O Estado de S. Paulo
O perdão se concede para a realização de
uma finalidade de interesse público, jamais para confrontar o Judiciário.
Dispõe a Constituição federal, artigo 84,
XII, que compete ao presidente da República “conceder indulto e comutar penas,
com audiência, se necessária, dos órgãos instituídos em lei”. O Código de
Processo Penal (CPP), Decreto-lei n.º 3.689/1941, artigo 734, cuidando do tema,
regulamenta a graça (artigos 734-740) e o indulto (artigo 741). Certo é que o
direito constitucional positivo brasileiro não estabelece distinção entre
indulto e graça, apesar de referir-se a Constituição à graça no artigo 5.º,
inciso XLIII, estatuindo que “a lei considerará crimes inafiançáveis e
insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos
(...)”.
A competência do presidente da República é
para conceder indulto e comutar penas. O indulto, Código Penal, artigo 107, II,
é causa de extinção da punibilidade. Ao infrator da lei penal, que pratica
crime, é aplicada a pena. A punibilidade não constitui requisito do crime, mas
a consequência da prática do crime. As causas de extinção da punibilidade estão
no artigo 107, incisos I a IX. No ponto, deixa expresso o Código que a
punibilidade é extinta pela anistia, graça ou indulto. Trato, aqui, do indulto.
A matéria deve ser entendida desta forma: a graça é o indulto. A graça seria o
indulto individual, como tratado na Lei de Execuções Penais. E o indulto
coletivo, o indulto propriamente dito. O Supremo Tribunal Federal (STF), aliás,
pelo seu plenário, no Habeas Corpus n.º 77.528, decidiu que “o termo graça
previsto no artigo 5.º, XLIII, da Constituição federal, engloba o indulto e a
comutação da pena”.
O indulto, o individual ou o coletivo, é o perdão da pena. Constitui um ato humanitário, que extingue a pena imposta. Geralmente, é concedido por ocasião do Natal e tem por finalidade, de regra, aliviar o sistema carcerário brasileiro com excesso de hóspedes. O Conselho Penitenciário e o diretor do presídio são sempre ouvidos, importando o bom comportamento do detento. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 2.795, o ministro Maurício Corrêa, em voto acolhido pelos seus pares, conceituou o indulto como “instrumento de política criminal colocado à disposição do Estado para a reinserção e ressocialização dos condenados que a ele façam jus, segundo a conveniência e oportunidade das autoridades competentes”.
O indulto, como perdão da pena, existe nos
países civilizados, como, entre outros, Alemanha, França, Estados Unidos,
Argentina, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda, França, Portugal, Suécia e a
Suíça.
A sua concessão está sujeita aos princípios
constitucionais aplicáveis à administração pública (Constituição federal,
artigo 37) e o ato administrativo, o ato do agente público, vinculado ou
discricionário, deve ser praticado, anota o patriarca do direito administrativo
brasileiro, Hely Lopes Meirelles, “com observância formal e ideológica da lei”,
e o “discricionarismo da Administração não vai ao ponto de encobrir
arbitrariedade, capricho, má-fé ou imoralidade administrativa”. Ademais, o ato
do agente público, político ou administrativo, há de ter por base uma
finalidade de interesse público, há de estar jungido à coisa pública, como deve
ser numa República.
No caso, o presidente da República tem
competência para conceder indulto e comutar penas. Nessa atividade, entretanto,
não pode desviar-se da lei, porque não vale a vontade do governante, vale a
vontade da lei. Acresce que, sem a existência de uma pena legalmente fixada (a
decisão pende de recursos), estaria perdoando uma pena inexistente,
formalmente. E vai além, desviando-se da finalidade do ato, pratica abuso de
poder, dado que o decreto presidencial constitui, simplesmente, tentativa – ao
arrepio da cláusula pétrea da separação dos Poderes – de anular a decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Ora, o que a Constituição outorgou ao
presidente da República foi competência para conceder indulto. E o indulto nada
mais é do que o perdão da pena formalmente imposta. É perdão que se concede
para a realização de uma finalidade de interesse público, jamais para
confrontar o Judiciário, jamais para corrigir a justiça ou injustiça da decisão
judicial.
No decreto é dito que o ato faz valer a
garantia da liberdade de expressão, quando o Supremo já decidira que agressões
a autoridades e ao regime democrático não estão abrangidas pela garantia
constitucional, mesmo porque não há direitos absolutos. Comportando-se o chefe
de Estado, na prática do ato, nos parâmetros indicados na lei e na
Constituição, não cabe o reexame, pelo Judiciário, do seu mérito. Fora daí, é
ato nulo, porque inconstitucional, que assim deve ser declarado pelo Supremo
Tribunal Federal.
Persistindo o ato inconstitucional,
constituirá perigoso precedente, retrocesso que coloca mal o País no concerto
das nações.
*Advogado, professor emérito da Universidade de Brasília (UNB) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e da Academia Mineira de Letras, ministro aposentado, foi presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral
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