EDITORIAIS
Pesquisas não significam eleição definida
O Globo
A corrida eleitoral nem começou, mas, pelas
análises das últimas pesquisas, parece que já está definida. Para a maioria, a
única dúvida é se o presidente Jair Bolsonaro perderá para Luiz Inácio Lula da
Silva no primeiro ou no segundo turno. Uma minoria ainda acredita que Bolsonaro
tem chance. Mas todos só enxergam essas duas possibilidades. É como se a
polarização que viceja nas redes sociais tivesse posto antolhos no debate e
deixado o país numa trilha inexorável, fechando os caminhos para a reflexão
serena.
É um truísmo, mas não custa repetir:
ninguém ganha eleição na véspera. A História não cansa de dar exemplos — em
escala municipal, estadual ou federal — de candidatos no início desconhecidos
que, no final, saem vitoriosos como resultado da argúcia política ou da
capacidade de sintonizar o espírito do eleitorado. De Luiza Erundina a
Alexandre Kalil, de Romeu Zema a Wilson Witzel, de Fernando Collor ao próprio
Bolsonaro, todos eram dados como azarões — e todos venceram.
O Datafolha divulgado ontem revela uma oscilação nas intenções de voto, tanto em Bolsonaro quanto em Lula, com este ainda na frente daquele. Mas é ilusão acreditar que as preferências estejam consolidadas. Claro que a disputa entre os dois é o cenário mais provável. Mas não o único possível. Embora os números reforcem a percepção de que o jogo esteja definido, ainda estão contaminados pelo passado, e obviamente estão na frente os candidatos mais conhecidos do eleitor.
É verdade que o ambiente digital já
antecipa o embate e que as articulações para os palanques regionais estão em
curso, mas a população só se envolve para valer quando estreia a propaganda na
televisão. Tudo ainda pode mudar — e nada é mais fatal na política do que a arrogância
daqueles que julgam conhecer o futuro.
Para obter sucesso, é certo, qualquer
candidatura alternativa precisaria superar obstáculos nada triviais. O primeiro
— e mais óbvio — é o nome. Não existe na urna uma opção identificada como
“terceira via”. Pelo menos quatro pré-candidatos almejam ocupar tal posto: o
ex-ministro Ciro Gomes (PDT), o ex-juiz Sergio Moro (Podemos), o governador
João Doria (PSDB) e a senadora Simone Tebet (MDB). Há conversas entre os três
últimos para que apenas um concorra, de modo a evitar a fragmentação do
eleitorado. É um passo essencial, mas insuficiente.
O segundo obstáculo é mais desafiador:
adotar uma estratégia consistente para chegar ao segundo turno. Bolsonaro
venceu em 2018 graças ao êxito da campanha digital e já dedica esforços a
repetir a dose. Não será fácil, contudo, superar a rejeição acumulada em três
anos, sobretudo com a gestão desastrosa da pandemia. Lula, em contrapartida,
tenta reunir um amplo arco de alianças para se apresentar como candidato
anti-Bolsonaro. Atraiu até um rival histórico do PT, o ex-tucano Geraldo
Alckmin. O espaço para candidaturas alternativas aos dois, embora estreito,
também fica mais claro. Para chegar ao segundo turno, tal candidatura teria de
convencer o eleitor de Bolsonaro de que tem mais chance de derrotar Lula. É uma
missão dura, mas não intratável.
O final da semana que vem, quando se esgota
o prazo para quem pretende concorrer deixar cargos no Executivo, é o primeiro
marco no calendário eleitoral. As possibilidades se afunilam, mas é fundamental
lembrar que o vencedor só é definido no dia da votação.
Operação que mira poder financeiro de
quadrilhas é exemplo a seguir
O Globo
Existem formas mais inteligentes e menos
truculentas de enfrentar o crime. Isso ficou evidente na bem-sucedida Operação
Mercador de Ilusões, deflagrada na quarta-feira pela Polícia Civil, pelo
Ministério Público do Rio e pela Secretaria de Operações Integradas do
Ministério da Justiça, com colaboração de outros órgãos em diferentes estados.
