terça-feira, 5 de abril de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Só voto pode livrar Brasil do insidioso patrimonialismo

O Globo

À medida que os beneficiários do orçamento secreto vêm à tona — graças à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) —, fica evidente a extensão da contaminação das instituições brasileiras pelo patrimonialismo mais insidioso e nocivo à saúde da República. A expressão “cupinização institucional”, cunhada pela ministra Cármen Lúcia, do STF, para se referir à gestão ambiental de Jair Bolsonaro, poderia ser estendida às demais esferas de um governo que pouco — se algo — guarda de republicano.

Para onde quer que se olhe, vê-se o favorecimento dos amigos do poder, seja o presidente, sejam seus filhos, seus ministros ou seus vassalos do Centrão. É como se o Brasil ainda vivesse num regime monárquico sujeito a nenhuma disciplina, transparência, fiscalização ou critério no trato do dinheiro dos nossos impostos.

Pode ser no Ministério da Saúde, onde no ano passado um bando de vigaristas chegou perto de faturar alto com a venda de vacinas que não podiam entregar, enquanto a porta continuava fechada à ciência e às farmacêuticas sérias. Pode ser no Ministério da Educação, onde pastores comandavam o envio de recursos a prefeituras, e a compra de ônibus escolares sofreu superfaturamento estimado em R$ 769 milhões. Pode ser no Ministério da Defesa, que distribuiu R$ 400 milhões, via orçamento secreto, segundo o alvitre de 11 senadores governistas.

De acordo com reportagem do GLOBO, a pasta gerida pelo general Braga Netto, pré-candidato a vice de Bolsonaro, despejou dinheiro em projetos tão paroquiais quanto um novo velório ou o asfalto de ruas em São Félix do Araguaia, no interior de Mato Grosso. Esses custaram apenas R$ 2,4 milhões. Mas são apenas um entre tantos exemplos de agrados aos amigos feitos por meio das emendas do relator. Ao todo, elas somaram R$ 38,1 bilhões nos Orçamentos de 2020 e 2021.

Parece escapar à classe política brasileira o custo gigantesco desse tipo de mecanismo. Não se trata apenas de desperdício de recursos que deveriam ser despendidos, segundo critérios técnicos e transparentes, nas áreas em que temos necessidades urgentes, caso de saúde, educação, segurança, infraestrutura, combate a enchentes e tantas outras. A contaminação das instituições por interesses paroquiais cobra um preço ainda mais pernicioso ao perpetuar a captura do Estado em detrimento do progresso.

Como constata o filósofo Fernando Schüler em texto recente na revista Veja, não é um acaso que nosso Parlamento e nosso Judiciário sejam os mais caros do mundo. Nem que os salários do funcionalismo consumam escandalosos 13% do PIB, fatia equivalente à de países como Canadá e Alemanha, quando temos pobreza comparável à de Bolívia ou Paraguai. “A questão central continua a mesma”, diz Schüler. “Se desejamos um país moderno e de mercado, com um Estado enxuto e feito de direitos iguais, ou se seguiremos com nossos pastores-lobistas e parlamentares recebendo 528 vezes a renda média de um trabalhador.”

A sociedade brasileira não pode continuar refém dos grupos de interesse que se apoderam do Estado incrustando na lei privilégios indecentes que todos nós pagamos. Numa democracia, é preciso que tenhamos consciência da importância do voto para transformar esse estado de coisas. É esse o inseticida recomendado para livrar nossas instituições dos cupins.

É preciso sustar compra de ônibus escolares com indício de sobrepreço

O Globo

O Ministério da Educação ainda não esclareceu o balcão de negócios que funcionava na pasta. Depois da denúncia de intermediação de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) por pastores alheios ao MEC, já está diante de outro episódio nebuloso. O FNDE se dispõe a pagar até R$ 480 mil por um ônibus escolar que no mercado custa no máximo R$ 270 mil. Com isso, a compra de 3.850 veículos destinados a áreas rurais subiria de R$ 1,31 bilhão para R$ 2,08 bilhões.

