EDITORIAIS
Licença para mentir
O Globo
A REJEIÇÃO na Câmara do regime de
urgência para a tramitação do PL das Fake News, que criminaliza a desinformação
nas redes sociais e estabelece regras de transparência e responsabilidade no
meio digital, terá efeito desastroso na campanha eleitoral deste ano.
A URGÊNCIA permitiria que o texto
fosse votado em plenário sem passar pelas comissões temáticas e daria esperança
de que as novas normas entrassem em vigor antes do pleito. Mas nem a imunidade
conferida aos parlamentares — uma das falhas do projeto — os incentivou a
acelerar a tramitação.
PRENUNCIA-SE AGORA uma repetição da
avalanche de desinformação e mentiras a serviço das mais variadas candidaturas.
Para não falar no passe livre concedido à campanha do presidente Jair Bolsonaro
e de seus seguidores contra as urnas eletrônicas, com o objetivo de tumultuar o
país em caso de derrota. A displicência do Legislativo empurra ao Judiciário a
responsabilidade (e o ônus) de zelar pela tranquilidade do pleito. Retardar a
votação equivale a dar uma licença para mentir.
É urgente investigar as atrocidades na
guerra da Ucrânia
O Globo
A guerra é quase tão antiga quanto o ser humano. É também ancestral o esforço para restringir conflitos armados mediante leis que definam quando a guerra é admissível (jus ad bellum) e o que nela é admissível (jus in bello). Esse debate ganhou um novo capítulo a partir da invasão da Ucrânia por tropas russas em fevereiro e, mais recentemente, com os indícios de que soldados de Vladimir Putin torturaram e executaram civis a sangue frio em áreas próximas à capital, Kiev.
Na cidade de Bucha, após a saída dos
russos, forças ucranianas encontraram corpos de civis espalhados pelas ruas,
além de uma vala comum. O presidente americano, Joe Biden, que já havia descrito
Putin como criminoso de guerra, clamou por um julgamento. Tudo leva a crer que
não será tão simples.
O Tribunal Penal Internacional (TPI), em
Haia, na Holanda, já deu início a uma investigação, mas há um empecilho.
Rússia, Ucrânia e Estados Unidos não integram a instituição, que começou a
funcionar apenas em 2002. Embora seja possível acusar indivíduos no TPI, a
legitimidade das sentenças sairia prejudicada sem reconhecimento das partes.
Uma saída seria criar um tribunal especial, como nos casos de Ruanda e da
antiga Iugoslávia. Para que a iniciativa tenha sucesso, no entanto, seria
preciso obter uma vasta quantidade de evidências de que tenha havido intenção
de cometer os crimes. Para chegar a Putin e seus generais, seria necessário
mostrar como as ordens passaram pela cadeia de comando.
A concepção moderna de leis sobre guerra
foi criada com o Julgamento de Nuremberg. Tratados internacionais, como a
Convenção de Genebra de 1949 e o Estatuto de Roma de 1998, décadas mais tarde,
deram o formato às leis hoje aceitas por todo o mundo civilizado. Elas
estabelecem quatro tipos de crime: de agressão (ou contra a paz), de guerra,
contra a humanidade e genocídio. Não há dúvida de que Putin e seus acólitos
teriam altíssima chance de ser condenados num tribunal por agressão. A invasão
à Ucrânia, um país soberano, aconteceu sem nenhuma provocação.
Mas e os demais crimes? As evidências
preliminares colhidas em Bucha sugerem que militares russos poderiam ser
acusados de crimes de guerra. Pela definição, eles incluem o uso de civis como
alvos deliberados. Se provado que o ato era uma estratégia consistente da
Rússia, a acusação poderia incluir até crimes contra a humanidade.
Embora o presidente ucraniano, Volodymyr
Zelensky, insista em acusar as forças russas de genocídio, como declarou ao
Conselho de Segurança das Nações Unidas na terça-feira, até o momento não há
prova de nada que satisfaça à definição jurídica formal do crime: matar, causar
ferimento sério físico ou abalo mental, impedir nascimentos, transferir crianças
“com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico,
racial ou religioso”.
As acusações são graves, e as imagens
chocantes. Em meio à disputa de narrativas e à guerra de propaganda, é
fundamental que as instituições internacionais investiguem cada uma com cautela
e rigor. Armazenar as provas será crucial para identificar e punir os culpados,
caso um dia seja criado um tribunal para julgar as atrocidades que estamos
todos vendo.