Após três anos de investigações, descobriu-se que uma quadrilha havia lavado R$
3 bilhões do tráfico usando “laranjas” e empresas de fachada. Atuando em nove
estados e no Distrito Federal, o bando tinha como maior cliente o chefe do
tráfico do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do
Rio.
O fio da meada começou a ser puxado em
2019, quando a polícia suspeitou de dois depósitos feitos numa agência bancária
de São Gonçalo, de R$ 30 mil e R$ 23 mil, destinados a empresas em outros
estados. Com ajuda de relatórios do Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf), a polícia desvendou um esquema criminoso que envolve
empresários suspeitos de lavar dinheiro para o tráfico. A Justiça decretou a
prisão de oito acusados, entre empresários e “laranjas”, expediu mais de 40
mandados de busca e apreensão e ordenou o bloqueio de R$ 681 milhões dos
envolvidos.
Entre os bens apreendidos, estão imóveis em
Brasília, carros de luxo, joias e dinheiro. Segundo a polícia, um casal de
empresários que mora na Argentina ocupa posto-chave na organização. São donos
da Buenos Aires Assessoria Empresarial e Viagens Ltda., destino de um dos
depósitos que deram origem às investigações. Embora tenha capital social de R$
50 mil, a empresa movimentou milhões nos últimos anos.
O combate ao crime precisa ser tratado como
questão nacional, ou mesmo transnacional, já que as quadrilhas atuam não só nos
estados brasileiros, mas também em países da América do Sul, como já ficou
comprovado em episódios recentes de violência. Apesar disso, o país ainda
carece de um plano nacional de Segurança Pública. Imaginar que as polícias
estaduais darão conta de multinacionais do crime é um equívoco, que só
contribui para fortalecer as organizações criminosas.
Combater traficantes e milicianos que
controlam extensões consideráveis do Estado brasileiro é fundamental, porque
esses bandidos impõem o terror aos moradores, muitas vezes obrigados a pagar
taxas absurdas sobre serviços essenciais. A guerra contra essas quadrilhas,
traduzida em ações letais que expõem inocentes, costuma produzir poucos
resultados práticos. Não reduz o poder das organizações criminosas, como
mostram os persistentes indicadores de violência. O combate exige inteligência,
integração entre polícias e Ministério Público, cooperação entre estados e
outros países, ajuda de diferentes órgãos da administração. Não é trabalho
fácil. Mas a operação que mirou o poder financeiro das quadrilhas mostra que é
possível avançar por outro caminho.
Distância menor
Folha de S. Paulo
Datafolha mostra Bolsonaro mais perto de
Lula, apesar de economia e desgoverno
A distância entre Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) e Jair Bolsonaro (PL) diminuiu. É o resultado mais notável da pesquisa
Datafolha sobre as intenções de voto para presidente. O mandatário também
se aproximou de adversários que ainda o derrotam em um segundo turno.
O discreto avanço de Bolsonaro aparece na
pesquisa de declaração de voto espontânea. Em dezembro de 2021, Lula tinha 32%,
ante 30% agora; Bolsonaro, marcava 18% e subiu a 23%. A diferença entre os dois
adversários caiu de 14 pontos para 7 —idêntica à que se registrava nos
levantamentos de julho e de setembro do ano passado.
Na pesquisa estimulada, em que são
apresentadas listas de candidatos ao entrevistado, Lula bate Bolsonaro por
margem ainda considerável, 43% a 26%. Não é possível comparar as preferências
de março com a da pesquisa anterior, pois o quadro de postulantes mudou.
Na pesquisa espontânea, o presidente
avançou de modo similar nas categorias em que o Datafolha divide o eleitorado
—renda, instrução, região, idade e sexo.
Ainda assim, na pesquisa estimulada tem
mais adeptos entre homens (31%) do que mulheres (21%), menos entre eleitores
com ensino fundamental ou renda inferior a dois salários mínimos (19%) ou do
Nordeste (20%). Empata com Lula entre aqueles de renda de 2 a 5 salários
mínimos e vence o petista no eleitorado de renda mais alta.
No
segundo turno, o petista derrota o mandatário por 55% a 34%, ante o placar
de 59% a 30% de dezembro. Bolsonaro ganhou 4 ou 5 pontos percentuais contra
todos os seus adversários hipotéticos numa rodada final da disputa eleitoral.