O governo desprezou alertas feitos pela Controladoria-Geral da União (CGU) e pela própria área técnica do FNDE, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. A CGU estranhou o FNDE não levar em conta valores pagos por outros órgãos da administração, considerando apenas os preços informados pelos fabricantes, em média 54% acima do estimado. A CGU afirmou ainda que, como está, a licitação favorece a formação de cartéis pelos fornecedores.

A posição da CGU é semelhante à da área técnica do FNDE, que chamara a atenção para o risco de sobrepreço na compra dos ônibus escolares. Segundo os técnicos, há discrepâncias entre os valores apresentados pelos fornecedores e o último pregão, no ano passado. Isso significa, nas palavras deles, “aumento não justificado do preço, sem correspondente vinculação com as projeções econômicas do cenário atual”.

Com papel fundamental na execução das ações do MEC, não só no ensino básico, o FNDE em tese deveria ser um órgão técnico para ajudar a melhorar a qualidade da educação no país. Mas, como tem acontecido na turbulenta gestão educacional do governo Bolsonaro, foi capturado pelos desígnios da política. Comandado por Marcelo Ponte, indicado pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, o FNDE é um dos feudos do Centrão no governo.

A submissão ficou clara no escândalo dos pastores que levou à exoneração do então ministro Milton Ribeiro. É inaceitável que o destino de verbas do FNDE para construção de escolas, creches e outros programas fique ao sabor de indicações políticas, ainda mais quando há indícios de corrupção e tráfico de influência.

Para o bem da educação e da moralidade pública, a licitação para compra dos ônibus escolares com sobrepreço precisa ser sustada e investigada pelas autoridades. Não será a primeira vez. Em 2019, a CGU apontou irregularidades na licitação de R$ 3 bilhões do FNDE para compra de computadores destinados a estudantes de todo o país. Para citar apenas uma, a Escola Municipal Laura Queiroz, em Itabirito (MG), receberia 30 mil laptops. Como só tinha 255 alunos, cada um teria 117 notebooks. Felizmente, a aberração não prosperou.

Mais do que deter a sangria nas verbas públicas da educação e investigar a razão do sobrepreço, é preciso corrigir urgentemente os rumos do MEC, que já vai para seu quinto ministro no atual governo.

Alívio pandêmico

Folha de S. Paulo

Com percepção de Covid mais contida, cai reprovação a atrocidades de Bolsonaro

A gestão da pandemia por parte do governo Jair Bolsonaro (PL), que nas pesquisas realizadas ao longo do último ano vinha sendo reprovada por mais de metade dos eleitores, obteve um veredito menos negativo no mais recente levantamento feito pelo Datafolha.

Comparada à sondagem anterior, de setembro de 2021, a fatia dos que consideram ótima ou boa a atuação do presidente ante a crise sanitária passou de 22% para 28%. Já aqueles que a avaliam como regular subiram de 22% para 25%, ao passo que a parcela dos que enxergam o desempenho como ruim ou péssimo caiu de 54% para 46%.

A mudança captada pela pesquisa não decorre de alguma mudança recente na postura de Bolsonaro. Pelo contrário: o negacionismo, a omissão, a irresponsabilidade e o desprezo pela vida seguem sendo as marcas essenciais da atuação governamental durante a pandemia.

Entretanto uma certa acomodação, natural depois de dois anos de angústia social e econômica, parece combinar-se, na opinião pública, ao alívio causado pelo arrefecimento da doença, terminando por favorecer uma apreciação mais benevolente do governo.

Embora a Covid-19 já tenha produzido a marca chocante de 660 mil mortes no país, não há dúvida de que a epidemia representa hoje um perigo muito menor que no passado. A principal razão são as vacinas —que Bolsonaro primeiro relutou em comprar, depois questionou a sua eficácia e, por fim, desestimulou a aplicação.

