EDITORIAIS
Só voto pode livrar Brasil do insidioso
patrimonialismo
O Globo
À medida que os beneficiários do orçamento
secreto vêm à tona — graças à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) —,
fica evidente a extensão da contaminação das instituições brasileiras pelo
patrimonialismo mais insidioso e nocivo à saúde da República. A expressão
“cupinização institucional”, cunhada pela ministra Cármen Lúcia, do STF, para
se referir à gestão ambiental de Jair Bolsonaro, poderia ser estendida às
demais esferas de um governo que pouco — se algo — guarda de republicano.
Para onde quer que se olhe, vê-se o
favorecimento dos amigos do poder, seja o presidente, sejam seus filhos, seus
ministros ou seus vassalos do Centrão. É como se o Brasil ainda vivesse num
regime monárquico sujeito a nenhuma disciplina, transparência, fiscalização ou
critério no trato do dinheiro dos nossos impostos.
Pode ser no Ministério da Saúde, onde no
ano passado um bando de vigaristas chegou perto de faturar alto com a venda de
vacinas que não podiam entregar, enquanto a porta continuava fechada à ciência
e às farmacêuticas sérias. Pode ser no Ministério da Educação, onde pastores
comandavam o envio de recursos a prefeituras, e a compra de ônibus escolares
sofreu superfaturamento estimado em R$ 769 milhões. Pode ser no Ministério da
Defesa, que distribuiu R$ 400 milhões, via orçamento secreto, segundo o alvitre
de 11 senadores governistas.
De acordo com reportagem do GLOBO, a pasta gerida pelo general Braga Netto, pré-candidato a vice de Bolsonaro, despejou dinheiro em projetos tão paroquiais quanto um novo velório ou o asfalto de ruas em São Félix do Araguaia, no interior de Mato Grosso. Esses custaram apenas R$ 2,4 milhões. Mas são apenas um entre tantos exemplos de agrados aos amigos feitos por meio das emendas do relator. Ao todo, elas somaram R$ 38,1 bilhões nos Orçamentos de 2020 e 2021.
Parece escapar à classe política brasileira
o custo gigantesco desse tipo de mecanismo. Não se trata apenas de desperdício
de recursos que deveriam ser despendidos, segundo critérios técnicos e
transparentes, nas áreas em que temos necessidades urgentes, caso de saúde,
educação, segurança, infraestrutura, combate a enchentes e tantas outras. A
contaminação das instituições por interesses paroquiais cobra um preço ainda
mais pernicioso ao perpetuar a captura do Estado em detrimento do progresso.
Como constata o filósofo Fernando Schüler
em texto recente na revista Veja, não é um acaso que nosso Parlamento e nosso
Judiciário sejam os mais caros do mundo. Nem que os salários do funcionalismo
consumam escandalosos 13% do PIB, fatia equivalente à de países como Canadá e
Alemanha, quando temos pobreza comparável à de Bolívia ou Paraguai. “A questão
central continua a mesma”, diz Schüler. “Se desejamos um país moderno e de
mercado, com um Estado enxuto e feito de direitos iguais, ou se seguiremos com
nossos pastores-lobistas e parlamentares recebendo 528 vezes a renda média de
um trabalhador.”
A sociedade brasileira não pode continuar
refém dos grupos de interesse que se apoderam do Estado incrustando na lei
privilégios indecentes que todos nós pagamos. Numa democracia, é preciso que
tenhamos consciência da importância do voto para transformar esse estado de
coisas. É esse o inseticida recomendado para livrar nossas instituições dos
cupins.
É preciso sustar compra de ônibus escolares
com indício de sobrepreço
O Globo
O Ministério da Educação ainda não
esclareceu o balcão de negócios que funcionava na pasta. Depois da denúncia de
intermediação de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)
por pastores alheios ao MEC, já está diante de outro episódio nebuloso. O FNDE
se dispõe a pagar até R$ 480 mil por um ônibus escolar que no mercado custa no
máximo R$ 270 mil. Com isso, a compra de 3.850 veículos destinados a áreas
rurais subiria de R$ 1,31 bilhão para R$ 2,08 bilhões.