Todavia continua a ser rejeitado por maioria absoluta, de 55%.
É difícil explicar variações nas
preferências do eleitorado, ainda mais aquelas pequenas em termos estatísticos.
O presidente ganhou pontos remando contra a maré da precária situação
socioeconômica.
A taxa de inflação anual continua na casa
dos 10% anuais, e está viva a revolta com a alta dos combustíveis. A renda cai,
pois os empregos criados pagam pouco e a carestia reduz o poder de compra.
Bolsonaro dedica-se de modo mais intenso à
campanha eleitoral e política, atividade que domina seus dias desde a posse.
Conta com o trunfo do novo Auxílio Brasil.
É possível ainda que tenha avançado nas
intenções de voto porque no momento aparece com menos frequência no noticiário
negativo, pois baixou o tom de suas declarações contra a democracia e a razão
—como no caso de sua campanha infame contra as vacinas.
Seja qual for a explicação, o fato é que o
candidato Bolsonaro sobrevive ao seu desgoverno.
Saúde oculta
Folha de S. Paulo
Mesmo reformulada, proposta de 'open
health' de Queiroga permanece obscura
A saúde pública brasileira fracassou, até
aqui, em implantar o prontuário médico eletrônico em âmbito nacional. As
iniciativas para criá-lo remontam aos anos 1990, mas nunca se materializaram
apesar de somas consideráveis de verbas terem sido desembolsadas.
São muitas as vantagens de reunir numa
plataforma digital todas as informações relevantes sobre o paciente, incluindo
exames laboratoriais e de imagem. Fazê-lo aumentaria a precisão dos
diagnósticos, agilizaria as decisões médicas e reduziria os gastos com a
solicitação de exames já realizados.
Com alguma flexibilização nas regras sobre
pesquisas, haveria também um enorme manancial de estudos epidemiológicos.
Como sucessivas administrações federais
pouco ou nada fizeram, diversas redes, públicas e privadas, desenvolveram suas
próprias versões de prontuário eletrônico. Paradoxalmente, esses avanços locais
tornam mais complexa uma integração nacional futura, devido a escolhas
diferentes acerca de sistemas e da padronização dos dados.
Se a inação governamental é deplorável,
pior é misturar a ideia com interesses privados. Foi o que fez o ministro
Marcelo Queiroga, ao lançar seu projeto de "open health" —um
desconjuntado simulacro do open banking, o movimento de desconcentração
bancária deflagrado por avanços tecnológicos.
Na primeira versão da proposta, seguradoras
e operadoras de saúde teriam acesso aos dados de seus clientes e poderiam
utilizá-los para calibrar as mensalidades a ser cobradas. Trata-se de um
absurdo.
Uma das primeiras providências na regulação
dos prontuários é justamente assegurar que administradores de planos não tenham
acesso às informações, sigilosas.
Apenas profissionais de saúde podem
consultá-las e quando há justa motivação para tanto. Operadoras devem buscar o
lucro com base no bom cálculo atuarial e na eficiência dos serviços, não na
exclusão dos clientes mais doentes.
Na atual versão da proposta, esse desatino
é abandonado. Sobra, porém, um mal explicado sistema de informações financeiras
de clientes de planos que podem ser compartilhadas —uma espécie de SPC
exclusivo para a saúde. Difícil entender a utilidade de tal mecanismo.
Medidas para promover a concorrência são bem-vindas, desde que legais e éticas, e cabem primordialmente à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A missão principal do ministério é zelar pelo SUS, o que não parece interessar tanto a Queiroga.
Isso também é corrupção
O Estado de S. Paulo.
Bolsonaro repete que não há corrupção em seu governo, mas o escândalo do MEC é mais um caso, entre outros, de mau uso e de desvio de dinheiro público
Como uma espécie de contraponto às muitas e
evidentes confusões, omissões e ineficiências de sua administração, Jair
Bolsonaro gosta de dizer que, pelo menos, não há corrupção em seu governo.
Nesta semana, voltou ao tema duas vezes, assegurando que zela pelo dinheiro
público e gabando-se de que o País está “há três anos e três meses sem
corrupção no governo federal”.