A população, felizmente, ignorou as patranhas presidenciais. Atualmente, 75% dos brasileiros já receberam as duas doses do imunizante, e metade do público elegível, a terceira. Essa diminuição de riscos transparece na percepção popular sobre o estado da pandemia.

Para 72% dos entrevistados, a crise sanitária está hoje parcialmente controlada e, para 15%, totalmente —apesar de uma média móvel diária de cerca de 200 mortes.

Com a pandemia deixando de ser o foco das preocupações nacionais, as inúmeras atrocidades cometidas por Bolsonaro nesse período tendem a se tornar menos vívidas na memória da população, o que, mais uma vez, contribui para uma opinião menos rigorosa sobre a atuação do mandatário.

Os dados apontam ainda que a avaliação da gestão da pandemia, que desde o início da crise vinha sendo pior que a avaliação geral do governo, agora convergiu com esta. Dito de outro modo, a reprovação da política sanitária hoje está mais restrita aos que reprovam a administração como um todo.

Não chega a ser grande resultado para um presidente tido como ruim ou péssimo por 46%, a pior marca de um eleito na redemocratização a esta altura do mandato.

Sopro iliberal

Folha de S. Paulo

Aliança com Putin não impede reeleições de mandatários na Hungria e na Sérvia

Uma guerra universalmente condenada deveria colocar contra a parede os aliados do agressor. As eleições na Hungria e na Sérvia mostram que a realidade pode ser bem mais complexa sob a sombra da invasão russa da Ucrânia.

Viktor Orbán é um autocrata incrustado na União Europeia e na Otan, a aliança militar ocidental. Foi reeleito para o quinto mandato, o quarto em sequência, pelos húngaros, neste domingo (3).

E não foi uma vitória qualquer. Seu partido manteve os dois terços do Parlamento necessários para instrumentalizar as instituições de seu país, Judiciário à frente.

Não é casual que, depois de beijar a mão de Vladimir Putin, Jair Bolsonaro (PL) tenha ido abraçar o "irmão" Orbán, com quem comunga valores reacionários.

O húngaro é o principal aliado de Putin na Europa, tendo popularizado o oximoro democracia iliberal para caracterizar seus regimes. Nem sempre foi assim, num balé de interesses regido por sua dependência energética de Moscou.

A guerra pautou o final da campanha eleitoral, que viu uma oposição unida, clamando pela ocidentalização da Hungria. Orbán driblou todos, apoiando sanções europeias sem criticar o Kremlin.

Deu certo. Algo semelhante ocorreu na Sérvia, onde Aleksandr Vucic reelegeu-se confortavelmente presidente. Assim como o Brasil, Belgrado condenou a invasão da Ucrânia na ONU, mas evitou críticas mais contundentes a Putin.

A situação ali é diversa da húngara, já que sérvios não são membros da União Europeia e, eslavos, têm com a Rússia laços culturais, religiosos e econômicos. Entretanto o iliberalismo de Vucic foi igualmente recompensado.

Isso tudo chama a atenção também para o presidente francês, Emmanuel Macron. Ele lidera a corrida para o primeiro turno, que ocorre no domingo (10), sem folga —e poderá ver a união de candidatos da extrema direita na rodada final.

Sempre vistos como um fantasma que não se materializa, esses rivais de Macron são próximos de Putin, e a guerra tem cobrado seu preço na economia francesa de forma que pode afetar o pleito.

Não é possível ainda falar em uma onda conservadora e tolerante com a guerra, assim como era apressada a visão de uma América Latina toda à esquerda devido ao caso do Chile. Mas Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro e companhia deverão prestar atenção ao que acontece do outro lado do Atlântico.

