terça-feira, 19 de abril de 2022

Merval Pereira: Nunca mais

O Globo

A tentativa de negar, ou mesmo de naturalizar,  as torturas cometidas por militares durante a ditadura acaba de cair por terra com a revelação, pela colunista Miriam Leitão, de áudios de ministros do Superior Tribunal Militar (STM) discutindo, durante sessões secretas, denúncias de presos políticos.

A Comissão Nacional da Verdade, convocada no governo Dilma, já havia revelado que a tortura era um instrumento do Estado no combate aos guerrilheiros de esquerda, e o dossiê “Tortura Nunca Mais” elencado os nomes de centenas de torturadores, muitos deles militares, com base em depoimentos de presos políticos.

O Estado brasileiro, durante o governo Fernando Henrique, assumiu a reparação dos prejuízos físicos e sociais sofridos durante a ditadura militar, indenizando as vítimas de abusos nos governos militares.

Agora, há áudios de ministros militares revelando que o assunto foi tratado com leniência pelas Forças Armadas, numa visão deformada de que defender torturadores as preservaria. A ironia do vice-presidente General Hamilton Mourão sobre o caso é uma demonstração de que essa atitude continua até hoje.

Para ele, que já tratou como herói o Coronel Brilhante Ustra, denunciado como torturador, os casos fazem parte da história, e como tal devem ser tratados: "História, isso já passou, né? A mesma coisa que a gente voltar para a ditadura do Getúlio [Vargas]. São assuntos já escritos em livros, debatidos intensamente. Passado, faz parte da história do país", disse.

Os áudios foram captados entre 1975 e 1985 e obtidos pelo historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Fico junto ao STM. Eles revelam que já àquela altura havia ministros que enxergavam mais longe, entendendo que esses fatos prejudicavam as Forças Armadas, mesmo que defendessem os “objetivos revolucionários”. Em vários depoimentos, presos políticos relatavam as mais diversas torturas, o que fez com que o Almirante Julio de Sá Bierrembach, a 19 de outubro de 1976, afirmasse: "Não podemos admitir que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado”.

Também o General Rodrigo Octávio, em julgamento de apelação, classificava em 24 de junho de 1977, como "fato mais grave" a denúncia de "alguns réus" sobre “ a tortura e sevícias das mais requintadas". Ambos os ministros apoiavam a “Revolução”, mas afirmam que para defendê-la, seria necessário que esses casos fossem apurados com rigor.

O ministro Rodrigo Otávio diz que seria “preciso que se evidencie de maneira clara e insofismável que o governo, através das Forças Armadas e dos órgãos de segurança, não pode responder pelo abuso, a ignorância e a maldade de irresponsáveis que usam torturas e sevícias para obtenção de pretensas provas comprometedoras na fase investigatória, pensando, em sua limitação cerebral, que estão bem servindo à estrutura política e jurídica regente, quando na realidade concorrem apenas na prática desumana, ilegal em denegrir a revolução retratando a sua configuração jurídica do Estado de Direito e abalando a confiança nacional pelo crime de terror e insegurança, criados na consecução honesta e urgente dos objetivos revolucionários", acrescenta.

Já o ministro Bierrembach dizia que "quando aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato para os inimigos do regime e para a oposição ao governo. Imediatamente, as agências telegráficas e os correspondentes dos jornais estrangeiros, com a liberdade que aqui lhes é assegurada, disseminam a notícia e a imprensa internacional em poucas horas publica os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil, generalizando e dando a entender que constituímos uma nação de selvagens".  

Relatos de choques nos órgãos digitais, abortos provocados pelas torturas, presos espancados “a marteladas” causaram “grande constrangimento” ao general Augusto Fragoso, acusações que, para ele, "não foram apuradas devidamente". Ele se mostrou espantado porque “nesses 50 e tantos anos de serviço, vivendo crises militares de 30, 32 e 35, nunca vi, nunca ouvi, acusações desse jaez feitas a órgãos do Exército. Acho que nosso Exército, seguindo exemplo das forças irmãs, devia rapidamente se recolher aos afazeres profissionais".

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