Parece claro que o presidente estava se
referindo a escândalos como a roubalheira do petrolão e do mensalão, que
marcaram os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff e que tanto ultrajaram
os brasileiros. Mas a corrupção na administração pública não se caracteriza
somente pelo assalto a estatais ou pela apropriação privada de dinheiro do
contribuinte. Quando o governo permite que oportunistas interfiram na
distribuição de verbas públicas para o atendimento de interesses particulares,
sem qualquer transparência ou controle dos cidadãos, trata-se de degradação da
administração pública – em português claro, é corrupção.
O escândalo do gabinete paralelo no
Ministério da Educação (MEC), com evidências de tráfico de influência e
direcionamento de verbas por parte de pastores evangélicos que não têm nenhum
cargo no governo, é apenas o exemplo mais recente desse desvirtuamento da
gestão do dinheiro público.
O governo Bolsonaro escarnece da
inteligência alheia quando se apresenta como exemplo de lisura com o dinheiro
público. Para começar, Jair Bolsonaro assumiu a Presidência carregando consigo
graves suspeitas de rachadinha envolvendo sua família e até hoje não explicou
as movimentações financeiras suspeitas, os cheques de assessores nas contas de
familiares ou as compras de imóveis com dinheiro vivo. Para piorar, desde
então, acumulam-se evidências de que Jair Bolsonaro pode ter usado o cargo para
dificultar as investigações. Em vez de maior transparência, ao longo do governo
só aumentou a opacidade sobre o tema.
No ano passado, a CPI da Pandemia revelou
indícios graves de corrupção, no âmbito do Ministério da Saúde, envolvendo
compra de vacinas, com negociações obscuras em um shopping center, acusações de
pedido de propina e inexplicáveis sobrepreços. O governo federal simplesmente
negou as suspeitas, sem apresentar nenhuma explicação à população. Essa
informalidade, sem procedimentos de transparência e controle, é um dos
ambientes mais férteis para a corrupção.
O caso do gabinete paralelo no Ministério
da Educação repete esse padrão de informalidade, com graves suspeitas de
corrupção e mau uso de dinheiro público. Tem até denúncia de pedido de propina
em ouro. Mudam-se os Ministérios e os nomes dos envolvidos, mas as práticas
continuam as mesmas: as suspeitas de corrupção não são levadas a sério, e o
ministro segue no cargo como se tudo fosse absolutamente normal. Segundo
revelou o Estadão, após receber denúncia de cobrança de propina envolvendo
pastores, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, teve pelo menos sete reuniões
com essas lideranças religiosas. Haja crença na doutrina da infalibilidade,
agora aplicada a pastores.
Nada disso deveria surpreender num governo
marcado pelo escândalo do orçamento secreto, em que, sem transparência, sem
controle e sem critérios técnicos, recursos do Orçamento da União foram
distribuídos a parlamentares dispostos a apoiar o governo em troca de verbas
para seus redutos eleitorais.
Todos esses casos são muito graves, e sabe-se
lá o que mais virá à tona. Como não foram os sistemas ordinários de controle do
governo que os detectaram, é provável que o País continue dependendo da
imprensa para descobrir aquilo que a corte bolsonarista gostaria de manter em
sigilo.
A constatação de que não se sabe o que está
sendo feito do dinheiro público deveria causar tanta indignação quanto
descobrir, por exemplo, que empreiteiras amigas, beneficiárias do assalto à
Petrobras durante os governos lulopetistas, reformaram um sítio frequentado pelo
ex-presidente Lula. Há muitos outros modos de mal gastar e de desviar recursos
públicos de suas finalidades originais, como mostram esses três anos e três
meses de governo Bolsonaro.
Regalia descabida e inoportuna
O Estado de S. Paulo.
A volta do quinquênio é uma excrescência
que nem remotamente figura entre as prioridades do Congresso nessa quadra
dramática para o País
Com apoio explícito do governo do
presidente Jair Bolsonaro, um grupo de parlamentares atua para fazer avançar no
Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 63/2013, que ressuscita a
excrescência do quinquênio, espécie de bônus, equivalente a 5% do salário, que
era pago a certas categorias do serviço público a cada cinco anos. Em boa hora,
a regalia foi extinta para os servidores do Poder Executivo em 1999 e para os
servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público em 2005.