Inadimplência de alto a baixo

O Estado de S. Paulo

Pandemia, inflação, juros elevados e alto desemprego têm dificultado a liquidação de compromissos. Esses entraves têm impedido muita gente de tirar o nome do vermelho

Nem adianta cobrar. Com dinheiro curto até para as contas do mês, multidões de consumidores têm sido incapazes de liquidar também as dívidas em atraso, tornando mais difícil, assim, a obtenção de novos créditos. Desde o primeiro surto de covid-19 o quadro tem piorado. Em 2019, antes da pandemia, 59,2% dos débitos de consumidores inadimplentes foram recuperados em até 60 dias depois da negativação. Em 2020, 57,2% dos atrasos foram corrigidos. No ano passado, os acertos ficaram em 54,5%. Foi o pior resultado da série histórica, iniciada em 2016. Os dados são da Serasa Experian, empresa especializada em informações financeiras. Também têm aumentado os débitos pendentes com bancos e administradoras de cartões.

Não se trata de uma onda de malandragem. Os consumidores brasileiros, especialmente os menos abonados, procuram pagar as contas em dia e ficar fora das listas de inadimplentes. Esse padrão tem sido confirmado por pesquisas. Mas pandemia, inflação, juros elevados e alto desemprego têm dificultado a liquidação de compromissos. Esses entraves têm impedido muita gente de tirar o nome do vermelho, comentou o economista Luiz Rabi, da Serasa Experian. Os consumidores inadimplentes foram 65,2 milhões em fevereiro deste ano – um número 5,8% maior que o de um ano antes.

A crise econômica prolongada tem poupado poucos brasileiros. Mesmo aqueles com os pagamentos em dia têm vivido momentos difíceis. A inadimplência aumentou em todas as grandes faixas de endividamento. A maior recuperação, 67,2%, foi a das dívidas superiores a R$ 10 mil. A menor foi a do grupo imediatamente inferior, no intervalo de R$ 2 mil a R$ 10 mil.

Em economias saudáveis e menos assoladas pela pobreza, o endividamento é um componente normal das finanças familiares e um importante suporte dos negócios. No Brasil, a dívida tende a ser, para milhões de famílias, um meio de sobrevivência. Incapazes de realizar de outra forma os gastos indispensáveis, dezenas de milhões de brasileiros acabam recorrendo ao crédito para garantir moradia, comida e outros bens e serviços essenciais. Nos últimos anos, nem esse mínimo tem sido alcançado por uma grande parcela da população.

Os mais afetados pela estagnação econômica e pelo desemprego são os mais pobres. Segundo levantamento da Tendências Consultoria, 3,7 milhões de pessoas, 26% dos desocupados, estão sem emprego há mais de dois anos. Trabalhadores das classes D e E, as mais pobres, são 81% do grupo há mais tempo sem ocupação.

Entre esses desocupados há pessoas com formação universitária e especialização profissional, como indicou reportagem do Estadão. Mas os desempregados de longo prazo são geralmente trabalhadores sem qualificação ou de qualificação muito modesta, pessoas já pobres antes do desemprego. A pouca renda conseguida em trabalhos eventuais nem sempre basta para as despesas essenciais. Quem consegue algum crédito para as compras indispensáveis enfrenta risco evidente de inadimplência.

Consequência do amplo e duradouro desarranjo da economia, o desemprego prolongado também é fator de enfraquecimento econômico. Trabalhadores desocupados por muito tempo ficam desatualizados e perdem capacidade produtiva. A curto prazo, são forçados a comprimir seus gastos, deixando de alimentar a demanda de bens e serviços. No Brasil, o quadro da crise inclui, além do desemprego e do baixo ritmo de atividade, a inflação acelerada, fator de erosão da renda familiar, e os juros altos, entraves ao consumo e à produção.

Sem planejamento, sem metas e sem rumo, o poder federal continua incapaz de proporcionar esperança de melhora significativa até o início do novo mandato presidencial. Além disso, todos os dados conhecidos indicam enormes desafios para quem assumir a Presidência em janeiro, se for alguém capaz de entender sua responsabilidade e seus problemas. Enquanto isso, a maior inadimplência continua sendo a do presidente Jair Bolsonaro, devedor das tarefas mais importantes de quem assume o posto mais alto da administração de um país.

