O Globo
Vivemos o tempo dos homens ocos, como lá
atrás decretou T.S. Eliot. Também o aguçamento das mentiras, na visão de Marcel
Proust ao ler as falsas notícias de vitórias francesas na Primeira Guerra
Mundial. Em fuga das armadilhas fáceis das generalizações, Thomas Mann
discordava de quem colocava o nazismo em igual patamar do comunismo.
— O nazismo é apenas o niilismo diabólico —
teria declarado em 1949, alertando ainda que não era comunista.
Os três escritores passaram por guerras — Proust apenas pela Primeira Guerra (morreu em 1922). Já morando em Londres, Eliot, que era americano, permaneceu como professor e, em seu posto bancário, sem muitos percalços ao longo dos dois conflitos mundiais, somente decepcionado com a maldade humana. Basta ler “A terra desolada” e escutar seu mergulho no desencanto.
Mann, dos três, foi quem mais sentiu na
pele os dramas de seu tempo. Para quem hoje joga a toalha diante da bozofrenia
e da Covid-19, os desterros do escritor alemão, cuja mãe, Júlia, era
brasileira, deveriam servir de paralelo.
Com uma homossexualidade sublimada, para
desalento de seu filho Klaus, Thomas Mann, Nobel de Literatura em 1929, sentiu
o cheiro do demônio já em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder. Casado com
uma judia, tratou de se mudar para a Suíça. Com o avanço das tropas nazistas na
Europa, partiu para os Estados Unidos, onde se tornou um dos intelectuais
públicos mais ativos e heroicos na luta contra Hitler.
Após a guerra, Mann, lenda viva da melhor
intelectualidade, passou a ser perseguido pelo macarthismo — foi visto como
comunista por ser um militante da paz. Ele, um rematado humanista, capaz de
raciocinar em desafio aos dogmas políticos, resolveu deixar aquela loucura
anticomunista e voltou a morar na Suíça, pouco depois do suicídio de seu filho
Klaus Mann, também escritor e homossexual assumido. Se recusaria a permanecer
muitos dias na Alemanha, por vergonha e inconformidade com o apoio de seus
compatriotas ao nazismo.
Um livro como “The magician: a novel”, do
escritor irlandês Colm Tóibín, espécie de biografia romanceada da vida de Mann,
ao enveredar por seu diário e cartas pessoais, escande outro de seus dramas — a
homossexualidade sublimada (definição de seu filho Klaus).
Era um tempo em que a orientação sexual
fora do papai e mamãe dava cadeia. Proust morria de medo de como interpretariam
o herói ambíguo de “Em busca do tempo perdido”. A França dele parecia ser mais
tolerante que a Inglaterra, onde Oscar Wilde foi condenado por sodomia. Depois
de cumprir sua pena, foi em Paris que Wilde passou seus últimos anos.
(Apenas em meados de 1960 a
homossexualidade deixou de ser crime na Inglaterra dos Beatles e David Bowie.)
Perseguido pelo nazismo e pelo macarthismo,
mas sem disposição de enfrentar mais essa pelota, intolerável mesmo para muitos
de seus amigos, o alemão Thomas Mann fez da literatura o bunker confessional de
sua sexualidade. “Morte em Veneza” explode o desejo entre um jovem efebo
(baseado num personagem real) e um famoso e premiado escritor mais velho (alter
ego de Mann). Visconti, ao filmar a obra em 1971, carregou mais na tensão
sexual entre os dois amantes — vale dizer, ainda um escândalo naquela época.
A desinformação das redes sociais,
reprodução preguiçosa do que foram os programas das rádios AM na década de
1980, sob a voz dos idiotas, teima em tirar de perspectiva e nivelar as
atrocidades. Nazismo e comunismo não se assemelham em suas desumanidades. Lula
não é comunista (ele é sindicalista), Putin (ao menos até agora) não é Hitler,
e Bozo nem sequer chega a ser um Plínio Salgado, já que o integralista não era
barrigudo e dominava a sintaxe.
Os tempos da alta conectividade sugerem que
a comunicação se tornou apenas mais fácil, porém superficial e ainda mais
manipulável. A era dos extremos enfrentada por Thomas Mann e T.S. Eliot recebeu
em troca obras como “A montanha mágica” e “A terra desolada” ou “Guernica”, de
Pablo Picasso, que também enfrentou duas guerras mundiais.
No Ano III de Bozo, até o momento, só se
anotam a bunda de Anitta e o barulho pelo cancelamento de “Com açúcar, com
afeto”. Pois é.
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