Os congressistas não deveriam nem sequer
aceitar discutir esse tipo de privilégio mesmo que o País estivesse vivendo na
abundância. Como os brasileiros comuns, pagadores de impostos, estão lutando
contra a inflação, o desemprego e, em alguns casos, a fome, é um acinte que tal
proposta tramite, e com apoio do governo. As atenções dos parlamentares, como
de resto de todo o Poder Público, deveriam estar voltadas a projetos que tornem
menos aflitiva a vida de todos os brasileiros, não só a de uma casta de funcionários
públicos.
O que se vê, no entanto, é uma ação
diametralmente oposta no Congresso. Senadores apresentaram ao menos quatro
emendas ao texto da PEC 63 com o objetivo de estender o pagamento do quinquênio
a todas as categorias do serviço público, e não apenas a juízes e promotores,
como previsto no texto original. “Se aprovada a PEC 63, é importante reconhecer
que os problemas que a proposta visa a corrigir não são exclusivos da
magistratura e do Ministério Público, mas atingem todo o funcionalismo”, afirmou
o senador Alessandro Vieira (PSDB-SE). Já a senadora Soraya Thronicke (PSL-MS)
defendeu a extensão do quinquênio aos defensores públicos porque, em suas
palavras, “não há como pensar a tríade sistêmica da Justiça sem a presença da
Defensoria Pública assim como não se pode admitir o alijamento de tão cara
instituição da PEC 63 por inegável violação à simetria constitucionalmente
estabelecida aos membros de tais carreiras”.
Ao longo dos últimos anos, associações de
juízes e promotores exerceram forte lobby sobre parlamentares para que o
quinquênio voltasse a ser pago, malgrado já figurarem no topo da elite do
funcionalismo por seus altos salários e penduricalhos de toda sorte, que não
raro fazem seus vencimentos extrapolarem o teto constitucional correspondente
ao salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), hoje fixado em R$
39,3 mil mensais. De forma marota, o quinquênio é chamado de “parcela
indenizatória de valorização por tempo de serviço” justamente porque a palavra
“indenizatória” se presta a caracterizar um pagamento que não estaria sujeito
ao abate-teto, embora, na prática, represente um aumento de salário.
Do ponto de vista do governo, há interesse
no avanço da PEC 63 como uma forma de conceder benesses a segmentos do serviço
público sem violar a lei eleitoral no ano em que Bolsonaro tentará a reeleição.
A reportagem do Estadão apurou ainda que o governo espera que, caso seja
aprovada, a volta do quinquênio reduza a pressão sobre Bolsonaro por reajustes
pontuais nos salários do funcionalismo. Quando anunciou a concessão de aumento
para agentes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e do
Departamento Penitenciário Nacional, em fevereiro, o presidente provocou uma
reação tão forte de outras categorias que chegou a pedir a “compreensão” dos
servidores e dizer que iria “salvá-los mais à frente”.
Já para os que se beneficiariam com a volta
do quinquênio, nunca houve momento mais propício para retomar uma PEC que
dormitava no Congresso havia mais de oito anos. Não é todo dia que se juntam um
presidente fraco e um Legislativo forte, tradicionalmente sensível às demandas
dos servidores públicos.
Discutir a volta do quinquênio avilta o bom senso, o espírito público e a própria ideia de República. A PEC 63 nem remotamente se aproxima das necessidades mais prementes dos brasileiros. Ao contrário, tem o efeito de desviar esforços e, sobretudo, recursos financeiros necessários ao enfrentamento de problemas muito mais sérios do que a remuneração do funcionalismo.
Não há fim à vista para a tragédia
ucraniana
Valor Econômico
Moderar Putin e por fim à tragédia
ucraniana seriam proezas de um estadista
A Ucrânia está sendo reduzida a cinzas e,
um mês após o início da invasão russa, nada indica que essa tragédia esteja
próxima do fim. O poderio militar da Rússia é muito superior ao da Ucrânia e
seus efetivos militares enviados equivalem, grosso modo, ao de todo o exército
ucraniano. No entanto, a resistência galvanizada pelo presidente Volodymyr
Zelenski e os erros militares da Rússia impedem uma resolução rápida do
confronto, como esperava Putin. O tempo joga contra a Ucrânia e ainda que
prejudique os planos de Putin, não passa por sua cabeça nada menos que uma
vitória, em seus termos.