O governo desprezou alertas feitos pela
Controladoria-Geral da União (CGU) e pela própria área técnica do FNDE, segundo
reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. A CGU estranhou o FNDE não levar em
conta valores pagos por outros órgãos da administração, considerando apenas os
preços informados pelos fabricantes, em média 54% acima do estimado. A CGU
afirmou ainda que, como está, a licitação favorece a formação de cartéis pelos
fornecedores.
A posição da CGU é semelhante à da área
técnica do FNDE, que chamara a atenção para o risco de sobrepreço na compra dos
ônibus escolares. Segundo os técnicos, há discrepâncias entre os valores
apresentados pelos fornecedores e o último pregão, no ano passado. Isso
significa, nas palavras deles, “aumento não justificado do preço, sem
correspondente vinculação com as projeções econômicas do cenário atual”.
Com papel fundamental na execução das ações
do MEC, não só no ensino básico, o FNDE em tese deveria ser um órgão técnico
para ajudar a melhorar a qualidade da educação no país. Mas, como tem acontecido
na turbulenta gestão educacional do governo Bolsonaro, foi capturado pelos
desígnios da política. Comandado por Marcelo Ponte, indicado pelo ministro da
Casa Civil, Ciro Nogueira, o FNDE é um dos feudos do Centrão no governo.
A submissão ficou clara no escândalo dos
pastores que levou à exoneração do então ministro Milton Ribeiro. É inaceitável
que o destino de verbas do FNDE para construção de escolas, creches e outros
programas fique ao sabor de indicações políticas, ainda mais quando há indícios
de corrupção e tráfico de influência.
Para o bem da educação e da moralidade
pública, a licitação para compra dos ônibus escolares com sobrepreço precisa
ser sustada e investigada pelas autoridades. Não será a primeira vez. Em 2019,
a CGU apontou irregularidades na licitação de R$ 3 bilhões do FNDE para compra
de computadores destinados a estudantes de todo o país. Para citar apenas uma,
a Escola Municipal Laura Queiroz, em Itabirito (MG), receberia 30 mil laptops.
Como só tinha 255 alunos, cada um teria 117 notebooks. Felizmente, a aberração
não prosperou.
Mais do que deter a sangria nas verbas
públicas da educação e investigar a razão do sobrepreço, é preciso corrigir
urgentemente os rumos do MEC, que já vai para seu quinto ministro no atual
governo.
Alívio pandêmico
Folha de S. Paulo
Com percepção de Covid mais contida, cai
reprovação a atrocidades de Bolsonaro
A gestão da pandemia por parte do governo
Jair Bolsonaro (PL), que nas pesquisas realizadas ao longo do último ano vinha
sendo reprovada por mais de metade dos eleitores, obteve
um veredito menos negativo no mais recente levantamento feito pelo
Datafolha.
Comparada à sondagem anterior, de setembro
de 2021, a fatia dos que consideram ótima ou boa a atuação do presidente ante a
crise sanitária passou de 22% para 28%. Já aqueles que a avaliam como regular
subiram de 22% para 25%, ao passo que a parcela dos que enxergam o desempenho como
ruim ou péssimo caiu de 54% para 46%.
A mudança captada pela pesquisa não decorre
de alguma mudança recente na postura de Bolsonaro. Pelo contrário: o
negacionismo, a omissão, a irresponsabilidade e o desprezo pela vida seguem
sendo as marcas essenciais da atuação governamental durante a pandemia.
Entretanto uma certa acomodação, natural
depois de dois anos de angústia social e econômica, parece combinar-se, na
opinião pública, ao alívio causado pelo arrefecimento da doença, terminando por
favorecer uma apreciação mais benevolente do governo.
Embora a Covid-19 já tenha produzido a
marca chocante de 660 mil mortes no país, não há dúvida de que a epidemia
representa hoje um perigo muito menor que no passado. A principal razão são as
vacinas —que Bolsonaro primeiro relutou em comprar, depois questionou a sua
eficácia e, por fim, desestimulou a aplicação.
