O Estado de S. Paulo
Nossas ‘três eleições’ de 2022 são teste
relevante para a capacidade e a disposição de nossa democracia para reagir à
cacofonia e ao caos.
Uma nova baixa para a democracia global (A new low for global democracy, no
original) é o título de trabalho recente publicado pela The Economist Intelligence Unit que
classifica o “estado da democracia” por meio de cinco critérios: processo
eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política,
cultura política democrática e liberdades civis. Na edição mais recente –
fevereiro de 2022 –, a nota média para o conjunto de 167 países atingiu um novo
limite inferior.
Ainda que encerrem certo grau de
subjetividade, avaliações dessa natureza indicam algo relevante. Há muitos
descontentes com a democracia e com a globalização e ambos os descontentamentos
estão relacionados, no que talvez constitua uma tendência. Vale citar Adam
Przeworski: “Não acredito que a sobrevivência da democracia esteja em jogo na
maioria dos países, mas não vejo nada que possa acabar com o nosso
descontentamento atual. Ele não será aliviado por acontecimentos políticos
ocasionais ou pelos resultados de eleições futuras. A crise não é apenas
política; tem raízes profundas na economia e na sociedade. É o que me parece
mais assustador”.
Meu artigo do mês passado (É assustador, 13/3) abre da seguinte forma: “Começamos muito mal esta terceira década do século 21. É assustador imaginar os desdobramentos desta crise global, que transcende em muito a questão ucraniana (...). (...) terão consequências globais, geopolíticas e econômico-sociais que se projetarão por anos. As incertezas, os riscos e a volatilidade, que já não eram pequenos, acentuaram-se sobremaneira com os choques de oferta, as pressões inflacionárias e a inevitável redução da taxa de crescimento global”.
Esta terceira década começou com a
identificação do vírus que causa a covid-19 e a declaração da pandemia. As
respostas de governos (Tesouros e bancos centrais) para mitigar os efeitos da
crise sobre o emprego e a renda foram inéditas em sua amplitude e profundidade.
Ainda assim, 2020 foi marcado por uma recessão global até que as vacinas fossem
descobertas, produzidas e começassem a ser aplicadas em escala.
A forte recuperação de 2021 levou muitos a
enxergar a proximidade de um “novo normal”. Essa percepção é, no entanto,
questionada pelas entrevistas recentes (The
Economist) dos drs. Anthony Fauci (EUA) e Jeremy Farrar
(Inglaterra). Para Farrar, “passados dois anos, a pandemia está longe de ter
acabado. A ideia de que em breve a covid-19 não estará mais circulando pelo
mundo tem chance zero de ocorrer”. A observação do que ocorre neste momento na
maior cidade do mundo (Xangai), onde mais de 26 milhões de habitantes
encontram-se sob lockdown e
testes compulsórios para lidar com uma nova onda de cepas, tampouco autoriza
complacência.
No início da pandemia, indagava-se com
frequência: “A covid é um game
changer ou apenas vai exacerbar tendências preexistentes?”. A
pergunta é agora reiterada, diante das consequências das respostas de governos
à covid em 2020/2021, da invasão da Ucrânia por tropas russas no início de 2022
e das respostas dadas por EUA e União Europeia. Penso agora que estamos diante
de um game changer mais
que de simples exacerbação de tendências já existentes. Não haverá volta ao status quo anterior.
Neil Ferguson sintetizou bem a questão: “O
mundo tem um problema de inflação sério e se agravando, com os bancos centrais
seriamente atrasados. Quanto mais esta guerra continuar, mais séria será a
ameaça de estagflação (inflação
alta, mas com crescimento econômico baixo, nulo ou negativo). Esse
problema será mais grave em países que dependem fortemente da Ucrânia e da
Rússia, não apenas para energia e grãos, mas também para fertilizantes, cujos
preços praticamente dobraram como resultado da guerra. Qualquer um que acredite
que isso não terá consequências sociais e políticas adversas ignora a
história”.
Há um “novo diferente” – na economia, na
geopolítica, no social; e nas preocupações acentuadas, em muitos países
relevantes, com segurança de vários tipos (energética, alimentar, sanitária,
ambiental, cibernética, militar). Restarão afetadas as possibilidades de ação
coletiva e de cooperação internacional, tão necessárias para lidar com algumas
dessas dimensões da segurança.
O poeta inglês John Keats escreveu, em
1818, que “não há nada estável no mundo: o alvoroço (uproar) é a nossa única música”. O
início da frase é especialmente verdadeiro. Anne Applebaum o expressou de
maneira relevante: “Os freios, filtros e contrapesos das democracias
constitucionais ocidentais jamais garantiram estabilidade. Eles sempre exigiram
certa tolerância pela cacofonia e pelo caos, assim como certa disposição em
reagir às pessoas que criam cacofonia e caos”.
O que nos remete ao Brasil de hoje. O
professor Joaquim Falcão nota que teremos em outubro não uma, mas três
eleições: para presidente, para o Congresso e, por via de consequência, para a
cúpula do Judiciário, para a qual o futuro presidente deverá apontar diversos
nomes. Nossas três
eleições de 2022 constituem teste especialmente relevante para
a capacidade e a disposição de nossa democracia constitucional para reagir à
cacofonia e ao caos.
*Economista, foi ministro da Fazenda no
governo FHC.
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