quinta-feira, 14 de abril de 2022

Maria Cristina Fernandes: As vacinas que Bolsonaro resolveu tomar

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Presidente tem uma vasta ficha corrida de denúncias e inoperâncias contra as quais busca vacinas para recuperar eleitores

 “Nada com Deus é tudo e tudo sem Deus é nada.” O apelo é de pastor evangélico, mas a voz é do locutor de rodeios Andraus Araújo de Lima, mais conhecido como Cuiabano Lima, que, no dia 27 de março, foi o mestre de cerimônias do pré-lançamento da candidatura do presidente Jair Bolsonaro à reeleição.

Ao longo dos cinco primeiros minutos de sua fala, um jovem alto e bronzeado permanece ao seu lado com uma camiseta amarela: “imbrochável&, incomível&, imorrível&, incorruptível&”. Cuiabano pede aplausos, mas ninguém larga o celular estendido acima de suas cabeças e o silêncio continua a imperar na plateia.

O locutor tira o chapéu, ajeita a enorme fivela do cinto e capta o humor da plateia. Pede que levantem as mãos e é prontamente atendido. “Somente quem tem fé em Jesus levanta a mão”, diz para as pessoas que permaneciam segurando o celular acima de suas cabeças.

Bolsonaro, que minutos antes havia atravessado o salão do Centro de Convenções de Brasília sob a saudação apoteótica de “capitão do povo”, seria um dos derradeiros a falar na cerimônia que durou 1h45 driblando a lei eleitoral sob o disfarce de ato de filiação ao PL - “É com ele que vou”.

Estavam presentes pelo menos quatro ministros - Ciro Nogueira (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura), Tarcísio Freitas (Infraestrutura) e Heleno Ribeiro (Gabinete de Segurança Institucional), além do deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP) - que não pertenciam nem se filiariam ao partido de Valdemar da Costa Neto.

Quando o presidente começou a falar, já estava claro que no discurso, nas ênfases, no formato e nos personagens que o cercam tudo ali era diferente da campanha que o elegeu em 2018. O antipetismo sobrevive, mas Bolsonaro, que acumula índices de rejeição em torno dos 60% nas pesquisas eleitorais, está mais focado em se vacinar do que em alfinetar seu principal adversário.

Se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva arrancou do Judiciário a anulação de todas as condenações pela lista de malfeitos fartamente explorada pelo bolsonarismo em 2018, o presidente moldou seu discurso para higienizar a vasta ficha corrida de denúncias que acumulou e recuperar os eleitores que perdeu.

Foi o locutor dos rodeios de Barretos (SP) quem deu a primeira picada. “Temos que conversar com nossos filhos. Estão tentando confundir a cabeça dos jovens. Da mesma forma que Pôncio Pilatos soltou Barrabás, soltaram aquele homem de nove dedos”, disse, dirigindo-se à plateia majoritariamente de meia-idade.

Os jovens de 16 a 24 anos são os eleitores mais desencantados com o bolsonarismo. Às vésperas do segundo turno de 2018, Bolsonaro, de acordo com o Datafolha, estava empatado com o ex-prefeito Fernando Haddad com 44% das preferências nessa faixa etária. Na última edição dessa pesquisa, no fim de março deste ano, Lula marcava mais que o dobro das preferências de seu adversário (51% x 22%). Os jovens também são aqueles que menos confiam no que o atual presidente diz. Apenas 6% “sempre” o fazem.

O derretimento de Bolsonaro entre os jovens mostra como foi efêmera a contribuição de Olavo de Carvalho para suas bases ideológicas. O ideólogo da guerra cultural bolsonarista em 2018 dizia que a Presidência não bastava. Era preciso tomar o Judiciário, universidades, igrejas e partidos.

Foi com esse enfrentamento da “hegemonia cultural da esquerda” que Carvalho catequizou formadores de opinião da juventude. A ponto de o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) ciceronear seu guru, ao longo da campanha de 2018, como o homem sem o qual seu pai não existiria.

Os dois meses que se passaram desde a morte de Olavo de Carvalho foram suficientes para mostrar que a frase do filho do presidente, se algum dia foi levada em conta, já não tem mais valia. Bolsonaro sobrevive, mais dependente do eleitorado evangélico do que da juventude que o guru do seu movimento quis catequizar.

Naquele fim de semana, um ministro do TSE que já havia recusado ação do PL por propaganda eleitoral antecipada contra outdoors bolsonaristas resolveu multar a direção do festival de música Lollapalooza, onde a cantora Pabllo Vittar desfilou com uma toalha estampada com a foto de Lula e puxou a fila de manifestações de artistas em defesa do ex-presidente. Depois da péssima repercussão da multa nas redes sociais, Bolsonaro agiu como se a ação tivesse sido feita à sua revelia, o PL a retirou e o juiz anulou a decisão.

A reprovação à censura já tinha mostrado que a ação tinha sido um tiro no pé quando Bolsonaro subiu ao palco do evento do PL e deu ares de reflexão ao apelo para que os mais velhos patrulhassem o voto de seus filhos: “Não podemos esquecer nosso passado, porque aquele que esquece seu passado está condenado a não ter futuro. Os mais jovens podem não conhecê-lo. Seus pais e avós têm obrigação de mostrar pra eles para onde o Brasil estava indo, e também como vivem os jovens em outros países como, por exemplo, na Venezuela”.