A população, felizmente, ignorou as
patranhas presidenciais. Atualmente, 75% dos brasileiros já receberam as duas
doses do imunizante, e metade do público elegível, a terceira. Essa diminuição
de riscos transparece na percepção popular sobre o estado da pandemia.
Para 72% dos entrevistados, a crise
sanitária está hoje parcialmente controlada e, para 15%, totalmente —apesar de
uma média móvel diária de cerca de 200 mortes.
Com a pandemia deixando de ser o foco das
preocupações nacionais, as inúmeras atrocidades cometidas por Bolsonaro nesse
período tendem a se tornar menos vívidas na memória da população, o que, mais
uma vez, contribui para uma opinião menos rigorosa sobre a atuação do
mandatário.
Os dados apontam ainda que a avaliação da
gestão da pandemia, que desde o início da crise vinha sendo pior que a
avaliação geral do governo, agora convergiu com esta. Dito de outro modo, a
reprovação da política sanitária hoje está mais restrita aos que reprovam a
administração como um todo.
Não chega a ser grande resultado para um
presidente tido como ruim ou péssimo por 46%, a pior marca de um eleito na
redemocratização a esta altura do mandato.
Sopro iliberal
Folha de S. Paulo
Aliança com Putin não impede reeleições de
mandatários na Hungria e na Sérvia
Uma guerra universalmente condenada deveria
colocar contra a parede os aliados do agressor. As eleições na Hungria e na
Sérvia mostram que a realidade pode ser bem mais complexa sob a sombra da
invasão russa da Ucrânia.
Viktor Orbán é um autocrata incrustado na
União Europeia e na Otan, a aliança militar ocidental. Foi reeleito
para o quinto mandato, o quarto em sequência, pelos húngaros, neste domingo
(3).
E não foi uma vitória qualquer. Seu partido
manteve os dois terços do Parlamento necessários para instrumentalizar as
instituições de seu país, Judiciário à frente.
Não é casual que, depois de beijar a mão de
Vladimir Putin, Jair Bolsonaro (PL) tenha ido abraçar o "irmão" Orbán,
com quem comunga valores reacionários.
O húngaro é o principal aliado de Putin na
Europa, tendo popularizado o oximoro democracia iliberal para caracterizar seus
regimes. Nem sempre foi assim, num balé de interesses regido por sua
dependência energética de Moscou.
A guerra pautou o final da campanha
eleitoral, que viu uma oposição unida, clamando pela ocidentalização da
Hungria. Orbán driblou todos, apoiando sanções europeias sem criticar o
Kremlin.
Deu certo. Algo semelhante ocorreu na
Sérvia, onde Aleksandr
Vucic reelegeu-se confortavelmente presidente. Assim como o Brasil,
Belgrado condenou a invasão da Ucrânia na ONU, mas evitou críticas mais
contundentes a Putin.
A situação ali é diversa da húngara, já que
sérvios não são membros da União Europeia e, eslavos, têm com a Rússia laços
culturais, religiosos e econômicos. Entretanto o iliberalismo de Vucic foi igualmente
recompensado.
Isso tudo chama a atenção também para o
presidente francês, Emmanuel Macron. Ele lidera a corrida para o primeiro
turno, que ocorre no domingo (10), sem folga —e poderá ver a união de
candidatos da extrema direita na rodada final.
Sempre vistos como um fantasma que não se
materializa, esses rivais de Macron são próximos de Putin, e a guerra tem
cobrado seu preço na economia francesa de forma que pode afetar o pleito.
Não é possível ainda falar em uma onda conservadora e tolerante com a guerra, assim como era apressada a visão de uma América Latina toda à esquerda devido ao caso do Chile. Mas Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro e companhia deverão prestar atenção ao que acontece do outro lado do Atlântico.
