segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Demétrio Magnoli: Brexit promove revisionismo patriótico

O Globo

Sabe-se que o Brexit, isto é, a retirada britânica da União Europeia, foi um desastre político e econômico autoinfligido. O filme “Munique: no limite da guerra”, de Christian Schwochow, que estreou há pouco, sugere que deflagrou, também, um desastre moral. Nada contra o envelope estético, de alta qualidade tanto nas ambientações de época quanto nas atuações do trio de protagonistas formado por George MacKay, Jannis Niewohner e Jeremy Irons (Chamberlain). O ponto é outro: o filme condensa uma narrativa revisionista destinada a lavar as estrebarias da elite britânica.

Na Conferência de Munique, 30 de setembro de 1938, auge da política do apaziguamento, o francês Daladier e o britânico Chamberlain entregaram os Sudetos à Alemanha nazista, traindo os tratados de aliança firmados com a Tchecoslováquia. O ato desonroso proporcionou a Hitler um triunfo internacional maiúsculo, acelerando a marcha rumo à guerra mundial.

“Munique”, o filme, reescreve o episódio como um lance genial de Chamberlain que, em cenário desesperado, teria ganhado o tempo crucial para a preparação do confronto inevitável. A hora da vergonha converte-se, assim, na hora da previdente sabedoria.

Ganhar tempo — a alegação foi usada, a posteriori, pela historiografia stalinista como justificativa moral do Pacto Germano-Soviético de agosto de 1939 que, durante os dois anos da ofensiva ocidental de Hitler, garantiu-lhe uma retaguarda segura. “Munique” inspira-se nos apologistas de Stálin, mas para promover uma patriotada britânica. Nos dois casos, ficam na sombra as motivações de fundo dos pactos ignóbeis.

A URSS serviu-se do pacto com Hitler para ocupar os Estados Bálticos e a parte oriental da Polônia. Chamberlain queria, de Munique, bem mais que o aplauso fácil de uma nação assustada com a hipótese de uma nova guerra europeia. Segundo a sua lógica estratégica, a entrega dos Sudetos tchecos não só evitaria a guerra no ocidente europeu como precipitaria a ofensiva alemã contra a URSS. O cálculo dele estava errado, como logo se viu, mas isso não muda suas motivações.

Todos os fatos vieram à luz em 1999, numa obra de Michael J. Carley baseada em extensiva pesquisa em arquivos russos e ocidentais. Chamberlain nutria uma aversão à URSS muito maior que seu desprezo pelo nazismo. O primeiro-ministro representava a visão de ampla parcela da elite britânica, que enxergou em Hitler uma providencial ferramenta contra o espectro do Estado Soviético. O “apaziguamento” era a troca de uma guerra errada por uma guerra necessária. Os pacifistas queriam a carnificina — mas do outro lado da Europa.

A vertente principal da historiografia britânica jamais desculpou o primeiro-ministro da traição de Munique. Sabia-se, bem antes da obra de Carley, que o conflito entre Churchill e Chamberlain refletia as posturas contrastantes da elite britânica diante do nazismo. “Munique”, o filme, resgata um fio narrativo minoritário que, em nome do prestígio nacional, tenta ocultar as raízes políticas da conciliação com Hitler. Até aí, nenhuma novidade. O curioso é o ressurgimento desse tipo particular de revisionismo nas circunstâncias geopolíticas atuais.

“Cada um joga com as cartas que tem à mão”, diz Chamberlain em “Munique”, sintetizando a tese do filme. Não existiria nenhuma divergência conceitual com Churchill, mas apenas uma coleção circunstancial de cartas diferentes. O primeiro, diante da precária preparação militar, ganhou tempo, pagando o preço da desonra pessoal. O segundo lançou-se à guerra inelutável, colhendo tanto as próprias glórias quanto as devidas ao antecessor injustiçado.

“Munique”, suspeito, não é um ponto fora da curva, mas uma revisão histórica que nasce no solo do Brexit, ou seja, do orgulhoso isolamento britânico. “Este trono real de reis, esta ilha, esta ilha do cetro, gema preciosa delineada num mar de prata”: o Reino Unido não salvou a Europa apenas uma vez, com Churchill, mas duas, sucessivamente. A conferência da traição teria sido o episódio inaugural da heroica saga de resistência à máquina de guerra nazista. E viva a pós-verdade.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Tive que ler duas vezes para entender,conhecimento é tudo,quer dizer,quase tudo.