Um dos terrenos em que o ex-presidente tem se mostrado em plena forma é o dos entendimentos para articular, à sua estratégia na eleição presidencial, soluções negociadas para as competições estaduais. Tem buscado, com aparente êxito inicial, levar para discutir, nesse terreno dos arranjos estaduais, até mesmo quem, a princípio, está fixado, prioritariamente, em conquistar espaço próprio na disputa nacional, como é o caso de Gilberto Kassab e seu PSD. Há poucos dias, movendo pedras num tabuleiro em que se joga o jogo presidencial associado às disputas estaduais no Rio de Janeiro e em São Paulo, Lula atraiu o PSD e deu um tranco no PSB, que tem colocado óbices à concretização de uma federação partidária de esquerda nos termos em que o PT a deseja e propõe. Fixando-se no nome de Fernando Haddad (PT) em São Paulo, depois do PT ter acenado com apoio a Marcelo Freixo (PSB) no Rio, Lula provocou um bate-cabeça no PSB, entre a intenção de Marcio França de ensaiar uma resistência paulista (inclusive acenando a Ciro Gomes) e a de Freixo de mostrar-se carioca da gema e, para garantir o apoio do PT, não se dispor a participar dela. Ao agirem pensando mais nos seus quadros estaduais, ambos os socialistas deram passos em falso e, hoje, estão mais perto de terem suas pretensões a cabeças das respectivas chapas deslocadas para o Senado (França) ou até para a Câmara (Freixo). O gesto complementar de Lula para tirar espaço do PSB e pressioná-lo a um acordo foi mostrar simpatia, junto a Kassab e ao prefeito Eduardo Paes, pela inclusão do PSD nas tratativas em curso nos dois estados. No caso do Rio, o argumento é que um candidato de Paes ampliará mais que Freixo a frente contra a reeleição do governador, apoiada por Bolsonaro. No de São Paulo, a pressão sobre o PSB inclui propor a Kassab abrigar no PSD seu virtual vice, Geraldo Alkmin.
Na Bahia, parece que Lula tem, no seu
partido e entre aliados, interlocutores mais convencidos de que a lei da gravidade
funciona do plano nacional para o estadual. Apesar de na Bahia, à diferença do
Rio e de São Paulo, o PT e seus aliados controlarem o governo estadual, serem
amplamente predominantes na bancada baiana na Câmara e monopolizarem a do
Senado, a nenhum deles ocorre a veleidade de armar suas estratégias em
contraponto ou à revelia do eixo estruturante que é a disputa presidencial,
eixo ao qual, para condicionar também as alianças majoritárias estaduais, junta-se
agora, por conta de suas novas regras, a disputa para Deputado Federal.
Até essa terça-feira, 15/02, nove entre dez
observadores da política estadual raciocinavam como mais que provável, no campo
governista estadual, um arranjo que vinha sendo alimentado publicamente pelos
grandes atores desse campo (o governador Rui Costa e os senadores Jacques
Wagner e Oto Alencar), assimilado pelo PT como a melhor solução para o partido e
seus deputados. O senador Wagner
tentaria voltar ao governo, disputando a eleição contra ACM Neto, ex-prefeito
de Salvador, até aqui líder nas pesquisas de intenção de voto. O governador
ficaria no posto sem ser candidato a nada – apesar da avaliação amplamente
positiva, sua e do seu governo em pesquisas - para garantir apoio governamental
à campanha ao Governo e ao Senado, bem como à eleição de deputados estaduais e
federais. Quanto à vaga para disputar o Senado seria destinada à reeleição de
Oto. Aplacar-se-iam, em nome da acomodação possível numa aliança que já dura
quatro mandatos, os desejos originais do governador de disputar a vaga e o do
atual ocupante de ser guindado à cabeça da chapa.