Um inferno do século 21

O Estado de S. Paulo

Imagens das atrocidades russas e relatos de execuções sumárias são aterradores e clamam por uma punição a Putin por atacar civis numa guerra sem sentido

O recuo das tropas russas nos arredores de Kiev permitiu ao mundo ver a selvageria do Kremlin com seus próprios olhos e ouvir o seu cinismo com seus ouvidos.

O Kremlin diz que nenhum residente dos subúrbios de Bucha e Irpin sofreu violência pelos russos. As fotos mostram cadáveres espalhados pelas ruas e pilhas de sacos pretos. Há um homem baleado enquanto andava de bicicleta. Há automóveis destroçados com corpos dentro.

A Procuradoria-Geral ucraniana relatou 410 cadáveres de civis, mas o número seguramente é maior. Autoridades de Bucha relatam pelo menos 280 em valas comuns. Em um bosque na vila de Motyzhyn foram exumados os corpos da prefeita, seu marido e seu filho, assassinados, segundo as autoridades, após se recusarem a cooperar com os russos.

A imprensa e organizações independentes registram evidências de execuções sumárias. Há corpos com mãos atadas ou pólvora no rosto, indicando tiros à queima-roupa, além de sinais de tortura e relatos de espancamentos e estupros.

O Kremlin declara que “as fotos e vídeos publicados pelo regime de Kiev em Bucha são só mais uma provocação”, uma “farsa” para desviar a mídia ocidental. Mas nenhum especialista em defesa ou direitos humanos está surpreso. “Qualquer um que diga que Bucha é resultado da brutalização ou de um comportamento delinquente está errado”, disse Jack Watling, do instituto britânico Royal United Services. “Esse era o plano. Foi premeditado. É consistente com os métodos russos na Chechênia. E, se o Exército russo tivesse sido mais bem-sucedido, haveria muitas outras cidades como ela.”

O pior está por vir. Há indícios de tropas e mercenários chechenos próximos a Kiev. Mas é sobretudo no leste, onde Vladimir Putin está concentrando esforços, que provavelmente atuam mercenários sírios e do Grupo Wagner, uma milícia diretamente conectada ao Kremlin. Seus paramilitares já serviram na invasão da Ucrânia em 2014. Desde então, passam-se por soldados e separatistas russos na região de Donbass, e já auxiliaram ditadores favoráveis a Putin na Síria, Líbia, Mali, República Centro-Africana, Sudão e Venezuela.

Mykhailo Podolyak, conselheiro da presidência ucraniana, disse que a região de Kiev foi um “inferno do século 21”: “Os piores crimes do nazismo voltaram à Europa”.

O secretário-geral da ONU pediu uma investigação por crimes de guerra. O presidente francês, o chanceler alemão e o presidente do Conselho Europeu apontaram nas atrocidades indícios de crimes de guerra, e prometeram retaliar com mais sanções. Em março, após o bombardeio de uma maternidade e um teatro repleto de civis em Mariupol, o presidente norte-americano, Joe Biden, já havia chamado o presidente russo de “criminoso de guerra”. Tornou a fazê-lo agora.

As evidências se acumulam. Mas Putin e seus correligionários estão longe de uma punição. Mais de 1 milhão de pessoas, incluindo dois ex-primeiros-ministros britânicos, peticionou por um tribunal nos moldes de Nuremberg. O crime de agressão, sob jurisdição da Corte Internacional de Justiça, que julga Estados, parece claro. Mas qualquer sanção depende do Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia tem poder de veto.

O Tribunal Penal Internacional, que julga indivíduos, investiga crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. Mas as ordens criminosas precisam ser documentadas, e, mesmo que fossem, a Rússia não reconhece a Corte e não entregará cidadãos russos, muito menos dos altos escalões.

Isso não significa que os processos não devam avançar. Se as ferramentas forenses não forem empregadas agora, muitas evidências se perderão. 

