O lado esquerdo
do barco, com lotação esgotada por muitos crentes e muitos áulicos, sempre poderá
culpar moderados que não compareceram ao embarque no bote anunciado como se
fosse arca. Alguns teriam faltado porque, hipócritas, jamais se dispuseram a
viajar de verdade; outros porque, hesitantes, não souberam fazer a hora e
esperaram acontecer. Oxalá o naufrágio da democracia não ocorra mesmo ou, ao
menos, não seja fatal como pode ser e sobrem tempo, lugar e pessoas para tal
discussão retrospectiva se travar.
Espraiam-se controvérsias sobre motivos dessa imprudência de Lula. Primeira pergunta é se a imprudência é estratégica ou se resulta de perda de rumo. Pode ser que o próprio Lula e/ou a maior parte do comando da sua pré-campanha estejam vendo as pautas-bomba que ele tem veiculado como um caminho, ainda que tortuoso, para alcançar um porto onde se poderá constituir depois um centro político distinto do Centrão - embora não possa exclui-lo, como informa a realidade – para reconstruir o País, como prega a consigna atual do PT.
Se uma
inteligência fora do alcance de racionais mortais estiver por trás das mal
traçadas linhas que hoje se derramam à vista de todos, talvez haja chance de
que não só analistas, mas também políticos que, nas fileiras da esquerda,
divisam o iceberg, estejam fazendo tempestade em copo d’agua. Crentes e
áulicos aliam-se para ignorar alertas de bombeiros embarcados na arca, caso até
de políticos como Randolfe Rodrigues, cujo voluntarismo não é exemplo habitual
de prudência política. Na hora H, pensam os convictos, o guia genial dará o
pulo do gato, terá a solução e com ela provará que o mundo é estúpido, ele não.
Convém também - ainda
dando crédito à hipótese de racionalidade no script que o atual líder
das pesquisas encena – admitir que o adernamento da arca é tática sem
estratégia. Precisava sair da estagnação
porque se nela permanecesse poderia ser atropelado pela embarcação rival que,
ao contrário da sua, passou a navegar com passos mais seguros e alvo preciso,
apostando, pelo uso desmedido (ave PGR!) de recursos de poder, num avanço
incremental que remove obstáculos e incorpora novos tripulantes. Do ponto de
vista estritamente eleitoral pode ser apenas um voo de galinha que o próprio
Bolsonaro interromperá se concluir que a batalha está perdida. Ele enfrentará armadilhas da fortuna eleitoral,
que não vai lhe sorrir de graça depois de tantas manobras imprudentes e
criminosas que se cometeu naquela barca em momentos anteriores do trajeto. Mas
a sua atual tripulação, centrada e colegiada, toma providências até aqui
eficazes para compensar a parca virtù do seu capitão nominal. Lula, de
fato, precisava fazer “alguma coisa”. E
fez.
A tática escolhida
não tem apenas a face do destrambelho. Tem também a da esperteza de curto prazo,
que a faz merecer consideração como tática. Esticar a corda ao limite de
provocar a fera fascista que as bondades e malícias do centrão têm conseguido
domesticar, até um certo ponto. Essa tática tentaria deslocar esse ponto de
equilíbrio, constrangendo, de novo, políticos e eleitores que voltaram ou
cogitam voltar ao colo de Bolsonaro. Em vez de assistir passivamente à
cooptação, a conta-gotas, pelo continuísmo repaginado, de atores e eleitores do
campo da chamada “terceira via”, o caso seria tomar a iniciativa tática do
confronto, na expectativa de obrigar políticos e partidos e persuadir sociedade
e eleitores a discernirem joio e trigo, como discerniram em setembro de 2021. Para
isso, vale induzir o bolsonarismo a mostrar garras e armas. Um artigo do
jornalista Igor Gielow (“Lula aposta em jogo perigoso para polarizar com
Bolsonaro”, FSP, 06.04.22) detalha a tática com uma objetividade que não me
é dado superar, daí citá-lo.
Espero, por outro
lado, que leitores tenham notado que já não me refiro aqui a Lula, pessoalmente,
mas ao tipo de esquerda no qual ele se apoiou durante os anos de infortúnio e
que não tem mais condições de neutralizar, como fez em outras viagens suas “ao
centro”. É dessa esquerda a gramática que governa, no momento, a semântica do
pré-candidato. Em linhas gerais ela diz ao país, primeiro que Lula lhe
pertence, é um ativo do qual não abre mão, ainda que seu populismo apenas reformista
não contente plenamente à banda mais radical e culturalmente “descolada” dessa
esquerda cativa de guerras quentes e frias do século XX. Segundo, lembra que
sua pauta, sendo de esquerda, tem que ser forçosamente antiliberal. Eis seus
metros principais, o antiliberalismo e o antiglobalismo, valores negativos, para
ela equiparáveis, senão superiores, ao da democracia.