Boa parte do PT baiano parecia crer que a performance
pré-eleitoral de Lula seria uma sopa nesse mel. Induziria a essa acomodação, para
si interessante, que, em caso de êxito, prolongaria a hegemonia petista,
ameaçada pela performance de ACM Neto. Por isso teve grande impacto ontem
a notícia de que, sob a batuta de Lula, as duas maiores lideranças petistas do
Estado cogitam entregar a cabeça da chapa ao PSD, representado na Bahia pelo
senador Oto Alencar, indo o atual governador Rui Costa para a disputa senatorial,
admitindo-se até que, durante a eleição, o Estado seja governado pelo
vice-governador João Leão, quadro político filiado ao PP e que vinha a meio
caminho de tornar-se dissidente. O dia de ontem inscreveu na pauta estadual
essa outra hipótese de acomodação, agora uma guinada ampla, cujo objetivo
político transcende muito ao que está em jogo na Bahia.
No dia seguinte à reunião com Lula, Jacques
Wagner mantém o discurso de pré-candidato porque os entendimentos ainda não
puderam ser concluídos. Afinal, nada com o PSD ocorrerá por osmose ou mera gravidade,
seja na Bahia ou em qualquer lugar. Mas a solução pela candidatura de Oto Alencar
tem muita razão de ser. Ela tem racionalidade para Rui Costa (que quer ser
senador), para Wagner (que continuaria senador e talvez ministro, sem precisar
se arriscar numa campanha contra Neto agora) e, principalmente, para Lula, que
além de manter a base aliada mais unida na Bahia, precisa do apoio nacional do
PSD para tentar ganhar no primeiro turno e talvez abrigar Alkmin, dando um
chega pra lá final no PSB, que segue resistindo em São Paulo (a prioridade do
PT), contra Haddad, o homem de Lula.
A solução Oto pode não atender a algumas
razões presentes no PT baiano. Na sua militância fisiológica agarrada aos
cargos do Estado e no que ali ainda há de militância ideológica. Contraria
também planos de candidatos petistas ao legislativo, principalmente deputados
estaduais que temem o que João Leão poderá fazer contra elas, em nove meses de
governo, para favorecer candidatos da sua turma. Mas que valem essas razões
contrariadas no PT baiano se comparadas à do coração lulo-paulista que bate no
PT?
Suponho que o acordo ainda não está feito,
em grande parte, porque Kassab tem opções. Ao menos duas. Acena-lhe também a
agregação que, através da pré-candidatura de Simone Tebet, o MDB tenta com o
União Brasil e dissidentes do PSDB. Parte desses últimos acenam,
alternativamente, alimentando a pretensão originária de Kassab de lançar um
candidato, com a filiação ao PSD do possível migrante governador tucano Eduardo
Leite, ao tempo em que identificam, entre os novos quadros daquele partido, o
capixaba Paulo Hartung como possível vice. Lula conhece os limites do poder de
persuasão de ambos os acenos concorrentes que se fazem ao PSD. O primeiro
esbarra na propensão dos referidos partidos tradicionais a privilegiarem a
eleição de fortes bancadas. O segundo aceno incorre em problema diverso, que é
o sotaque de “nova política” que possui a virtual chapa gaúcho-capixaba, que se
propõe a um partido cuja alma é o pragmatismo da “política dos políticos”. Mesmo
assim Lula se empenha parecendo encarar essa adesão do PSD como uma meta
relevante.
Mas retornemos à Bahia para dizer que o
novo acordo não está concluído também porque Oto ainda não topou. Ele teria
reeleição tranquila para o Senado, por que se arriscar assim? Não é ingênuo e sabe que vai ser ainda mais difícil
derrotar ACM Neto tendo João Leão no exercício do governo, durante a campanha.
A garantia de que o tampão se empenhará na sua campanha é quase nula, pois a
tendência é a máquina ser usada para eleger deputados em dobradinha inclusive
com Neto.
Além disso, a tendência "natural"
da maioria dos eleitores baianos é votar em Lula, em Neto e em Rui Costa, para
o Senado. E nem Lula, nem Rui vai lutar além de um ponto igualmente inercial para
reverter isso por causa de Oto. Assim como ACM Neto não vai brigar com
eleitores de Lula e Rui para tentar eleger qualquer senador seu, ou apoiar Sergio
Moro, Ciro Gomes ou outro candidato nacional qualquer.