O presidente diz não ter se vacinado contra a covid-19, mas agora precisa, mais do que nunca, se imunizar contra os fatos que se consolidaram contra seu governo. “A história é uma só”, disse, ao fim da reconstrução do seu percurso. O marco zero da narrativa bolsonarista é a formatura da Academia Militar das Agulhas Negras, em novembro de 2014. Passa pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (“Não podia deixar que um amigo, que lutou pela democracia, que teve sua reputação quase destruída, não fosse citado”) e pela facada em Juiz de Fora (MG) até chegar à eleição.

Seu governo é o que menos interessa ali. Lamenta as mortes, mas alveja a ação daqueles que tentaram evitá-las. E elege como legado da doença que, ao final deste governo, terá levado 700 mil brasileiros, o rechaço ao confinamento.

O espetáculo protagonizado pelo vaivém de João Doria, o governante que mais riscos assumiu para a vacinação dos brasileiros, não deixa de ser uma demonstração de que, na sua guerra contra os fatos, Bolsonaro foi vitorioso em algumas batalhas. Noves fora os erros que cometeu, a marginalização do pai da Coronavac na disputa e a resistência do exterminador do futuro nacional é um termômetro pouco alentador da democracia brasileira.

Outra vacina que exibiu no evento foi a da corrupção. E o fez aposentando um baluarte de 2018, o anticomunismo. Não há uma única menção em seu discurso. Aliança com o Centrão, quatro ministros demitidos por corrupção e quase 150 pedidos de impeachment depois, Bolsonaro achou por bem reciclar a ênfase do anticomunismo - “Nosso inimigo não é externo, é interno. Não é uma luta da esquerda contra a direita. É do bem contra o mal”.

Contra o movimento social que agita, Bolsonaro resolveu apresentar o governo que organiza. Convocou Tereza Cristina e colocou o braço curvado em 90 graus sobre os ombros da ex-ministra da Agricultura para ouvi-la contar sobre o assentado em Sergipe que lhe havia mandado um recado: “Diga ao presidente que ele nos tirou da prisão”. Tereza Cristina e Michelle Bolsonaro preenchem a cota feminina do palanque cuja transmissão repousava frequentemente nas mulheres da plateia. Convocada, a primeira-dama, de longo, pronunciou quatro “améns” em menos de um minuto.

Não venham lhe apresentar a fatura das políticas públicas sequeladas. Ele as contraditará com o fim da tutela do Estado. É esta a vacina anti-inépcia. Seu governo desempregou, mas ele reinventou o empreendedorismo, com o Pix. As universidades continuam destroçadas, mas foi lançada uma boia aos inadimplentes do Fies. Até o Auxílio Brasil de R$ 400 é embalado no discurso antitutela para que não pareça um banho de loja no petismo.

Coube ao general Heleno Ribeiro, outro dos ministros convocados ao palco, exibir o discurso com o qual o bolsonarismo se vacinará contra a divisão da “família militar” em relação ao legado do “capitão do povo”. Se, em 2018, os militares viram na ascensão de Bolsonaro um meio de vingar os relatórios produzidos pela Comissão da Verdade no governo Dilma, sua reeleição será uma oportunidade de “responder às ofensas” de que foram alvo ao longo dos últimos três anos e três meses - “Já fomos jogados pela janela várias vezes, ofendidos. Estou quieto, vamos aguardar o fim deste filme que, graças a Deus, será glorioso”.

O estoque de vacinas ainda se completaria com o locutor, que engatilhou duas picadas seguidas - “Depois que Jair Messias assumiu a Presidência, voltamos a ter o respeito de todos os países do mundo” e “quem comprou e pagou as vacinas foi o governo federal” - antes de chamar um pai-nosso e o hino nacional. A câmera parou nas mulheres, que, com a mão direita sobre o peito, cantavam o hino de olhos fechados como se rezassem.

Anunciou-se, então, a apoteose do evento, quando Bolsonaro e Michelle ficaram a sós e de mãos dadas no palco para, sob as luzes apagadas, assistirem a um filmete de três minutos sobre a vida e a obra de Jair Messias - de Eldorado ao Planalto. “O povo te ama, capitão”, encerrou o locutor.

Bem, deveria ter sido encerramento, mas Flavio Bolsonaro e a mulher ainda subiriam ao palco para outra picada. O senador, que ainda tem quatro anos de mandato, disse que foi convencido a falar como filho. Responsável, junto com seus irmãos, por uma das vidraças da campanha, ele descreve uma idílica relação entre pai e filho. O senador das rachadinhas, que mora na mansão de R$ 6 milhoes, chama o pai de “professor de sua vida”. Certamente porque acredita que, assim, também fará uma higiene na sua própria imagem.

“Por trás dessa fortaleza há uma pessoa que às vezes tem dificuldade de mostrar o homem amoroso que é, sensível e com o coração do tamanho do mundo (...) Quando ele vem defender o instituto família, não está defendendo um filho, um parente, até porque não fizemos nada de errado. Ao defender a família, ele está colocando Deus em primeiro lugar”.

A câmera foca em olhos marejados na plateia e Cuiabano Lima chama os presentes para cantar os parabéns para Jair Messias e Michelle, que haviam aniversariado dias atrás, quando um bolo, confeitado com uma farda militar verde chega ao palco.

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