Por essa ótica, ganhar
eleitores de direita, mesmo liberais de centro, não é missão de Lula. Quem for
liberal em economia ou quem acreditar em instituições políticas liberais que
encontre um modo próprio de se opor a Bolsonaro votando na esquerda, afinal. Ou
adira ao capitão ou, então, como uma impossível terceira via, saia da política
“real”, ou até do país, livrando-se talvez do fogo do inferno, mas para arder de
dor e raiva num purgatório.
Ela, a esquerda
antifascista e antiliberal, pode vencer a eleição mesmo assim e se não vencer,
ao menos assegurará, com realismo, o lugar de oposição principal, como
assegurou em 2018. Lugar mensurável pelo número de deputados eleitos e, quiçá,
pelo governo de São Paulo. O PT volta-se ao útero paulista com a ajuda do seu
ícone nacional em declínio. Efeitos a médio prazo das urnas de 2022 dirão se
algum partido uterino de esquerda sorrirá enquanto o país sofrer com o
prolongamento da crise, ou se o populismo ressurgirá, como bumerangue, em seus
intestinos. Guilherme Boulos, encarnando um lulismo pós-moderno, pode frustrar tanto
a esperteza tática do PT quanto a imaginação pós-política do PSOL. Se Lula
vencer – cenário que ainda é o mais provável - poderemos ao menos crer que será
o que Deus quiser. Se o resultado dessa
tática sem estratégia for a reeleição de Bolsonaro, Lula sairá da política para
continuar na História.
Passo a tratar
agora de uma segunda hipótese sobre os motivos do precoce adernamento à
esquerda daquilo que, em tese, poderia ser uma arca de Noé acessível à
variedade de espécies que marca o mundo da política e o dos cidadãos comuns brasileiros.
Em vez de estratégia de uma inteligência genial ou mera tática de uma esperteza
facciosa mais trivial, podemos estar diante de reações erráticas de Lula ao deslizamento
de um dos pilares importantes de sua estratégia eleitoral. Aqui peço licença para
expor um raciocínio.
O que pode estar
fazendo Lula se atirar ao mar sem rumo certo e sem embarcação adequadamente
tripulada é a redução da perspectiva de cooptar o centrão. É razoável supor que
ele contasse - como muitos previam, inclusive eu – que vários nichos daquela
aglomeração cairiam no seu colo após fazerem refeições no palácio. Partia-se da
premissa de que se tratava de comensais desprovidos de ambição propriamente
política. O apetite fisiológico só não era maior, naquela zona cinzenta do
espectro político-partidário, do que a fragmentação autofágica e a incapacidade
estratégica daí derivada. Seus operadores, quanto mais ávidos por benefícios de
governo, mais seriam inaptos para governar.
Acontece que
dessa vez o centrão não aderiu ao governo, mas virou, ele mesmo, governo. Isso
não quer dizer que as expectativas de Lula e da torcida do Corinthians sobre o
comportamento daqueles políticos não eram razoáveis. Elas se baseavam em muitas
experiências reais, corretamente interpretadas. É que uma nova experiência de
interação política entre poderes, hoje em curso no Brasil, preenche, de modo
diverso ao verificado durante o governo Temer, o vácuo que se formou com o
trincamento, desde 2013/2014, do “presidencialismo de coalizão”. O
empoderamento prático do Congresso na sua relação com o Executivo e algumas
novas regras eleitorais mudaram também a conduta de vários políticos e
organizações do centrão. Na atitude dos políticos daquele agrupamento, onde
muitas vezes se viu uma “essência”, hoje é possível e necessário ver que era contingência.
Onde se esperava ver apenas atores autárquicos agindo na penumbra das
instituições, vemos, nessa mesma penumbra, um esquema funcionar em concerto,
mediante operações que dispensam a verticalidade das antigas. Onde se esperava
sopa de siglas, aparecem partidos organizados para governar. O varejo passou a
agir no atacado. Reluz a afirmação de Antônio Gramsci de que é grande política
reduzir toda a política à pequena política.
Tudo isso está colocando
Lula em situação de sobressalto. Seu plano original parece ser ganhar a eleição
com a sua popularidade pessoal somada ao apoio compacto da esquerda e à cooptação
varejista de partes do centrão. Um aceno “programático” ao centro se resumiria
à incorporação simbólica de um político conservador à sua chapa. A eficácia
eleitoral da coalizão política real (povão + esquerda + centrão) permitiria esnobar
o centro democrático e a centro-direita liberal e até zombar da ideia de
terceira via. Com isso estaria conciliando o discurso populista e a pequena
política pragmática com a denúncia do "neo-liberalismo” e do
“imperialismo”, diretrizes que fermentam, sem peias, no ambiente partidário da
esquerda, especialmente o do PT, emulado pela ascensão do PSOL.