Inadimplência de alto a baixo
O Estado de S. Paulo
Pandemia, inflação, juros elevados e alto desemprego têm dificultado a liquidação de compromissos. Esses entraves têm impedido muita gente de tirar o nome do vermelho
Nem adianta cobrar. Com dinheiro curto até
para as contas do mês, multidões de consumidores têm sido incapazes de liquidar
também as dívidas em atraso, tornando mais difícil, assim, a obtenção de novos
créditos. Desde o primeiro surto de covid-19 o quadro tem piorado. Em 2019,
antes da pandemia, 59,2% dos débitos de consumidores inadimplentes foram
recuperados em até 60 dias depois da negativação. Em 2020, 57,2% dos atrasos
foram corrigidos. No ano passado, os acertos ficaram em 54,5%. Foi o pior
resultado da série histórica, iniciada em 2016. Os dados são da Serasa Experian, empresa especializada em
informações financeiras. Também têm aumentado os débitos pendentes com bancos e
administradoras de cartões.
Não se trata de uma onda de malandragem. Os
consumidores brasileiros, especialmente os menos abonados, procuram pagar as
contas em dia e ficar fora das listas de inadimplentes. Esse padrão tem sido
confirmado por pesquisas. Mas pandemia, inflação, juros elevados e alto
desemprego têm dificultado a liquidação de compromissos. Esses entraves têm
impedido muita gente de tirar o nome do vermelho, comentou o economista Luiz
Rabi, da Serasa Experian. Os consumidores inadimplentes foram 65,2 milhões em
fevereiro deste ano – um número 5,8% maior que o de um ano antes.
A crise econômica prolongada tem poupado
poucos brasileiros. Mesmo aqueles com os pagamentos em dia têm vivido momentos
difíceis. A inadimplência aumentou em todas as grandes faixas de endividamento.
A maior recuperação, 67,2%, foi a das dívidas superiores a R$ 10 mil. A menor
foi a do grupo imediatamente inferior, no intervalo de R$ 2 mil a R$ 10 mil.
Em economias saudáveis e menos assoladas
pela pobreza, o endividamento é um componente normal das finanças familiares e
um importante suporte dos negócios. No Brasil, a dívida tende a ser, para
milhões de famílias, um meio de sobrevivência. Incapazes de realizar de outra
forma os gastos indispensáveis, dezenas de milhões de brasileiros acabam
recorrendo ao crédito para garantir moradia, comida e outros bens e serviços
essenciais. Nos últimos anos, nem esse mínimo tem sido alcançado por uma grande
parcela da população.
Os mais afetados pela estagnação econômica
e pelo desemprego são os mais pobres. Segundo levantamento da Tendências
Consultoria, 3,7 milhões de pessoas, 26% dos desocupados, estão sem emprego há
mais de dois anos. Trabalhadores das classes D e E, as mais pobres, são 81% do
grupo há mais tempo sem ocupação.
Entre esses desocupados há pessoas com
formação universitária e especialização profissional, como indicou reportagem
do Estadão. Mas
os desempregados de longo prazo são geralmente trabalhadores sem qualificação
ou de qualificação muito modesta, pessoas já pobres antes do desemprego. A
pouca renda conseguida em trabalhos eventuais nem sempre basta para as despesas
essenciais. Quem consegue algum crédito para as compras indispensáveis enfrenta
risco evidente de inadimplência.
Consequência do amplo e duradouro
desarranjo da economia, o desemprego prolongado também é fator de
enfraquecimento econômico. Trabalhadores desocupados por muito tempo ficam
desatualizados e perdem capacidade produtiva. A curto prazo, são forçados a comprimir
seus gastos, deixando de alimentar a demanda de bens e serviços. No Brasil, o
quadro da crise inclui, além do desemprego e do baixo ritmo de atividade, a
inflação acelerada, fator de erosão da renda familiar, e os juros altos,
entraves ao consumo e à produção.
Sem planejamento, sem metas e sem rumo, o poder federal continua incapaz de proporcionar esperança de melhora significativa até o início do novo mandato presidencial. Além disso, todos os dados conhecidos indicam enormes desafios para quem assumir a Presidência em janeiro, se for alguém capaz de entender sua responsabilidade e seus problemas. Enquanto isso, a maior inadimplência continua sendo a do presidente Jair Bolsonaro, devedor das tarefas mais importantes de quem assume o posto mais alto da administração de um país.
