quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Merval Pereira: Forçando o limite

O Globo

A banalização, pela repetição de argumentos vulgares, de certas situações que já mereceram, ou mereceriam, repúdio por parte da sociedade, é marca desse nosso mundo digital, em que qualquer um tem a seu alcance instrumento de amplificação de seus pensamentos, que antes não iam além das mesas de botequins ou conversas privadas, que só afetavam seus participantes.

Parece ser o caso do podcaster Monark, um ignorante a quem milhares deram um microfone e um canal de internet, e do deputado Kim Kataguiri, um liberal “à outrance”, que não distingue os limites razoáveis para suas posições. Esse regime de “vale-tudo”, na cabeça de Kataguiri, levaria a que o nazismo não fosse criminalizado para que a sociedade debatesse abertamente seus conceitos e objetivos e os repudiasse nas urnas.

A contrapartida seria termos que ouvir políticos do Partido Nazista defendendo a morte de judeus, ciganos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, questão já superada pela ética da convivência humana em sociedades minimamente civilizadas, que leva à empatia com os sofredores e à solidariedade com as minorias, que devem ser protegias pela lei.

Dizer que, se o Partido Comunista pode ser legalizado, também o Partido Nazista merece o mesmo tratamento, vai muito além da ignorância histórica, é má-fé. Nem um bêbado tira da cartola tamanha idiotice se já não estivesse convencido de que o nazismo merece ser tratado como simplesmente mais um regime político.

O perigo da repetição desses e de outros absurdos é justamente naturalizar comportamentos que não podem ser aceitos. Foi com essa leniência que o deputado Bolsonaro, apesar de defender abertamente a tortura, de usar o estupro como argumento e de se comportar como um troglodita, acabou eleito presidente da República. Suas declarações absurdas sobre diversos temas tornam-se normais e estimulam seguidores a adotar a agressão como maneira adequada para solucionar conflitos.

Essa situação me fez lembrar uma coluna que escrevi em 2017 — como é triste constatar que nada muda! — sobre a teoria da “Janela de Overton”, criada por Joseph P. Overton, ex-vice presidente do Mackinac Center for Public Policy, um centro de estudos liberal nos Estados Unidos, que morreu prematuramente aos 43 anos num desastre de avião. Overton imaginou uma “janela” onde as teses que são aceitas pela sociedade naquele momento podem ser defendidas pelos políticos.

Seriam teses “aceitáveis” ou “populares”. Se ideias “impensáveis” ou “radicais” forem defendidas, elas saem da “janela”, e o político não ganha votos. Portanto os políticos defendem as teses “populares”, e não necessariamente o que realmente pensam. Mas a sociedade muda com o passar do tempo, e ideias antes “impensáveis” podem se tornar “aceitáveis” para a maioria. E há também quem queira alargar a “janela”, criando situações que transformem ideias “radicais” em “aceitáveis”.

É o que acontece com a anistia ao caixa 2, tentada por lei, inviabilizada pelo espírito daquele momento, mas que proporcionou um clima leniente com o tema. Usada genericamente, transforma todos os crimes em questões menores, que podem ser anistiados pela Justiça Eleitoral. É o que vemos hoje. Políticos acusados pela Operação Lava-Jato estão conseguindo escapar das punições. Se a discussão fosse em torno da anistia à corrupção, que é do que realmente se trata, a rejeição da sociedade seria grande.

Alegar que querem “criminalizar a política” e normalizar o dinheiro por fora, como se fosse apenas para financiar as campanhas eleitorais, banaliza o problema. O mesmo pode estar acontecendo com o nazismo, não apenas aqui no Brasil, mas no mundo. Volta e meia temos pessoas fazendo gestos nazistas, seja uma holandesa no portão de Auschwitz, seja um comentarista brasileiro em frente às câmeras de televisão. Apanhados, dizem que era brincadeira. Não é possível brincar com coisas sérias.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Nossa,Merval matou a pau!