segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Marcus André Melo*: A política do desembarque

Folha de S. Paulo

Se ele é mais um personagem da velha política, as roupas de ditador-em-chefe já não lhe cabem

Paulo Guedes ameaça expor os nomes dos padrinhos dos ocupantes de cargos no governo, o que foi entendido como retaliação a movimentos de desembarque do governo por partidos e parlamentares. Esses movimentos são um fato estilizado do funcionamento das democracias, mas entre nós há singularidades. A principal delas: a abdicação do presidente quanto a seu papel de coordenador político do governo.

Bolsonaro pato manco já era esperado, como discuti neste espaço. Sua ascensão foi produto de circunstâncias extraordinárias e, ao fim e ao cabo, o nosso arranjo institucional acabaria impondo-se. Trata-se de um presidente hiperminoritário, sem partido e contando com apoio modesto na opinião pública para seu unilateralismo; e, mais importante, enfrentando controles constitucionais imperfeitos, mas robustos.

Tendo sido produto de uma maioria negativa, que se forjou pela rejeição da opção rival, sob colossal polarização, não era difícil prever que uma minoria cacofônica não lhe garantiria sustentação extraparlamentar e que as lideranças desses setores evanesceriam.

É certo que um cataclismo sanitário com impactos sistêmicos jogou luz sobre o líder acidental, magnificando sua inépcia. O fator que permitiu a sobrevivência do Executivo, a partir de abril de 2021, foi a formação de uma base parlamentar e escudo legislativo, o que lhe garantiu a presidência das duas casas legislativas.

Mas esse movimento contribuiu para erodir seu apelo, a negação de sua persona e suas bandeiras fortes. A política da autenticidade —que era o seu trunfo— não sobreviveu quando o líder abraçou o que antes renegava. Há incompatibilidade dinâmica entre o que é bom para sobreviver politicamente e para ganhar eleições. O novo personagem matou a persona política. Mas os fatores decisivos foram o recrudescimento e a resiliência da pandemia e seu impacto sobre o nível de preços e desemprego, além da política fiscal temerária, que levaram à reversão dos ganhos políticos obtidos com programas emergenciais.

A falta de competitividade eleitoral do presidente gera incentivos à defecção no seio da base de governo. O equilíbrio é instável e o efeito manada é iminente. O apoio do bloco parlamentar existiu enquanto a popularidade de Bolsonaro claudicava, mas o limiar já chegou.

Se Bolsonaro é mais um personagem carcomido da velha política, as roupas do ditador-em-chefe já não lhe cabem. E a narrativa de ameaça totalitária se enfraquece.

A maior ameaça, no entanto, já se materializou: é sua incompetência em liderar o país na crise sanitária e em cumprir o papel que a Constituição lhe reserva de ator central do sistema político.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Bolsonaro não serve nem pra ser ditador,falta-lhe tudo.