sexta-feira, 25 de março de 2022

Fernando Abrucio*: A campanha do medo e seus efeitos

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Sociedade precisa se preparar para a guerra informacional que será arma do bolsonarismo. O que está em jogo é a democracia brasileira

O medo será a principal estratégia eleitoral do presidente Jair Bolsonaro para as eleições de 2022. Isso vai acontecer em três dimensões: na defesa de um modelo moral tradicionalista e intolerante, na utilização das instituições públicas para perseguir e destruir os adversários, bem como no formato da comunicação bolsonarista, que será guiada por uma lógica de guerra de informações. Por meio dessas três armas, o bolsonarismo vai transformar o pleito presidencial deste ano no mais virulento da história do país. A pergunta que fica é: a sociedade brasileira que se diz adepta da democracia está preparada para uma disputa política com feição de batalha final?

Geralmente, os candidatos concorrem a eleições prometendo novas soluções aos problemas públicos, o que pode ser traduzido como uma proposta de futuro. A ideia de esperança de dias melhores resume bem a campanha dos principais vencedores de disputas democráticas recentes. Mas o bolsonarismo não se encaixa nessa visão, pois a extrema direita que se espalhou por vários países do mundo é contrária à ideia de mudança e melhoria contínua que ancora o mundo contemporâneo.

Seu modelo de política é outro: defende a manutenção de tradições e valores morais do passado, ao mesmo tempo que repele novas ideias e comportamentos. Mais do que isso: o bolsonarismo não tem nenhuma tolerância com visões diferentes de mundo e busca bani-las. Não por acaso a guerra cultural é a principal característica desse neopopulismo autoritário presente no trumpismo, no governo húngaro de Viktor Orbán e na gestão do presidente Bolsonaro.

Aqui entra então o primeiro uso do medo como estratégia eleitoral bolsonarista: não só difundir certos valores tradicionalistas, mas sobretudo mostrar que outros atores políticos e sociais estão burlando os princípios morais adequados. A consequência lógica desse modelo de ação política é amedrontar parcela do eleitorado - algo entre 15% a 20% dos eleitores -, mostrando o que será o Brasil caso Bolsonaro não se reeleja. Tal enredo eleitoral vai ocorrer várias vezes até outubro.

O escândalo gerado em torno do filme de Danilo Gentili - acusado de estimular a pedofilia - não tem nada a ver com a obra em si. Trata-se de um capítulo de uma estratégia maior de vender o bolsonarismo como o único grupo capaz de defender o país dos “pervertidos”. Provavelmente, os próximos capítulos vão envolver adversários - na verdade, o retorno do vídeo envolvendo o governador João Doria já foi um aviso do que vem pela frente. De todo modo, o moralismo é orientado pelo signo do medo como forma de obter e/ou fidelizar eleitores.

Há uma consequência de se usar o moralismo como arma para amedrontamento que é mais sutil - e certamente mais perigosa. Afinal, se em várias esferas da sociedade atores políticos atuam, segundo os bolsonaristas, de alguma maneira contra os “valores cristãos”, é preciso não só reeleger Bolsonaro, mas lhe dar um poder maior para evitar esse “desvirtuamento” do país. Neste sentido, o objetivo da estratégia do medo não é só a reeleição, mas também criar condições para que um eventual segundo mandato seja marcado pelo fortalecimento da Presidência da República frente ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal e à Federação.

Se for eleito com base em tal discurso, Bolsonaro vai tentar usar seu eleitorado para pressionar por mudanças no perfil dos ministros do STF e para jogar goela abaixo sua agenda moral na Câmara e no Senado. Essa estratégia alicerçada em espalhar o medo nas eleições para colher autocracia no governo não é inédita: Viktor Orbán fez isso na Hungria. Os democratas do país têm de estar atentos porque, com certeza, um segundo mandato bolsonarista não será para imitar o primeiro. O anúncio do provável vice mostrou que o bolsonarismo não vai querer dividir o poder como fez nos últimos quase quatro anos.

Aliás, é preciso lembrar a razão que levou Bolsonaro a dividir a contragosto o poder com o Centrão: isso ocorreu para evitar seu impeachment, uma vez que há centenas de vezes mais razões para incriminá-lo do que houve no caso de Dilma. Mesmo tendo que abandonar o sonho de ter um presidencialismo imperial junto ao Congresso, o bolsonarismo procurou outros caminhos para concentrar poder, principalmente buscando controlar outras instituições públicas cuja função é fiscalizar o Executivo federal. Em alguns casos, houve uma reação mais forte à autocracia bolsonarista, como no caso do STF e da maior parte dos governos estaduais, embora o Supremo e a Federação não tenham ficado totalmente incólumes aos atos e discursos autoritários do presidente da República. Em outras palavras, as instituições públicas que salvaram a democracia ficaram machucadas.

