O Globo
Bolsonaro criou sua crise desafiando o
Supremo Tribunal Federal no dia em que, em 1792, Tiradentes foi enforcado
Com as taxas do desemprego, da inflação e
dos juros em dois dígitos, Jair Bolsonaro criou sua crise desafiando o Supremo
Tribunal Federal. É tudo o que o país não precisa. Fez isso no dia em que, em
1792, José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, foi enforcado. O deputado
Daniel Silveira não é o Tiradentes, nem Bolsonaro, que o perdoou, é o marechal
Floriano Peixoto, que desafiou o Supremo Tribunal em 1892. Ele perguntou quem
daria habeas corpus à Corte se não reintegrasse os generais que havia mandado
para a reserva.
O Marechal de Ferro prevaleceu, e o
tribunal negou o pedido de habeas corpus impetrado por Rui Barbosa. Meses
depois, veio o troco e o tribunal recusou uma indicação de um ministro.
Reintegrar generais tinha a ver com a
jurisdição do Executivo. O Supremo não poderia recolocá-los na tropa. Devolver
a indicação de um ministro tinha a ver com a jurisdição do Tribunal. Floriano
não poderia empossá-lo.
A vida seguiu, e o marechal viu-se sucedido
pelo paulista Prudente de Moraes. Contrariado, foi-se embora sem lhe dar posse.
Morreu meses depois, pobre e sem herdeiros. Passou pelo poder sem futricas ou
escândalos.
O decreto de Bolsonaro cria dezenas de cenários, mas uma coisa é certa: o pena extingue a pena (oito anos de prisão), mas não seus efeitos, entre eles a inelegibilidade de Daniel Silveira. O “Tiradentes” de Bolsonaro não poderá disputar a reeleição para a Câmara. Esse impedimento fica na jurisdição da Justiça e não há decreto que possa revogá-lo.
Em poucas horas, evitando o confronto que
Bolsonaro persegue, surgiu uma fórmula. O Supremo condenou Daniel Silveira a
oito anos de prisão, o presidente perdoou-o, o réu continua inelegível e a vida
segue.
D. Maria I não indultou Tiradentes e, por
vários motivos, ganhou o apelido de a Louca. Ao contrário do alferes, o ex-PM
Daniel Silveira não foi condenado por defender ideias virtuosas.
Lógica do toureiro
A pressa e o cenário utilizados por
Bolsonaro para anunciar seu decreto perdoando Daniel Silveira sugeriram que ele
estivesse chamando o Supremo Tribunal Federal para um confronto. Afinal, havia
até quem pensasse em levar o deputado para o Planalto.
Essa é a lógica do touro. Ele vê a capa
vermelha e vai chifrá-la.
A lógica do toureiro é outra.
Ele demarca o espaço do combate, e não se
conhece caso de toureiro que tenha tentado chifrar o touro.
André Mendonça honrou a toga
O ministro André Mendonça foi terrivelmente
ingênuo, até impróprio, na manhã de quinta-feira, quando foi às redes sociais
para explicar seu voto do dia anterior, condenando o deputado Daniel Silveira.
Justificou-se como cristão e como jurista.
Juízes, diferentemente de vereadores e
deputados, não devem explicações ao seu eleitorado. Decidem, e ponto final.
Mendonça decepcionou os bolsonaristas que esperavam dele uma conduta à la
general Pazuello. Podia ter pedido vistas, retardando o resultado do julgamento
do deputado. Seria uma chicana vulgar. Podia ter acompanhado o voto de seu
colega Nunes Marques, absolvendo o réu. Preferiu condená-lo a dois anos de
prisão.
André Mendonça e os mármores do Supremo
sabiam que o tribunal condenaria Daniel Silveira, acompanhando o voto do
relator Alexandre de Moraes. Afora a chicana do pedido de vistas, não havia o
que fazer. Ao votar pela condenação mostrou que, uma vez no tribunal, demarcou
a linha de sua independência. Por onde ela passa, só o tempo dirá, e ele ficará
na Corte até dezembro de 2047: “Mesmo podendo não ser compreendido, tenho
convicção de que fiz o correto.”
Quando um cidadão é nomeado para o Supremo
Tribunal Federal, espera-se dele apenas isso. É verdade que alguns ministros do
tribunal se comportam como criaturas da política, ora buscando holofotes, ora
cabalando nomeações de servidores. São pontos fora da curva do ideal.
Ao se explicar nas redes sociais, Mendonça
foi ingênuo. Contrariou o desejo de pessoas que esperavam dele o comportamento
de um miliciano e nada poderá fazer, salvo alistar-se numa milícia judiciária.
Paralelos com a Suprema Corte dos Estados
Unidos são um exercício ineficaz, porém ilustrativo. Juiz não tem eleitorado, e
está acontecendo com André Mendonça o mesmo que sucedeu ao juiz David Souter
nos anos 90 do século passado. Seu caso merece ser relembrado.
Souter era terrivelmente conservador
Em 1990, o juiz William Brennan Jr. decidiu
deixar a Corte Suprema dos Estados Unidos depois de 34 anos de serviço, durante
os quais havia se tornado um pilar do liberalismo. Para o governo de George
Bush 1º, essa decisão parecia um presente dos céus. Tratava-se de colocar no
lugar um juiz terrivelmente conservador.
O chefe de gabinete de Bush era John
Sununu, um republicano de raiz que jogava bruto. Ele conseguiu que o presidente
indicasse David Souter, um juiz de seu estado. Era jovem (51 anos), duro nas
sentenças e um conservador de vitrine, quase um eremita. Ouviu um palavrão de
uma assessora e, no dia seguinte, presenteou-a com uma barra de sabão. Mal via
televisão (em preto e branco) e só assinava as edições dominicais do “New York
Times”. Dirigia um carro velho com o assento quebrado e por causa de um
desencanto da mocidade, tornara-se um solteirão.
Souter foi para a Corte quando Bush tinha
armado o bote para revogar a decisão que havia reconhecido o direito das
mulheres de interromper a gravidez. Surpresa: o juiz se alinhou com os
moderados. Para ele, revogar a decisão seria “uma rendição à pressão política”.
Aos poucos, para decepção dos Bush e de Sununu, juntou-se à colega Sandra
O’Connor (ela também republicana), neutralizando por anos a bancada
conservadora no tribunal. Sua explicação era simples: não estamos aqui para
dividir o país.
Em 2000, quando a Suprema Corte, por
maioria de votos garantiu a vitória de George Bush 2º contra Al Gore, Souter
desencantou-se e começou a pensar em ir embora. Tinha apenas 61 anos. Esperou a
eleição seguinte, vencida por Barack Obama e renunciou em 2009.
Está com 83 anos, não vai aos holofotes e
leva a mesma vida de sempre.
Troco
Nas próximas semanas será possível medir o
prestígio do ministro Kassio Nunes Marques no Planalto.
Bolsonaro nomeará dois novos ministros para o Superior Tribunal de Justiça. Nunes Marques tem um candidato e uma antipatia. Ele trabalha pelo desembargador Carlos Augusto Pires Brandão e não tem gosto pela possível indicação de Ney Bello.
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