Muitos dirão que jogar Putin contra as cordas é contraproducente para a paz. Mas a história mostra que apaziguar tiranos só lhes dá fôlego para perpetrar mais atrocidades. A legitimação das Cortes pode revigorar os ucranianos, impulsionar o auxílio do Ocidente e desencorajar soldados e oficiais russos. De resto, por remota que seja no presente, há sempre a possibilidade de que no futuro o povo russo deponha Putin e faça justiça a seus irmãos ucranianos, entregando-o ao banco dos réus.

O efeito da guerra está chegando

O Estado de S. Paulo

A balança comercial registra números recordes, mas a invasão da Ucrânia gera problemas que já preocupam a indústria

As principais instituições financeiras estão revendo, para cima, suas projeções para o comércio exterior brasileiro. Já há previsões de superávit de US$ 75 bilhões em 2022, bem maior do que os US$ 61,4 bilhões do ano passado. Não há, porém, razões para comemorar esse desempenho. A alimentar essas projeções está a guerra da Ucrânia, que provocou mudanças expressivas e imediatas no mercado mundial de alguns dos produtos mais comercializados. Seus impactos, embora positivos para a balança comercial, são muito mais amplos e, na maior parte dos casos, negativos.

Além dos riscos para a paz mundial e dos dramas humanos expressos nas mortes, sobretudo de civis, e na existência de mais de 4 milhões de ucranianos refugiados, a criminosa invasão da Ucrânia decidida pelo governo russo chefiado por Vladimir Putin resultou em altas de muitos produtos e dificultou o fornecimento ou o fluxo de vários outros. O mundo enfrenta, simultaneamente, pressões inflacionárias e o risco de redução do ritmo de muitas atividades, por escassez de itens como fertilizantes e componentes industriais. Essas consequências chegaram ou estão chegando ao Brasil.

Os números recentes mais do que explicam as projeções para o comércio exterior. Em março, o Brasil exportou US$ 7,383 bilhões mais do que importou. Por causa da alta das commodities, o saldo comercial no mês foi 19,3% maior do que o de um ano antes. No trimestre, o superávit chegou a US$ 11,313 bilhões, 37,6% maior do que o dos três primeiros meses de 2021.

Novos choques de oferta em razão da guerra ou de novas ondas de covid-19 na China não estão descartados. Altas expressivas nas cotações de petróleo, gás natural, trigo, níquel, soja, milho e minério de ferro, entre outros produtos de grande peso no comércio mundial, não dão indicações de que poderão arrefecer no curto prazo. A balança comercial, assim, continuará a registrar resultados muito favoráveis.

Mas outros efeitos da guerra já preocupam setores produtivos no Brasil e ameaçam algumas atividades. O Brasil importa, por exemplo, 85% dos fertilizantes consumidos internamente e que estão na base da produtividade e do bom desempenho do campo nos últimos anos. Do total importado, 25% são de origem russa.

A alta das commodities, de sua parte, pressiona também os preços internos, o que tende a manter o custo da alimentação como um dos itens que pressionam a inflação já alta no Brasil, o que prejudica mais as camadas mais pobres da população. Trigo mais caro implica alta do preço do pão e das massas. A alta do petróleo tem impacto no preço dos combustíveis, o que pressiona o orçamento das famílias e também os custos de produção e transporte de mercadorias.

A alta das matérias-primas já preocupa um terço das indústrias paulistas. Além disso, a guerra fez ressurgir dificuldades de suprimento, que a pandemia havia criado, mas estavam sendo superadas.

Nada disso parece preocupar o governo. Quem o presidente Jair Bolsonaro culpará desta vez?

