domingo, 10 de abril de 2022

Míriam Leitão: Olhar do indígena e do sertanista

O Globo

"Não é só o Munduruku que está sofrendo, o Rio Tapajós está morrendo, nossos peixes estão doentes. Nossa doença era a malária, hoje é o mercúrio. Deixando nós tristes, nós que somos caciques. Como vão ser as nossas crianças, nossos netos que vão viver daqui para diante? A área demarcada está sendo destruída e nós, em cima dela, doentes.” A fala é do cacique-geral do povo Munduruku, Arnaldo Kaba. Conversei com ele e duas outras lideranças. Eles são um dos mais atingidos pelo garimpo ilegal. Sete mil indígenas estão em Brasília para alertar para os riscos do PL 191.

— O PL 191, se for aprovado, vai ser o golpe final para destruir o que resta dos povos indígenas. O garimpo é uma atividade nociva aos indígenas e à natureza — disse o sertanista Sydney Possuelo, que entrevistei na Globonews.

O sertanista começou sua longa carreira na Funai com os irmãos Villas Bôas, contactou sete povos, demarcou a terra Yanomami, a maior terra indígena brasileira, e depois implantou a política do não contato com os povos isolados. Possuelo recentemente devolveu a medalha do mérito indigenista, que recebeu na década de 1990, depois que o governo deu a mesma honraria a Jair Bolsonaro. No Acampamento Terra Livre, em Brasília, Possuelo recebeu na sexta-feira uma consagradora homenagem dos povos indígenas.

Além do cacique-geral do povo Munduruku, Arnaldo Kaba, conversei também com o antropólogo da mesma etnia Ademir Kaba e a coordenadora da Associação Pariri, que representa os Munduruku do médio Tapajós, Alessandra Korap. Os três me explicaram que a atividade garimpeira tem avançado dentro das terras indígenas do Tapajós, criando um círculo vicioso. Destrói rios e igarapés, desmata e mata animais. O garimpo entrou porque o Estado foi omisso para impor a lei e, ao atuar, vai criando necessidades para os indígenas. Com a água poluída, precisam de poços artesianos. Sem peixe, precisam de alimentos industrializados. Pela contaminação, precisam de remédios. Como o Estado continua omisso, os garimpeiros, que criaram a necessidade, oferecem água, alimentos e remédios, em troca do direito de explorar novas áreas.

— Nós queremos desenvolvimento, sim, mas outro tipo. E não esse que traz mais miséria, drogas, álcool e prostituição para os nossos jovens. Eles estão destruindo nossos valores morais e culturais — disse Ademir Kaba.

— Por que o governo não consulta o povo indígena, vai de aldeia e aldeia? A gente vem de longe. É cara a passagem. A gente arrisca a vida na viagem. A gente vem lutando com esse presidente, mas ele não ouve, ele não manda o povo dele ir conversar com a gente, assim como a gente está conversando agora. Assim é que é bom —contou o cacique Arnaldo.

Ele é representante de todos os Munduruku em 140 aldeias e 14 mil pessoas. O governo e os garimpeiros têm fomentado uma divisão entre eles e calcula-se entre 100 a 200 indígenas defensores do garimpo. Para chegar a Brasília, o cacique e seu principal assessor Ademir Kaba tiveram que viajar de barco até Jacareacanga, de carro até Itaituba e, de novo, de carro até Santarém, onde pegaram o avião.

— O custo se eleva porque antes a gente viajava de passagem, agora temos que alugar um carro exclusivamente para isso porque temos recebido ameaça de morte. A gente se sente muito indignado porque o governo não garante nem o direito de ir e vir — disse Ademir.

Alessandra, antes de viajar, falou com todas as aldeias do médio Tapajós para perguntar o que dizer. Com essa autoridade ela diz que o povo Munduruku não quer a legalização do garimpo, quer eliminá-lo do território.

— E não é só o garimpo. Não tem fiscalização aérea. Chega avião com armas, drogas, muita bebida. Não tem fiscalização no rio. Eu li o PL 191, não tem nada de potássio lá. Eles querem é tomar as terras indígenas — explicou Alessandra, que estuda Direito.

Possuelo acha que o Brasil nunca aceitou o indígena:

— A lei diz que existem três tipos de indígenas: os isolados, os de contato intermitente, que vêm para a cidade, mas voltam para as suas aldeias, e os integrados. Eu só conheço dois tipos. Integrado eu não conheço, mesmo o de contato mais antigo, de 500 anos, não é aceito em nossa sociedade. O Brasil não entende a riqueza étnica que tem. São poucos os povos do mundo que têm seu passado presente.

 

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