Apesar dos apelos diários de Zelensky, a
Otan, única força que poderia deter Putin, não agirá em território ucraniano
diante das ameaças do Kremlin de uma guerra nuclear. Ainda que recebendo armas,
a Ucrânia não tem força aérea operacional, como mostra a inacreditável caravana
de tanques russos em direção a Kiev, desde o início da invasão. Mas a
resistência dos militares e civis armados tem produzido milagres de resistência
diante de uma descomunal desproporção de forças.
Mariupol, cidade portuária no sudeste
ucraniano, virou uma paisagem de escombros, sob fogo concentrado russo. As
forças armadas da Rússia, como mostraram suas atuações na Síria, e mostram
agora na Ucrânia, têm particular apreço por bombardear hospitais, maternidades,
escolas e prédios civis, uma estratégia destinada a vencer pelo terror e
sugestão de que não haverá compaixão pelos vencidos, se não entregarem as
armas. É impossível saber o número de mortos até agora no conflito, de um lado
e de outro. A contabilidade de pouco mais de 400 vítimas civis é tão pouco
crível quanto a de 15 mil soldados russos. Não se sabe a verdade.
As negociações diplomáticas vivem um
impasse. Putin quer mais avanços no terreno para impor suas demandas. As
apresentadas por ele são pesadas para o governo ucraniano. Zelensky se conforma
com a neutralidade ucraniana (não adesão à Otan), a carta mais barata, ainda
que signifique a usurpação de sua independência manu militari. A Rússia, porém,
tem a intenção de anexar a região do Donbas, a sudeste, possivelmente
estendendo o território rebelde até a Crimeia, anexada em 2014.
Mesmo que mais lentamente, as tropas russas
progridem rumo a Kiev. Há poucas chances de se evitar um desfecho ainda mais
sangrento e devastador do conflito. As sanções econômicas, com o isolamento da
Rússia do sistema financeiro internacional e o sequestro de suas reservas,
podem ser eficazes, mas seu tempo é diferente do tempo da guerra. Uma das
premissas das sanções é tornar o preço da invasão russa tão grande que novas
aventuras de Putin sejam para sempre desencorajadas. Mas não mudarão de
imediato o jogo no campo de batalha, que favorece a Rússia.
O cerco financeiro e comercial mergulhará a
economia russa em profunda depressão, mas na ausência de oposição com
capacidade de dividir as elites russas e tornar a queda de Putin factível, o
autocrata não mudará seus planos. Talvez a única pessoa com força suficiente
para demovê-lo pacificamente seja Xi Jinping, o presidente da China, mas é
impossível saber o que ele pensa ou fará.
A China tornou-se aliado vital para a
Rússia, da qual ela dependerá para escoar mercadorias que estão sendo barradas
por Europa e EUA, obter divisas e se manter à tona diante do severo bloqueio
financeiro. Xi aceitou o argumento russo, da provocação da Otan, para
justificar a invasão - na prática, quer enfraquecer os EUA. Mas isso lhe traz
enormes problemas geopolíticos. A União Europeia rompeu laços com a Rússia, mas
era considerada por Pequim potencial aliada por suas divergências com os EUA.
Se a invasão da Ucrânia pôs Putin nos braços de Xi, solidificou entendimentos
que iam mal entre americanos e europeus.
Alienar seu maior parceiro comercial para
obter “parceria ilimitada” de uma potência decadente como a Rússia não parece
ser bom negócio. A ação russa acentuou uma tendência latente de reconfiguração
das cadeias de produção globais, que prejudica China, Rússia e todo o comércio
internacional - um revés para a globalização como ocorreu até agora.
Xi Jinping, à frente da segunda maior
economia do mundo, será testado como líder de um dos três blocos a que a
invasão russa reforçou o desenho. O momento é ruim para ele, às vésperas de
confirmar seu poder com um terceiro mandato, inexistente desde Deng Xiaoping.
Moderar Putin e por fim à tragédia ucraniana seriam proezas de um estadista.
Grandes gestos, porém, não vieram até agora, e talvez não venham.
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