Ministério da Saúde segue distraído com banalidades

Valor Econômico

Apenas a Organização Mundial de Saúde tem o poder de rebaixar a pandemia para endemia

Apesar da desaceleração do número de mortes causadas pela covid-19 no Brasil, o país entrou em abril acima da marca de 660 mil mortes desde o início da pandemia. Segundo a Universidade de Johns Hopkins, o país está em segundo lugar no ranking global, após os EUA, consequência de uma série de erros, como o atraso no reconhecimento da gravidade da pandemia e na compra de vacinas, e da descoordenação do enfrentamento da doença; e até as campanhas de descrédito à efetividade das vacinas, inspiradas pelo próprio presidente Jair Bolsonaro.

Aproveitando a redução dos casos, Bolsonaro decidiu decretar o fim da pandemia e logo teve apoio do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Queiroga levou o plano ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Havia até data marcada para o anúncio: 31 de março, aniversário do golpe de 1964. Até que alguém descobriu que apenas a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem o poder de rebaixar a pandemia para endemia.

Mesmo ciente disso, Bolsonaro seguiu disseminando entre apoiadores e nas redes sociais a ideia de que não se justificava mais pensar em pandemia e que era desnecessário o uso de máscaras e outros cuidados. Sob pressão do Palácio do Planalto e, para não admitir o fiasco, Queiroga buscou atender o chefe com a flexibilização de medidas de prevenção, embora vários Estados já tenham adotado algumas delas, como a dispensa do uso de máscaras em ambientes abertos e até nos fechados.

Já o fim da situação de emergência sanitária no país, como deseja Bolsonaro, seria um “desastre”, avisou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Entre as consequências mais sérias estaria a proibição do uso das vacinas Coronavac e a Janssen, que estão sendo aplicadas em caráter emergencial e ainda não receberam registro definitivo. Há também medicamentos e testes que estão sendo utilizados nessas condições. Até com receio de uma judicialização do assunto, Queiroga passou a moderar o discurso e as promessas.

Antes dessa batalha, porém, o governo havia conseguido passar pelo Congresso a lei que permite o uso de medicamentos “off label”, ou seja, para finalidades não indicadas na bula nem autorizadas pela Anvisa, desde que haja recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec). A comissão é vinculada ao Ministério da Saúde e conta com integrantes da pasta, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, da Anvisa e do Conselho Federal de Medicina (CFM), e consultores externos.

Resta saber quem em uma comissão tão ampla quanto a Conitec vai se responsabilizar por algum eventual efeito adverso em pacientes que receberem o medicamento off label. Um dos exemplos mais temidos de uso off label foi o da cloroquina no tratamento da covid-19, estimulado por Bolsonaro. Outro medicamento recomendado por ele para enfrentar a pandemia, o antiparasitário invermectina, acaba de ser contraindicado para a covid-19 por um estudo brasileiro amplo, que constatou que ele não diminui risco de internação, não aumenta a velocidade de recuperação, não reduz tempo no hospital nem o risco de morte.

Agora o ministro da Saúde está entusiasmado com a ideia de implantar o sistema de open health, inspirado no open banking. A proposta implicaria o compartilhamento dos dados da população em plataforma eletrônica e a criação de um cadastro positivo da saúde. A ideia é estimular a competição entre os planos de saúde e reduzir custos para as pessoas. O ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, torpedeou a proposta (Folha de S. Paulo 21/3). Criticou em especial o compartilhamento de informações pessoais sensíveis; e evidenciou as diferenças entre o setor financeiro e o serviço de saúde.

Problemas mais urgentes, mas menos midiáticos, não faltam. Fraga sugeriu que o ministro se dedicasse a fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), que enfrenta “inúmeras dificuldades”. De fato, pesquisadores do FGV-Saúde acabam de publicar na revista científica “The Lancet” estudo que aborda a redução considerável das consultas médicas, diagnósticos, cirurgias de baixa, média e até alta complexidade nas unidades do SUS desde 2019, o que pode manter os hospitais sobrecarregados por um bom tempo. A distribuição igualitária dos repasses federais aos Estados durante a pandemia, sem levar em consideração os locais mais vulneráveis, é outro problema identificado.

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