Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Quando um membro da elite diz que toma
cachaça é para fazer supor que é tão ousado que tem a coragem democrática de
misturar-se com os subalternos e ingerir a bebida forte dos simples e valentes
Nos meses que precederam as eleições de
2018, uma das formas de estigmatizar a esquerda era a de apontar em Lula o
apreço pela cachaça. Na verdade, entre os operários do ABC, havia e talvez
ainda haja a tradição de ir ao boteco próximo da fábrica e tomar uma dose de
pinga.
Em certa ocasião antes de eleito
vice-presidente, o general Hamilton, já reformado, confessou a um jornalista
seu apreço pelas praias do Rio de Janeiro e pelo prazer de uma cervejinha na
praia. Havia um tom de carinho pela bebida, tão próprio da função dos
diminutivos em nossa língua.
A cerveja e o vinho têm um lugar decisivo
na história social neste mundo ocidental de que fazemos parte. Certa vez, levado
por uma amiga antropóloga, fui tomar uma cerveja numa cervejaria de aldeia
perto de Frankfurt. Naquele lugar, 500 anos antes, Martinho Lutero, um dos
fundadores do protestantismo, fora tomar uma cerveja, de que era aficionado.
Quando ainda papa, Bento XVI, em visita à Alemanha, sua terra, encontrou-se com amigos. Aparece numa foto tomando um canecaço de cerveja. Cristo, que era o próprio filho de Deus, transformou o vinho num sacramento, e o pai dele não estranhou nem um pouco. No entanto, em países como o Brasil, muitos hipócritas, que se dizem cristãos, têm opinião oposta à do próprio Deus.
Na Itália, na França, na Espanha e em
Portugal, crianças, desde pequenas, são ensinadas a tomar vinho como parte da
refeição. Meus pais, imigrantes ibéricos, ensinaram-me e a meu irmão a tomar
vinho, com um pouco de água e açúcar, desde antes dos cinco anos de idade,
vinho feito em casa.
De modo que discriminar pessoas que seguem
essas divinas tradições é manifestação de ignorância e preconceito. Aqui, um
gole de cachaça macula para sempre o perfil de políticos de esquerda, nunca os
de direita.
Cachaça na boca do trabalhador significa
complemento alimentar. Na boca do mandador, significa usurpação cultural.
Quando alguém diz que um trabalhador toma cachaça é para acentuar-lhe na
identidade pública a suposta inferioridade social de quem trabalha.
Quando um membro da elite diz que toma
cachaça é para fazer supor que é tão ousado que tem a coragem democrática de
misturar-se com os subalternos e ingerir a bebida forte dos simples e valentes.
Só que rico não toma cachaça, toma
aguardente de cana, que é coisa bem diferente, no mais das vezes submetida a
sucessivas destilações em alambiques especiais. É daí que vem a “cachaça tipo
exportação”, cachaça de rico, avaliada em dólar e não em pobres reais. Seria
interessante vê-los tomar cachaça de boteco e continuar de pé.
O conhecedor dos mistérios e ritos com a
cachaça relacionados sabe que o gole de pinga é precedido pelo ato de jogar a
primeira talagada “para o santo”, atirando-a para o chão, num gesto disfarçado,
como um segredo.
Mesmo que a pessoa não saiba, o “santo” é
Exu, a entidade do candomblé que abre caminho e que tem precedência em relação
a tudo e a todos, negros e brancos enegrecidos pelo trabalho bruto e mal pago.
De modo que o gole de cachaça é comparativamente muito pouco em face do tamanho
de uma garrafa de cerveja. Se é para pegar pesado, como se diz, é justo começar
pelos da cerveja e não pelos da cachaça.
O Exu, na cultura popular brasileira de
influência africana, é o ente dissimulado que responde por uma hierarquia do
invisível. Pode estar presente onde menos se espera. Há muitos anos, no bairro
do Arriá, na Serra das Araras, num 20 de janeiro, fui a uma procissão de roça,
de São Sebastião. Mas à frente não ia o pobre santo todo flechado, cujo
sofrimento me causava uma pena enorme. Ia bem lá atrás.
À frente, liderando o cortejo, ia São
Benedito, santo preto. Perguntei a uma prima o motivo disso. Explicou-lhe que
São Benedito tem precedência porque, se não a tiver, pode atrapalhar a
participação dos devotos na cerimônia. Ela não sabia, mas São Benedito, ali,
representava Exu.
No período colonial havia uma hierarquia na
classificação das aguardentes, todas bebidas de uso medicinal, vendidas na
botica, isto é, na farmácia. A própria alimentação de branco era considerada
medicinal e oferecida ao escravo quando estivesse doente, como o pão de trigo e
a carne de frango. As escravas paridas, nas fazendas cujos documentos estudei,
imediatamente após o parto, recebiam um “kit”: frango para reforçar a
alimentação, cachaça e pano de baeta para a fralda do bebê.
Até hoje, aliás, entre os pobres, em muitos
cantos do Brasil, ficar doente ou ficar grávida é um privilégio porque a pessoa
passa, temporariamente, a ser tratada como gente. Numa favela de São Paulo
conheci uma senhora que engravidava todos os anos para ser tratada como ser
humano num hospital público.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios
sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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