Valor Econômico
Políticas distorcivas e expansionistas não
levam em conta suas implicações futuras por puro cálculo eleitoral e projeto de
poder
Se há algo que une a esquerda e a direita
latino-americanas é a vocação para o populismo, que se concretiza na farta
distribuição de benesses a aliados políticos e eleitores. São medidas que geram
ganhos no curto prazo, mas irremediavelmente levam a perdas para toda a
sociedade no médio e longo prazos. Neste momento, Argentina, com um governo
peronista de esquerda, e Brasil, com um governo de direita, dão exemplos de até
onde a irresponsabilidade pode ir para um governante se manter no poder.
A Argentina negocia a renovação de seu acordo com o FMI. Sem reservas cambiais para pagar parcelas vincendas de empréstimos anteriores junto ao Fundo, não há outra alternativa na mesa - certamente não de atores privados - capaz de impedir o calote e o caos financeiro. O país já vive uma situação econômica delicadíssima, com inflação acima de 50% ao ano, déficit fiscal endêmico e expansão constante dos gastos públicos. Além de uma enorme gama de subsídios há também distorções de todo tipo, como controles de preços e de capitais, proibição de exportações, e um mercado de dólar paralelo onde a cotação, muitas vezes, supera 100% da oficial.
Ainda assim a esquerda peronista,
capitaneada por Cristina Kirchner e seu filho Máximo, ex-líder do governo no
Congresso, se opõe ferrenhamente ao acordo com o FMI, que implantaria reduções
de subsídios e corte moderado de gastos. Opõe-se não só ao acordo, mas a
qualquer medida de ajuste. O discurso é conhecido: o culpado pela inflação são
os grupos monopolistas malvados, e pelo desemprego o próprio FMI, de modo que o
acordo só pioraria a situação dos pobres. Não há qualquer proposta alternativa
mais consistente, somente rejeitar o acordo e continuar expandindo os gastos. O
objetivo é claro: manter políticas que beneficiam seus grupos de apoio e
potenciais eleitores, mesmo que logo à frente a inflação aumente e o caos se
instale.
No Brasil o exemplo mais recente é a
absurda proposta de redução - quiçá eliminação - de impostos sobre os
combustíveis em discussão no Congresso. Bolsonaro a defende porque os
caminhoneiros fazem parte de sua base eleitoral, enquanto parlamentares querem
alegrar consumidores em ano eleitoral. Aqui, ao contrário da Argentina, onde se
pode alegar cegueira ideológica, há somente um oportunismo gritante, embora as
consequências sejam tão ruins quanto em nosso vizinho.
Dependendo da versão que for aprovada, o
custo anual dessa medida será de R$ 50 bilhões a R$ 100 bilhões, algo entre
0,6% e 1,2% do PIB. O Ministério da Economia já se colocou contrário à
proposta, mas os aliados de Bolsonaro querem aprová-la, no intuito de ajudar o
capitão na eleição. Como a pasta encontra-se hoje esvaziada e sem poder
político, é provável que se aprove um corte significativo de impostos. A
proposta causa pelo menos três problemas sérios.
O primeiro e mais imediato é que agrava
sobremaneira o desequilíbrio fiscal, em um momento que o governo já fala em
contingenciamento dos gastos. Isto, claro, afetará expectativas sobre a
trajetória futura da inflação e sobre uma desejável redução dos juros, o que
tenderá a adiar a retomada dos investimentos, inibindo ainda mais a retomada da
economia. Com a previsão de crescimento do PIB para 2022 já próxima de zero, o
cenário acima aponta para uma possível recessão.
O segundo ponto é que a proposta altera um
preço importantíssimo da economia, com efeito sobre todas as cadeias
produtivas. Estimula-se o uso mais intensivo e/ou a adoção de tecnologias que
não seriam adotadas num ambiente de tributação neutra por um IVA com alíquota
única, por exemplo. Se o subsídio for só para o diesel - usado pelos caminhões
- prejudicará outros modais de transporte, como cabotagem e aviação. No médio e
longo prazo essas distorções trarão perda de eficiência e queda da
produtividade, já que não se fará o melhor uso dos recursos disponíveis.
Além disso, a proposta estimula o uso de
uma energia altamente poluente, quando se deveria incentivar sua substituição
por fontes mais limpas, como álcool e gás. O uso mais intensivo de diesel e
gasolina colabora, via emissão de gás carbono, para o aquecimento global que já
vem trazendo desequilíbrios climáticos, como secas e enchentes, prejudicando a
produção agrícola e a vida de todos brasileiros.
Fora isso, não custa lembrar que as
isenções tributárias do governo Dilma Rousseff, que deveriam vigorar por dois
anos, foram renovadas sucessivamente, por pressão dos beneficiados. Estas
saltaram de 2% para 4% do PIB durante o governo Dilma. Nada mais permanente do
que uma isenção temporária. Não há razão para acreditar que será diferente
agora.
O corte de impostos sobre combustíveis
proposto pelo atual governo aproxima uma vez mais o populismo de direita do de
esquerda. Esse tipo de medida explica boa parte da estagnação do Brasil,
Argentina e outros países da região nas últimas décadas. Políticas distorcivas
e expansionistas não levam em conta suas implicações futuras - ineficiência,
inflação, incerteza, altos juros, etc. - por puro cálculo eleitoral e projeto
de poder. Dilma, Bolsonaro e os peronistas argentinos têm muito mais
semelhanças que seus seguidores gostariam de admitir.
*Pedro Cavalcanti Ferreira é
professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
*Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV).
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