Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Lógica da equipe do presidente eleito do
Chile não é identitária, mas política. Escolha de ministro da Fazenda
respaldado pelo mercado foi a saída encontrada para que os demais ministros
possam mostrar serviço
“É
inverossímil! Sanhattan (centro financeiro de Santiago), todos os especuladores
e donos do Chile estão em festa.” Mal o jornal chileno “La Tercera” anunciara que
Gabriel Boric havia escolhido Mario Marcel, presidente do Banco Central, para o
Ministério da Fazenda, Ramón López, economista influente do Partido Comunista,
protestou no Twitter.
O PC chileno integra a coalizão que elegeu
Boric (Aprovo Dignidade) e é, depois do partido do presidente eleito,
Convergência Social, com cinco ministros, a sigla melhor representada no futuro
governo. Ocupa três ministérios, em igualdade de condições com o Partido
Socialista, mas, ao contrário deste, tem uma representante no coração do
governo, a futura porta-voz, Camilla Vallejo, ex-parceira do presidente eleito
no movimento estudantil.
A revolta do aliado não cessou. Dias
depois, o BC comandado pelo futuro ministro de Boric subiria a taxa de juro. E
López voltou a tuitar: “De 0,5% em julho de 2021 a taxa de juro subiu para 5,5%
em janeiro de 2022. Deve ser um recorde mundial. Uma irresponsabilidade sem
precedente (...). Boric premia a bestialidade nomeando Marcel como ministro da
Fazenda”.
Mario Marcel, PhD em Economia pela Universidade de Cambridge, é um ex-militante do Partido Socialista. Ocupou cargos na burocracia do governo desde a redemocratização e uma diretoria no Banco Mundial. Foi levado ao BC pela ex-presidente socialista Michelle Bachelet e teve seu mandato renovado pelo presidente conservador Sebástian Piñera.
A esquerda brasileira comemorou o
ineditismo da composição ministerial do futuro governo chileno pela diversidade
de gênero (14 mulheres de um total de 24), de regiões do país representadas e
pela participação de nomes egressos das ciências e de movimentos sociais.
Escondeu do regojizo, porém, o nome de Marcel. Instado a comentar a escolha de
Boric para a Fazenda, um petista graúdo, porta-voz atuante dos
“desenvolvimentistas” do partido, limita-se a dizer que é cedo para saber para
onde vai o Chile.
O convite a Marcel foi a saída encontrada
por Boric para que os demais ministros possam, oportunamente, mostrar serviço.
Professor da Universidade Alberto Hurtado, de Santiago, Tomás Undurraga vê o
futuro ministro da Fazenda como a chave da equação montada pelo presidente
eleito para viabilizar seu mandato.
Boric assumirá com um processo de
substituição da ordem constitucional da ditadura de Augusto Pinochet em curso.
A esquerda tem maioria entre os constituintes, mas uma nova Carta só será
adotada se aprovada em plebiscito. “A direita não tem um terço dos
representantes para aprovar a Constituição que quer, mas pode agir para
questionar o processo constituinte e levar a população a rejeitar o texto no
plebiscito”, diz. “Se o ambiente econômico se deteriorar, pode gerar a
percepção de que o momento de transformação política se esgotou.”
É uma formulação que deriva dos conflitos
vividos por esta geração que chegou ao poder. Undurraga lembra que Bachelet foi
derrotada, em 2015, na tentativa de instalar uma Assembleia Constituinte. Boric
e o núcleo duro de seu governo tinham sido eleitos deputados pelas
manifestações estudantis de 2012/2013. Testemunharam a resistência conservadora
que venceu a pressão de 300 mil pessoas nas ruas de Santiago e barrou o
processo.
Estavam no exercício do segundo mandato
parlamentar quando irrompeu nova onda de manifestações em 2019. Piñera viu sua
popularidade despencar em meio à violência policial e capitulou à convocação de
uma Assembleia Constituinte.
Grande parte da esquerda era contra a
proposta de Piñera porque queria derrubá-lo. “Boric definiu sua carreira
política no dia 15 de novembro de 2019, quando resolveu se insurgir contra seu
próprio partido e topou a convocação”, diz Undurraga. “Ele viu legitimidade no
processo e atuou como uma ponte entre setores da esquerda que aceitavam a
Assembleia e aqueles que a rejeitavam. Venceu com a conformação progressista da
Assembleia e, em seguida, ao conquistar a Presidência.”
O senso de história demonstrado por Boric
ainda passará por muitas provações. Ao escolher Mario Marcel, mostrou que a
lógica que o move não é identitária, mas política. O futuro ministro da
Fazenda, porém, está longe de lhe abrir as portas para o paraíso. É apenas o
sinal de que está ciente do tamanho da encrenca. Apesar de ser o presidente
chileno mais bem votado da história, com 58% dos votos no segundo turno, e de
ter levado nove partidos para sua equipe de governo, Boric não tem maioria na
Câmara, que, pela primeira vez, terá uma bancada da extrema direita-populista à
la Trump/Bolsonaro.