Outras instituições públicas de controle, por outra parte, foram dominadas quase por completo pelo bolsonarismo. A Polícia Federal está passando por um processo de silenciamento sem igual na história recente da democracia brasileira, e algo similar ocorre também na Controladoria-Geral da União. Pior é a situação do Ministério Público Federal, cujo chefe máximo atua hoje como um subordinado do presidente da República, o que destrói na prática a autonomia político-administrativa consagrada pela Constituição de 1988. Ninguém acredita em Brasília que haverá uma fiscalização séria e muito menos punição a qualquer ato grave do governo Bolsonaro - e já há casos, como mostrou a CPI da Covid-19, que podem ser considerados crimes de responsabilidade.

A estratégia eleitoral baseada no medo vai além da criação de uma República sem freios e contrapesos. Ela avança o sinal e transforma as instituições públicas num instrumento para perseguir inimigos e pressionar aliados. É líquido e certo que até o final da eleição a PF vai encontrar problemas e denúncias contra vários dos candidatos. A Polícia Federal, no fundo, é comandada hoje diretamente pelo ministro da Justiça, que obedece fielmente ao presidente. Uma situação em que o Estado é usado contra os adversários da campanha presidencial de Bolsonaro constitui a antessala do autoritarismo.

A lógica de aparelhamento do Estado chegou, ademais, às políticas públicas, de modo que muitos ministérios, com seu poder normativo e de recursos, têm atuado para beneficiar amigos do rei e para pressionar aliados a serem mais fiéis. A história recente do ministro da Educação, com uma rede de distribuição de verbas pela via de pastores, é mais do que clientelismo. Trata-se de corrupção, que pode ser feita até em nome de Deus. Este caso comprova que já há, em parte, um modelo autocrático em prol de Bolsonaro: os órgãos de controle não vão encontrar as diversas formas corruptas que se instalaram num país cuja parcela relevante do Orçamento é secreta.

Quando não há mais Estado republicano, baseado em regras e comportamento impessoal dos funcionários públicos, o medo se espalha também para os inimigos do rei. A verdade é que Bolsonaro maneja o Executivo federal como se fosse um oligarca do tempo dos coronéis, imprimindo uma nova máxima: aos amigos, tudo; aos inimigos, perseguição e penúria.

Aos medos orientados pelo moralismo e pelo controle das instituições públicas federais, soma-se outro, que em boa medida alimenta os anteriores: o terror político disseminado pelos instrumentos de comunicação. O bolsonarismo se construiu desde a eleição passada como uma força política alicerçada na guerra de informações. Daí se entende o lugar de Carlos Bolsonaro no esquema, porque ele é o comandante do gabinete de ódio. Para aqueles que ficaram assustados com as mentiras e baixarias realizadas de 2018 para cá, preparem-se: o jogo será muito mais sujo e baseado numa proliferação mais ampla de fake news na próxima disputa presidencial. A famosa e mentirosa história da “mamadeira de piroca” usada contra Fernando Haddad será pouca coisa perto do que vem pela frente.

Muita coisa já vem sendo aventada na internet e nas redes sociais bolsonaristas sobre que tipo de medo será disseminado pela comunicação em larga escala. É bem provável que uma parte diga respeito a questões morais, inventando histórias escabrosas sobre Ciro, Lula, Moro, Doria e quem mais se colocar contra o bolsonarismo. Outra parte será para amedrontar as pessoas em relação ao futuro, criando, por exemplo, fake news de invasões de propriedades comandadas por petistas. A imaginação ainda não é capaz de antever todas as possibilidades de mentiras que serão uma das bases mais importantes da campanha de Bolsonaro. Do mesmo modo, não se sabe o quanto isso vai atingir corações e mentes de brasileiros, até porque o exagero pode levar ao descrédito e o povo vai comparar tais lorotas com sua vida concreta nos dias de hoje.

A lógica do medo nos três formatos expostos aqui - o moralismo, o controle das instituições públicas federais e a guerra informacional - serão armas poderosas do bolsonarismo. Mais do que os concorrentes, a sociedade precisa se preparar para essa batalha. A imprensa terá de desmentir as sujeiras espalhadas pelas redes sociais e vasculhar a corrupção que será escondida por Bolsonaro. As organizações mais relevantes da sociedade civil terão de conversar todos os dias com a população para evitar que a mentira e o desmando vençam. Não será fácil, mas o que está em jogo é a democracia brasileira.

Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas,

 

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