Um inferno do século 21
O Estado de S. Paulo
Imagens das atrocidades russas e relatos de execuções sumárias são aterradores e clamam por uma punição a Putin por atacar civis numa guerra sem sentido
O recuo das tropas russas nos arredores de
Kiev permitiu ao mundo ver a selvageria do Kremlin com seus próprios olhos e
ouvir o seu cinismo com seus ouvidos.
O Kremlin diz que nenhum residente dos
subúrbios de Bucha e Irpin sofreu violência pelos russos. As fotos mostram
cadáveres espalhados pelas ruas e pilhas de sacos pretos. Há um homem baleado
enquanto andava de bicicleta. Há automóveis destroçados com corpos dentro.
A Procuradoria-Geral ucraniana relatou 410
cadáveres de civis, mas o número seguramente é maior. Autoridades de Bucha
relatam pelo menos 280 em valas comuns. Em um bosque na vila de Motyzhyn foram
exumados os corpos da prefeita, seu marido e seu filho, assassinados, segundo
as autoridades, após se recusarem a cooperar com os russos.
A imprensa e organizações independentes
registram evidências de execuções sumárias. Há corpos com mãos atadas ou pólvora
no rosto, indicando tiros à queima-roupa, além de sinais de tortura e relatos
de espancamentos e estupros.
O Kremlin declara que “as fotos e vídeos
publicados pelo regime de Kiev em Bucha são só mais uma provocação”, uma
“farsa” para desviar a mídia ocidental. Mas nenhum especialista em defesa ou
direitos humanos está surpreso. “Qualquer um que diga que Bucha é resultado da
brutalização ou de um comportamento delinquente está errado”, disse Jack
Watling, do instituto britânico Royal United Services. “Esse era o plano. Foi
premeditado. É consistente com os métodos russos na Chechênia. E, se o Exército
russo tivesse sido mais bem-sucedido, haveria muitas outras cidades como ela.”
O pior está por vir. Há indícios de tropas
e mercenários chechenos próximos a Kiev. Mas é sobretudo no leste, onde
Vladimir Putin está concentrando esforços, que provavelmente atuam mercenários
sírios e do Grupo Wagner, uma milícia diretamente conectada ao Kremlin. Seus
paramilitares já serviram na invasão da Ucrânia em 2014. Desde então, passam-se
por soldados e separatistas russos na região de Donbass, e já auxiliaram
ditadores favoráveis a Putin na Síria, Líbia, Mali, República Centro-Africana,
Sudão e Venezuela.
Mykhailo Podolyak, conselheiro da
presidência ucraniana, disse que a região de Kiev foi um “inferno do século
21”: “Os piores crimes do nazismo voltaram à Europa”.
O secretário-geral da ONU pediu uma
investigação por crimes de guerra. O presidente francês, o chanceler alemão e o
presidente do Conselho Europeu apontaram nas atrocidades indícios de crimes de
guerra, e prometeram retaliar com mais sanções. Em março, após o bombardeio de
uma maternidade e um teatro repleto de civis em Mariupol, o presidente
norte-americano, Joe Biden, já havia chamado o presidente russo de “criminoso
de guerra”. Tornou a fazê-lo agora.
As evidências se acumulam. Mas Putin e seus
correligionários estão longe de uma punição. Mais de 1 milhão de pessoas,
incluindo dois ex-primeiros-ministros britânicos, peticionou por um tribunal
nos moldes de Nuremberg. O crime de agressão, sob jurisdição da Corte
Internacional de Justiça, que julga Estados, parece claro. Mas qualquer sanção
depende do Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia tem poder de veto.
O Tribunal Penal Internacional, que julga
indivíduos, investiga crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio.
Mas as ordens criminosas precisam ser documentadas, e, mesmo que fossem, a
Rússia não reconhece a Corte e não entregará cidadãos russos, muito menos dos
altos escalões.