As pressões canalizadas pela eleição de
Boric não se movem pelo mesmo relógio do presidente eleito. E podem soar o
alarme antes do previsto pelo cálculo político do presidente eleito. O mais
sensível dos conflitos a serem administrados é aquele que envolve os mapuche,
povo que ocupa a região da Auracania, no Sul do Chile, séculos antes das
chegadas dos espanhóis.
Trata-se de uma população de quase 2
milhões de pessoas. A maioria vive de agricultura e pecuária de subsistência,
mas há grupos mobilizados, com invasões e ataques ao comércio e a propriedades
rurais, pela soberania na região, desafiada por políticas de colonização desde
o século XIX.
A causa mapuche foi abraçada pelas
manifestações estudantis, berço político de Boric. Ao longo da campanha, o
presidente eleito se manifestou contra a militarização da região pelo governo
Piñera. Para completar o xadrez, a presidente da assembleia constituinte, Elisa
Loncón, que chegou ao processo constituinte graças às cotas eleitorais, é líder
da bancada mapuche. Professora universitária, defende a soberania da região e a
anistia de presos por ataques.
A batata quente vai cair nas mãos de uma
jovem médica de 35 anos, que conheceu Boric na política estudantil mas, ao
contrário do presidente eleito, não seguiu na política partidária. Na condição
de presidente do Colégio de Médicos, Izkia Siches levou a entidade, na
pandemia, a ter um comportamento oposto àquele desempenhado pelo Conselho
Federal de Medicina, esteio dos negacionistas no Brasil.
Escolhida para o Ministério do Interior e
da Segurança Pública, Izkia formará, com Camilla Vallejo e Giorgio Jackson,
secretário-geral da Presidência, outro dos líderes estudantis que ascenderam à
política parlamentar depois das manifestações de 2013, a tríade de ministros
mais próximos de Boric.
Se a escolha de Mario Marcel surpreendeu a
velha-guarda petista, a atuação de Antonia Urrejola também colocará à prova as
linhas da tradicional política externa do partido. Escolhida para o Ministério
das Relações Exteriores, a advogada tem um currículo construído em passagens
por órgãos nacionais e internacionais de direitos humanos, tendo chegado a
presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com o apoio da
ex-presidente do país, Michelle Bachelet.
Ao longo dos governos do PT, a política
externa atuou por meio das rachaduras da geopolítica. No ano passado, o
ex-presidente Luiz Inácio Lula chegou a perguntar por que Angela Merkel podia
ficar 16 anos como primeira-ministra da Alemanha e Daniel Ortega não podia
seguir presidente da Nicarágua.
A trajetória de Antonia Urrejola sugere que
se o PT continuar nessa toada, não deve contar com o Chile. Frente à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, combateu abertamente as violações cometidas
na Nicarágua e Venezuela.
Esta parece ter sido a chave para sua
escolha. Quando deputado, Boric se recusou a relativizar os direitos humanos:
“Devemos (...) condenar com a mesma força a permanente restrição de liberdades
em Cuba, a repressão do governo de Ortega na Nicarágua, a ditadura chinesa e o
enfraquecimento das condições básicas de democracia na Venezuela”.
Na semana passada, o presidente eleito do
Chile disse à BBC que a prova de que a Venezuela conduz uma experiência
“fracassada” de poder é a diáspora de 6 milhões de venezuelanos.
Ex-chanceler de governos petistas e hoje
conselheiro de política externa de Lula, Celso Amorim, discorda da visão,
predominante em setores da esquerda, de que Antonia Urrejola é uma "aliada
dos Estados Unidos" na política para a América Latina: "Ela é de
fato, uma novidade no perfil tradicional da chancelaria, mas não será
manipulada. Trabalhou com José Miguel Inzulza [ex-secretário-geral da OEA] e
teve, como assessor na comissão interamericana, um ex-quadro do governo petista
[José Abrão, secretário nacional de Justiça na gestão José Eduardo Cardozo].
Direitos humanos também são nossa pauta, a diferença é como chegar lá".
Tratar a política externa chilena de Boric
como "aliada" americana é, no mínimo, um exagero. Um de seus
principais desafios é o Tratado Transpacífico de Cooperação Econômica, firmado
no governo Barack Obama em reação ao avanço chinês.
O acordo de livre comércio passou na Câmara
dos Deputados chilena contra o voto de Boric, para quem o TTP dá prerrogativas
excessivas às empresas transnacionais que operam no país. Piñera buscou o voto
dos senadores com o argumento de que se trata de um legado de Michelle
Bachelet.
Undurraga diz que Boric, sem romper com a
tradição internacionalista do Chile, sinaliza com a possibilidade de ampliar
cadeias de valor na região. Cita o lítio, cujas jazidas, no triângulo formado
pelas fronteiras do Chile, da Argentina e da Bolívia, correspondem a 68% das
reservas mundiais. Com um uso que vai das baterias de celular às placas de
energia solar, o mineral é tratado no Chile como o “ouro do futuro”.
Desde a virada na campanha do segundo
turno, que ampliou a aliança, o professor da Universidade Alberto Hurtado só vê
acertos. Se a condição estratégica do lítio para a indústria tecnológica
mundial é oportunidade ou armadilha para o Chile, será a prova dos noves da
sofisticada costura política do presidente eleito.
Um comentário:
Nossa,que textão! Tá certo que muito bem escrito e informativo.
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