado. Diagnóstico certamente exagerado, até injusto,
mas que passará a valer como profecia se, numa esquina como a de hoje, a nossa
esquerda não puder olhar para o mundo das possibilidades democráticas, do qual
ela própria surgiu, para receber algum oxigênio.
Putin e Bolsonaro, noves fora as não poucas nem pequenas distinções entre ambos, precisam ser encarados como símbolos atualíssimos de um mesmo desafio às possibilidades da política como via de resolução de conflitos. Sendo guerreiros da autocracia como a titular da última razão, não se pode contemporizar ou flertar com os abismos que abrem, para aguardar suas vítimas no além das esquinas.
*Cientista político
e professor da UFBa
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