O Globo
Fossem apenas os militantes de redes
sociais, seria menos grave. Mas o fato de, nas últimas semanas, a imprensa de
esquerda na internet brasileira ter incorporado a sua pauta a desinformação
russa deveria preocupar a todos. Pode não ser óbvio, mas é a democracia
brasileira que fica em risco.
A desinformação cumpre um ciclo para que ponha em xeque democracias. Atinge primeiro os com maior tendência a adotar teorias conspiratórias, que se agrupam como seita nas redes. No segundo momento, porque estão em busca de audiência, veículos noticiosos percebem ali um público fiel potencial e começam a reverberar as informações falsas.
Quando fez explodir o número de fontes de
notícias, a internet criou variedade, mas também desorientação. Sem entender
bem em quem confiar, muitos passaram a usar como bússola a busca por veículos
que confirmam suas visões. E muitos veículos escolheram alimentar esse
processo. Em vez de desafiar seus leitores a pensar, contentam-se em confirmar
seus preconceitos.
A ameaça à democracia se concretiza quando
os políticos entram no jogo. Com os veículos preferidos de seus eleitores
repetindo em uníssono uma mesma versão dos fatos, parlamentares e candidatos se
sentem obrigados a adotar as teses sob o risco de, em caso contrário, perder votos.
Foi o que aconteceu na direita de inúmeros
países, incluindo o Brasil. Foi o que criou um universo paralelo descolado da
realidade, que levou ao QAnon americano e pôs no Planalto Jair Bolsonaro. É
inacreditável que, hoje, quem lê os principais sites da esquerda brasileira
encontrará a mesmas teses sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia que estão nos
sites da extrema direita americana ou mesmo nos programas mais radicais da Fox
News.
Para repetir o discurso pró-Putin, a
dissonância cognitiva necessária é imensa. É preciso deixar de lado tudo o que
a esquerda latino-americana defendeu nos últimos 50 anos.
O presidente russo argumenta que o povo
ucraniano, na verdade, não existe, é uma invenção recente. O fato de que Kiev
tem 600 anos mais que Moscou, claro, é detalhe. É o mesmo argumento que a
extrema direita israelense usa a respeito dos palestinos — são um povo que “não
existe”.
O argumento realista de política externa,
que considera inevitável que potências militares ignorem a soberania dos
vizinhos em nome de sua defesa, é outro problema. É o argumento de Henry
Kissinger para defender a política de intervenção na América Latina, ajudando
na formação de inúmeras ditaduras militares nos anos 1960 e 1970.
A Rússia tem uma longa tradição em técnicas
de manipulação da realidade. Quem conhece os Protocolos dos Sábios de Sião sabe
que, mais de um século depois, eles não morrem. Ainda encontraremos alguém, em
alguma esquina perdida, dizendo que judeus manipulam as finanças mundiais. É
uma peça de desinformação criada pelo serviço secreto czarista bem antes da
Revolução de 1917. As fotografias manipuladas de Josef Stálin são outro
exemplo. Vladimir Putin, em Dresden, na Alemanha dos anos 1980, era operador de
contrainformação da KGB.
Na realidade paralela, há um genocídio
ocorrendo no leste da Ucrânia. Quem diz não é a ONU, é o Kremlin. Fonte única.
A Ucrânia é nazista. Seu presidente é judeu, e a extrema direita não elegeu
parlamentares no último pleito — mas não são fatos que negarão a versão. Um
laboratório biológico conhecido, documentado, público, vira fonte secreta de
bioarmas da CIA...
No Brasil, já perdemos para a realidade
paralela um bom pedaço da direita. Se os políticos de esquerda embarcarem na
onda de seus militantes e jornalistas, perderemos um naco da esquerda. Quando a
percepção da realidade é manipulável, democracias se dissolvem.
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