Oto Alencar é um político experiente e sabe
de tudo isso. Então resistirá, se puder, a disputar o governo. Mas as pressões
são imensas. Primeiro, consta que houve um movimento de Rui, combinado com
Lula, de expressar o desejo de disputar o Senado. Isso ameaça claramente a
reeleição de Oto Alencar. Simultaneamente Lula oferece a Kassab a cabeça da
chapa e Wagner, nos bastidores, admite desistir em favor de Oto. Arremate,
quiçá necessário, será Lula acenar com uma posição federal em caso de derrota.
É possível intuir o clima. A pressão pode ficar
insuportável e restar a Alencar aceitar e aproveitar a candidatura para, ao
menos, aumentar um pouco mais sua bancada. E vai que a onda Lula é forte o
suficiente para empurrá-lo e ele termina vencendo! É difícil pois Neto está
forte, mas impossível não é.
Mas ACM Neto também é, de certa forma,
beneficiado pela solução Oto. Enfrentar Wagner seria mais difícil. Logo, esse
acordo, caso concretizado pela captura de Kassab para a nave lulista, tende a
produzir uma despolarização na Bahia, como subproduto da agora mais resoluta
caminhada de Lula ao centro.
Neto não quer confrontar Lula e Lula, sendo
Oto o seu candidato, pode ficar também mais olímpico do que se o adversário de
Neto fosse Wagner. No limite, Lula estará certo se pensar que um cenário com
ACM Neto governador não será desfavorável a um governo seu. É provável que ACM Neto,
se eleito, possa cumprir, durante o próximo quatriênio, papel político
moderador da direita, similar ao que Aécio Neves cumpriu junto ao PSDB quando
governou Minas durante o primeiro governo Lula. Se vingar, o acordão baiano
(sua face exposta no campo governista estadual, assim como sua virtual face
oculta, que pode ir mais além) pode ajudar, a médio prazo, a estabilidade
política nacional.
Essa dialética baiano-nacional não é
inédita. Vigorava no tempo do carlismo enquanto em Brasília e abaixo das Minas
Gerais imaginava-se ser aquele fenômeno um simples resquício de coronelismo. Já
é tempo de aposentar certos termos que não mais se reportam ao mundo real e
encarar movimentos como os de ontem não como jabuticabas baianas, ou
resiliências nordestinas, mas como exemplares de uma gramática política
nacional. A conciliação tem muitos apelidos jocosos. Mas será sensato lhe
atirar pedras quando Bolsonaro ainda nos desgoverna e o bolsonarismo insinua
sobreviver ao seu mito?
Nada está escrito nas estrelas. Tudo está
sendo escrito agora e nada foi ainda concluído. Os ventos podem mudar de novo,
Kassab resistir ao acordo e preferir se juntar nacionalmente a alguma tentativa
de terceira via. Se isso ocorrer, muita
coisa pode mudar nas alianças, na Bahia e em muitos lugares.
Se é provável que ainda tenhamos reviravoltas, creio que já temos algo a comemorar. Parece esgotado o tempo da preparação de pugilistas para entrarem num ringue pela faixa presidencial. Ciro Gomes, João Doria, Sergio Moro lançaram suas candidaturas com essa pegada. Passamos assim todo o ano de 2021. Esse momento parece exaurido e agora observa-se tentativas mais agregadoras, seja a de partidos tradicionais de centro e centro direita, seja a de Lula indo agora, de fato, ao centro. É a política de conciliação renascendo como unha. Isso é bom porque é o caminho para encarar a nossa maior questão de agora, que é nos livrar e livrar o país do pesadelo de Bolsonaro e revigorar a democracia. Não existem “objetivos estratégicos” ou "ideais históricos" que sejam mais importantes do que obter isso. Tem luz no fim do túnel.
*Cientista político e professor da UFBa.
Um comentário:
Minha cabeça deu um nó com a barafunda de partidos.
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