Correio Braziliense
A tortura e a eliminação
física de oposicionistas foram uma política de Estado, denunciada por suas
vítimas e advogados nos tribunais. Não eram divulgadas pela imprensa porque
havia censura
Questionado sobre os áudios divulgados pela
jornalista Míriam Leitão em sua coluna no jornal O Globo, que mostram sessões
do Superior Tribunal Militar (STM) na época do governo ditatorial, nas quais os
ministros generais que integravam o órgão falam sobre torturas, o
vice-presidente Hamilton Mourão respondeu: “Apurar o quê? Os caras já morreram
tudo, pô. (risos). Vai trazer os caras do túmulo de volta?”
General da reserva, Mourão traduziu uma
espécie de senso comum entre os militares: o silêncio das Forças Armadas em
relação à questão das torturas, dos assassinatos e dos desaparecimentos de
oposicionistas durante o regime militar. Colocou-se uma pedra sobre esse
assunto. As Forças Armadas se recusam a revisitá-lo publicamente, com um olhar
autocrítico e democrático, como ocorreu em outros países.
Essa atitude é legitimada pelo pacto de aprovação da “anistia recíproca”, pelo Congresso, em 1979. O acordo entre o governo militar e a oposição, que beneficiou “subversivos” e torturadores, é um assunto sacramentado, também, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Àquela época, a anistia foi um efetivo avanço em direção à democracia, pois possibilitou a libertação de presos políticos e a volta dos políticos exilados. Entretanto, enfrentou reações dos “porões” do antigo regime militar, inclusive por meio de atentados à bomba, entre os quais o do Rio Centro, que fracassou.
Naquela noite de 30 de abril de 1981, um
show comemorativo do Dia do Trabalho reunia 20 mil pessoas no Rio Centro, na
Zona Oeste do Rio de Janeiro, quando uma bomba explodiu no estacionamento. O
sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu na hora, e o capitão Wilson
Luís Chaves Machado, gravemente ferido, preparavam o artefato no interior de um
veículo Puma com placa fria, utilizado pelo Doi-Codi. Segundo as autoridades
militares da época, estavam num serviço de rotina. Outra bomba colocada na casa
de força do prédio não chegou a explodir.
Aquele episódio acabou sendo um divisor de
águas do processo de abertura política, que iria desaguar na eleição de governadores
oposicionistas, em 1982; na campanha das Diretas Já; e na eleição de Tancredo
Neves, em 1985, no colégio eleitoral, que pôs fim ao regime militar. Caso o
atentado fosse bem-sucedido, resultaria num massacre de artistas, estudantes e
sindicalistas. Nada ocorreu com o capitão Wilson Machado, que se recuperou dos
graves ferimentos, continuou no serviço ativo e chegou a ser professor no
Colégio Militar de Brasília.
Vez por outra, como agora, o militar
terrorista é lembrado. Reformado como coronel, é a única testemunha viva do
atentado do Rio Centro. Ao contrário do que disse o general Mourão, outros 97
militares envolvidos com as torturas também estão vivos, segundo lista
divulgada pelo Instituto Vladimir Herzog, criado em memória do jornalista
assassinado nas dependências do Doi-Codi, na Rua Tutóia, em São Paulo, em 1975.
Política de Estado
O presidente Jair Bolsonaro trata-os como
heróis, a começar pelo falecido coronel Carlos Brilhante Ustra, sob cujo
comando registram-se 434 oposicionistas mortos pelo Doi-Codi. Os áudios das
sessões do STM revelam que a cúpula militar tinha conhecimento das torturas e
dos assassinatos e não mandou investigar, inclusive no governo do presidente
Ernesto Geisel, que chegou a admitir a existência de torturas num longo depoimento
a Maria Celina D’Araújo e Celso Castro. Somente após a morte de Herzog, que
provocou ampla mobilização da sociedade civil, Geisel reagiu à linha-dura e
impôs sua autoridade aos quartéis.
Os áudios foram reunidos e analisados pelo
professor Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que pesquisa
a memória do regime militar. Só foram liberados pelo STM em razão de decisão do
Supremo Tribunal Federal, a pedido do advogado Fernando Fernandes. A ministra
Maria Elizabeth Rocha, do STM, classificou como positiva a divulgação:
“Importante serem revelados esses áudios porque tudo faz parte da história do
país, memória do país — e para que erros não se repitam”, declarou.
A tortura e a eliminação física de
oposicionistas foram uma política de Estado, denunciada por suas vítimas e
respectivos advogados nos tribunais. Não eram divulgadas pela imprensa como
deveriam porque havia censura. O que chegava às redações oficialmente eram
relatos fantasiosos, típicos das estratégias militares de contrainformação. As
denúncias de prisões e sequestros, feitas por advogados e familiares, não
podiam ser publicadas. Os registros oficiais, lacônicos, eram publicados nas
páginas de notícias policiais.
As denúncias, entretanto, circulavam por meio de publicações clandestinas, como o boletim Notícias Censuradas, com informações colhidas nas redações, e o jornal Voz Operária, órgão central do antigo PCB, que deixou de ser impresso no Brasil após os órgãos de repressão localizarem sua principal gráfica, em Jacarepaguá, em janeiro de 1975, numa operação que deixou um rastro de prisões, torturas e assassinatos, entre os quais o de Orlando Bomfim Junior, responsável pela publicação, cujo corpo nunca foi encontrado nem sua prisão reconhecida.
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