domingo, 24 de abril de 2022

Míriam Leitão: Emergência democrática

O Globo

Se alguém tinha ainda alguma dúvida sobre a centralidade da questão democrática nas próximas eleições, não pode mais ter. Os fatos de abril são eloquentes, principalmente o ataque frontal ao Supremo Tribunal Federal (STF). A Presidência tem a prerrogativa legal do indulto, mas Bolsonaro usou o direito para mais uma tentativa de subverter a própria democracia. O perigo do momento exige de todos os políticos a noção do que é emergencial. O centro e a centro-direita não podem mais tergiversar. A esquerda não pode falar apenas para os seus seguidores.

Durante um debate no GLOBO, nas prévias do PSDB, perguntei ao governador Eduardo Leite por que ele havia votado em Jair Bolsonaro, e ele respondeu falando dos erros econômicos do PT. Eu perguntei o que era mais importante, a economia ou a democracia. Leite, político jovem, nascido cinco dias antes de o último general sair do Planalto, não foi capaz de dar uma resposta firme. Hoje ele não é candidato, mas Leite não é o único político de centro ou de centro-direita que tem demonstrado ambiguidade diante da conjuntura política. Por outro lado, o PT, apesar da escolha do ex-tucano Geraldo Alckmin como vice na chapa do ex-presidente Lula, tem se concentrado em falar para os seus próprios seguidores. O vice, em uma chapa, não pode ser um ornamento vazio, precisa significar um movimento.

A grande questão em 2022 não será sobre teto de gastos, ainda que ter um parâmetro fiscal seja importante para a estabilidade econômica. Não será sobre reforma trabalhista, ainda que a mudança no mercado de trabalho tenha que melhorar as condições do emprego e entender as transformações no mundo do trabalho. Há muito mais em jogo no país neste momento. Na economia, Lula poderá dizer que manteve o superávit primário, e até o elevou, que acumulou reservas cambiais num montante que serviu de vacina contra outras crises cambiais. Em vez de criticar a classe média, deveria lembrar que a ampliou. Na política, partidos como PSDB, MDB e PDT precisam ter a exata noção de onde vieram. Vieram da luta pela democracia que atravessou duas dolorosas décadas.

A decisão de Bolsonaro de conceder a “graça” a um condenado pelo STF tem os sinais típicos da forma de agir dos autocratas. Aqueles que usam a democracia para eliminá-la. Seja na Rússia, Turquia, Hungria, Venezuela. O indulto é prerrogativa do presidente, mas Bolsonaro o usou como golpe. Pela maneira como fez, pela pessoa que beneficiou, pela hora que escolheu, pelos argumentos que usou. Tudo foi feito para criar conflito com um dos poderes.

O perdão beneficiou quem estimulou a violência física contra ministro do Supremo Tribunal Federal e defendeu, reiteradamente, o fechamento do Tribunal. Daniel Silveira não exerceu a liberdade de expressão, ele ameaçou autoridades e pregou a morte da democracia. Bolsonaro não respeitou o princípio da impessoalidade, pelo contrário. Por serem estes o crime e o criminoso, o indulto é golpe. Por ter sido feito de forma extemporânea, antes do trânsito em julgado, foi apenas uma provocação ao tribunal. E Bolsonaro mentiu mais uma vez, dizendo que estava defendendo a liberdade de expressão. O amigo que o presidente defende quer uma espécie de AI-5, ato que eliminou a liberdade de expressão no Brasil.

Em uma esclarecedora entrevista que o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga me concedeu, na Globonews, na semana passada, perguntei se a democracia seria testada nesta eleição. Ele respondeu: “Já está sendo testada há muito tempo.” E disse que as ameaças institucionais insistentes no atual governo têm “um efeito paralisante na economia”.

— Quem ganhar essas eleições vai ter que administrar uma economia bem machucada, e não vai ser suficiente ter uma resposta quantitativa, como fazer um ajuste fiscal. E o resto? E a qualidade da nossa democracia? E a segurança e o Estado de Direito, como ficam? A resposta agora é muito maior — alertou Armínio.

É preciso primeiro garantir a democracia. Depois enfrentar todas as consequências de um mau governo, que errou em tudo, e também na economia. Nada será fácil nos próximos quatro anos e sempre haverá muita controvérsia sobre qual é o melhor caminho para enfrentar cada obstáculo. Contudo, se perdermos a democracia, não teremos chance de superar problema algum. Sem o diálogo da sociedade, que o Estado de Direito permite, não haverá progresso. Nenhum.

 

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