Isso não significa que os processos não
devam avançar. Se as ferramentas forenses não forem empregadas agora, muitas
evidências se perderão.
Muitos dirão que jogar Putin contra as
cordas é contraproducente para a paz. Mas a história mostra que apaziguar
tiranos só lhes dá fôlego para perpetrar mais atrocidades. A legitimação das
Cortes pode revigorar os ucranianos, impulsionar o auxílio do Ocidente e
desencorajar soldados e oficiais russos. De resto, por remota que seja no
presente, há sempre a possibilidade de que no futuro o povo russo deponha Putin
e faça justiça a seus irmãos ucranianos, entregando-o ao banco dos réus.
O efeito da guerra está chegando
O Estado de S. Paulo
A balança comercial registra números recordes, mas a invasão da Ucrânia gera problemas que já preocupam a indústria
As principais instituições financeiras
estão revendo, para cima, suas projeções para o comércio exterior brasileiro.
Já há previsões de superávit de US$ 75 bilhões em 2022, bem maior do que os US$
61,4 bilhões do ano passado. Não há, porém, razões para comemorar esse
desempenho. A alimentar essas projeções está a guerra da Ucrânia, que provocou
mudanças expressivas e imediatas no mercado mundial de alguns dos produtos mais
comercializados. Seus impactos, embora positivos para a balança comercial, são
muito mais amplos e, na maior parte dos casos, negativos.
Além dos riscos para a paz mundial e dos
dramas humanos expressos nas mortes, sobretudo de civis, e na existência de
mais de 4 milhões de ucranianos refugiados, a criminosa invasão da Ucrânia
decidida pelo governo russo chefiado por Vladimir Putin resultou em altas de
muitos produtos e dificultou o fornecimento ou o fluxo de vários outros. O
mundo enfrenta, simultaneamente, pressões inflacionárias e o risco de redução
do ritmo de muitas atividades, por escassez de itens como fertilizantes e
componentes industriais. Essas consequências chegaram ou estão chegando ao
Brasil.
Novos choques de oferta em razão da guerra
ou de novas ondas de covid-19 na China não estão descartados. Altas expressivas
nas cotações de petróleo, gás natural, trigo, níquel, soja, milho e minério de
ferro, entre outros produtos de grande peso no comércio mundial, não dão
indicações de que poderão arrefecer no curto prazo. A balança comercial, assim,
continuará a registrar resultados muito favoráveis.
Mas outros efeitos da guerra já preocupam
setores produtivos no Brasil e ameaçam algumas atividades. O Brasil importa,
por exemplo, 85% dos fertilizantes consumidos internamente e que estão na base
da produtividade e do bom desempenho do campo nos últimos anos. Do total importado,
25% são de origem russa.
A alta das commodities, de sua parte,
pressiona também os preços internos, o que tende a manter o custo da
alimentação como um dos itens que pressionam a inflação já alta no Brasil, o
que prejudica mais as camadas mais pobres da população. Trigo mais caro implica
alta do preço do pão e das massas. A alta do petróleo tem impacto no preço dos
combustíveis, o que pressiona o orçamento das famílias e também os custos de
produção e transporte de mercadorias.
A alta das matérias-primas já preocupa um
terço das indústrias paulistas. Além disso, a guerra fez ressurgir dificuldades
de suprimento, que a pandemia havia criado, mas estavam sendo superadas.
Nada disso parece preocupar o governo. Quem
o presidente Jair Bolsonaro culpará desta vez?
Ministério da Saúde segue distraído com
banalidades
Valor Econômico
Apenas a Organização Mundial de Saúde tem o
poder de rebaixar a pandemia para endemia
Apesar da desaceleração do número de mortes
causadas pela covid-19 no Brasil, o país entrou em abril acima da marca de 660
mil mortes desde o início da pandemia. Segundo a Universidade de Johns Hopkins,
o país está em segundo lugar no ranking global, após os EUA, consequência de
uma série de erros, como o atraso no reconhecimento da gravidade da pandemia e
na compra de vacinas, e da descoordenação do enfrentamento da doença; e até as
campanhas de descrédito à efetividade das vacinas, inspiradas pelo próprio
presidente Jair Bolsonaro.