O que políticos como
Randolfe e Cristovam Buarque percebem é que essa coalizão está trincando porque
o centrão adotou Bolsonaro e o está ajudando a furar a barreira do povão. Lançam
um grito de alerta não a Lula e ao PT, mas à sociedade, para que ela veja a
enrascada em que pode se meter se apostar num Lula focado no seu atual script.
O alerta é, ao mesmo tempo, um pedido de socorro para ver se algum movimento de
fora para dentro consegue salvar o salvador da pátria, arrancando-o da
compulsão das últimas semanas. Ela foi capaz de colocar em segundo plano a
formalização da candidatura de Alckmin a vice pelo PSB, sem que Lula demonstre,
na concretização disso, a mesma intensidade retórica que dedicou à recente
difusão de suas pautas polarizadoras. Espera-se ser só um descuido.
Com menos alarido
aparecem outras vozes moderadas da campanha de Lula que avançam além dos apelos
do tipo dos de Randolfe e Buarque. Flavio Dino - como faz há tempos - e Tarso
Genro, mais recentemente, salientaram que seria um dado positivo, no cenário da
pré-campanha, o surgimento de uma candidatura agregadora da chamada terceira
via. São manifestações mais ousadas e realistas porque, em vez de acentuarem um
risco eleitoral imediato, apontam, implicitamente, para uma impossibilidade
política de Lula liderar uma frente cívica para antecipar o segundo turno no
primeiro. Para tanto, precisaria adotar discurso e ânimo negociador de segundo
turno, o que está longe de acontecer. De fato, como ele daria uma quebrada de
asa para fazer omelete assim, sem quebrar inumeráveis ovos na sua frigideira?
Além da disputa em São Paulo, são carradas de candidatos a deputado ancorados
no discurso contra o liberalismo. Lula já não capitaneia sua tropa do jeito que
capitaneou um dia. Por isso os passageiros até aqui ocupam só um lado da arca.
A fórmula frente
de esquerda com vice brando + nacos do Centrão + gratidão do povão é um nó cego
que não vai ser desatado. Lula tem liberdade para conversar com empresários de
variados quilates, mas pisa em ovos quando se mexe na área política da oposição
não petista a Bolsonaro. Uma distância se consolidou por ela não ter sido
incluída como aliada, e sim como rival, na sua estratégia eleitoral original. Cada
eventual passo seu em direção a quadros atualmente adversários de centro, de
centro direita ou de centro-esquerda, como Michel Temer, Simone Tebet, Ciro
Gomes, Roberto Freire, Aécio Neves, João Dória, Eduardo Leite ou ACM Neto,
tenderia a ter alto custo de mobilização doméstica, no plano nacional ou em estados
relevantes. E seriam esses (ao menos alguns desses) os diálogos mais
necessários, com variados graus de relevância. Claro que as interdições são
recíprocas, mas é elementar, na arte de capitanear, a premissa de que a
iniciativa para vence-las cabe, primordialmente, a quem lidera e pode vencer a
batalha principal. Tudo indica que é tarde. Acordos regionais foram feitos, a
janela partidária fechada. Será assim, na base do engrossa aqui, pipoca ali,
que Lula indica ir até o fim, apostando que vai ganhar.
Flavio Dino aponta
na direção correta. Considero não ser exagero dizer que hoje Lula precisa, mais
do que já precisava antes, de uma candidatura razoavelmente forte de
centro-direita que tire votos de Bolsonaro e também impeça que novos votos
conservadores retornem para ele. Em resumo, candidatura capaz de evitar que um
empate técnico ocorra, entre os dois contendores principais, ainda no primeiro
turno. Há meses pesquisas sugerem que a candidatura solitária de Ciro Gomes não
será capaz de fazer isso.
A viabilidade
disso acontecer é tema para outra coluna. Um bom ponto, que vi proposto em
algum lugar durante essa movimentada semana, é saber o que é mais difícil:
aparecer uma candidatura mais competitiva do centro democrático ou a
candidatura de Lula tomar um rumo compatível com o eleitor moderado, objeto de
desejo do centro democrático.
Parece claro que
esse eleitor moderado anda desolado. Os nós cegos da estratégia eleitoral de
Lula e da centrifugação dos partidos do centro o deixam, por ora, sem opção política
contra o capitão no poder e, naturalmente disposto a seguir o campo que conseguir
desatar o seu nó. Enquanto Lula não amplia de fato sua capitania, esse eleitor
moderado depende do MDB, PSDB, União Brasil e Cidadania fundarem a sua. Falarei
disso no sábado.
*Cientista político e professor da UFBa.
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