Aproveitando a redução dos casos, Bolsonaro
decidiu decretar o fim da pandemia e logo teve apoio do ministro da Saúde,
Marcelo Queiroga. Queiroga levou o plano ao Congresso e ao Supremo Tribunal
Federal (STF). Havia até data marcada para o anúncio: 31 de março, aniversário
do golpe de 1964. Até que alguém descobriu que apenas a Organização Mundial de
Saúde (OMS) tem o poder de rebaixar a pandemia para endemia.
Mesmo ciente disso, Bolsonaro seguiu
disseminando entre apoiadores e nas redes sociais a ideia de que não se
justificava mais pensar em pandemia e que era desnecessário o uso de máscaras e
outros cuidados. Sob pressão do Palácio do Planalto e, para não admitir o
fiasco, Queiroga buscou atender o chefe com a flexibilização de medidas de
prevenção, embora vários Estados já tenham adotado algumas delas, como a
dispensa do uso de máscaras em ambientes abertos e até nos fechados.
Já o fim da situação de emergência
sanitária no país, como deseja Bolsonaro, seria um “desastre”, avisou a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Entre as consequências mais sérias
estaria a proibição do uso das vacinas Coronavac e a Janssen, que estão sendo
aplicadas em caráter emergencial e ainda não receberam registro definitivo. Há
também medicamentos e testes que estão sendo utilizados nessas condições. Até
com receio de uma judicialização do assunto, Queiroga passou a moderar o
discurso e as promessas.
Antes dessa batalha, porém, o governo havia
conseguido passar pelo Congresso a lei que permite o uso de medicamentos “off
label”, ou seja, para finalidades não indicadas na bula nem autorizadas pela
Anvisa, desde que haja recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias (Conitec). A comissão é vinculada ao Ministério da Saúde e conta
com integrantes da pasta, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde
(Conass), do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, da Anvisa e
do Conselho Federal de Medicina (CFM), e consultores externos.
Resta saber quem em uma comissão tão ampla
quanto a Conitec vai se responsabilizar por algum eventual efeito adverso em
pacientes que receberem o medicamento off label. Um dos exemplos mais temidos
de uso off label foi o da cloroquina no tratamento da covid-19, estimulado por
Bolsonaro. Outro medicamento recomendado por ele para enfrentar a pandemia, o
antiparasitário invermectina, acaba de ser contraindicado para a covid-19 por
um estudo brasileiro amplo, que constatou que ele não diminui risco de
internação, não aumenta a velocidade de recuperação, não reduz tempo no
hospital nem o risco de morte.
Agora o ministro da Saúde está entusiasmado
com a ideia de implantar o sistema de open health, inspirado no open banking. A
proposta implicaria o compartilhamento dos dados da população em plataforma
eletrônica e a criação de um cadastro positivo da saúde. A ideia é estimular a
competição entre os planos de saúde e reduzir custos para as pessoas. O
ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, torpedeou a proposta (Folha de
S. Paulo 21/3). Criticou em especial o compartilhamento de informações pessoais
sensíveis; e evidenciou as diferenças entre o setor financeiro e o serviço de
saúde.
Problemas mais urgentes, mas menos
midiáticos, não faltam. Fraga sugeriu que o ministro se dedicasse a fortalecer
o Sistema Único de Saúde (SUS), que enfrenta “inúmeras dificuldades”. De fato,
pesquisadores do FGV-Saúde acabam de publicar na revista científica “The Lancet”
estudo que aborda a redução considerável das consultas médicas, diagnósticos,
cirurgias de baixa, média e até alta complexidade nas unidades do SUS desde
2019, o que pode manter os hospitais sobrecarregados por um bom tempo. A
distribuição igualitária dos repasses federais aos Estados durante a pandemia,
sem levar em consideração os locais mais vulneráveis, é outro problema
identificado.
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