Congresso deveria derrubar veto de
Bolsonaro à Lei Paulo Gustavo
O Globo
Era previsível que uma atividade que
depende da presença do público em cinemas, teatros e casas de espetáculo fosse
afetada de forma brutal pelas medidas de prevenção contra a Covid-19. Por isso
mesmo, é lamentável o veto do presidente Jair Bolsonaro à Lei Paulo Gustavo —
batizada em homenagem ao ator morto por complicações da doença no ano passado
—, que prevê o repasse de R$ 3,86 bilhões a estados e municípios para
incentivar o setor em recuperação da hecatombe.
O projeto de lei, de autoria do senador
Paulo Rocha (PT-PA) com apoio de outros parlamentares, prevê que, dos R$ 3,86
bilhões, R$ 2,79 bilhões iriam para o setor audiovisual e R$ 1,06 bilhão para
outras atividades. De acordo com a proposta, os recursos sairiam do Fundo
Nacional de Cultura (FNC).
O presidente justificou o veto por
“contrariedade ao interesse público”, como se investir em cultura não fosse de interesse
público. Argumentou que a concessão do benefício “incorreria em compressão das
despesas discricionárias que se encontram em níveis criticamente baixos” e que
recursos do Orçamento seriam destinados sem apresentar formas de compensar a
despesa. O governo alegou ainda que o repasse de verbas provenientes de fundos
“enfraqueceria as regras de controle, eficiência, gestão e transparência
elaboradas para auditar os recursos federais e sua execução”.
É louvável a preocupação com o controle de
gastos. Ela é imperiosa neste ou em qualquer outro governo, ainda mais neste
momento de crise fiscal aguda. Mas a proposta do Congresso apontava a fonte das
receitas: o Fundo Nacional de Cultura. Além disso, a preocupação de Bolsonaro
com o teto de gastos parece ser seletiva. Não vale para os aumentos salariais
às categorias amigas, benefícios a caminhoneiros ou programas sociais
eleitoreiros.
O cancelamento da cultura no governo
Bolsonaro nada tem a ver com gastos, mas com ideologia. O setor sempre foi
visto pelos bolsonaristas como um reduto da esquerda que precisa ser combatido.
Não é por outra razão que tem sido sistematicamente asfixiado. Não apenas com
corte de recursos, mas também pelas sucessivas tentativas de cercear a
liberdade de expressão. Ao longo de três anos e três meses, a Secretaria
Especial da Cultura promoveu mais vetos e censuras sem cabimento a projetos
culturais que iniciativas de incentivo ao setor. O último exemplo foi a censura
ridícula e inaceitável ao filme “Como se tornar o pior aluno da escola”, sob o
pretexto de que incentivava a pedofilia. Felizmente, o veto foi derrubado na
Justiça Federal.
Bolsonaro deveria deixar de lado a má vontade com um setor que emprega 1,9 milhão de brasileiros em 325 mil empresas ou organizações. Devolver a atividade cultural ao nível pré-pandemia deveria ser interesse de todos, não só por levar cultura aos cidadãos, mas também por movimentar a economia, gerar emprego e renda. Os parlamentares têm obrigação de derrubar o veto de Bolsonaro ao projeto. Dona Hermínia, a intempestiva personagem eternizada por Paulo Gustavo, não perdoaria tamanho descaso com a cultura.
Centrão fortalecido
Folha de S. Paulo
Janela resulta em expansão de siglas
governistas e dificuldades para a esquerda
Três legendas fisiológicas, do centro à
direita do espectro ideológico e de estreitas relações com o presidente Jair
Bolsonaro (PL) respondem pelo resultado mais expressivo da rodada de negócios e
filiações permitida pela chamada janela
partidária deste ano eleitoral.
Juntos, Partido Liberal, Progressistas e
Republicanos, nomes que dizem muito pouco sobre o conteúdo programático das
agremiações, contam agora com 172 deputados, de acordo com o site da Câmara
nesta quarta (6) —os números ainda estão sendo totalizados.
Trata-se do equivalente a cerca de um terço
da Casa (33,5%) e alta de 48,3% sobre os 116 parlamentares que o trio somava
antes. Depois da fragmentação recorde de 2018, o bloco reformulado de partidos
governistas assume um peso maior no Legislativo.
O PL, ora com 78 cadeiras, foi o partido
que mais cresceu no troca-troca. Trata-se de um agrupamento fisiológico ao qual
se juntaram bolsonaristas do extinto PSL.
O Progressistas (PP), com 52, é outra sigla
tradicional da fisiologia do centrão, com cargos importantes no governo, como o
comando da Casa Civil, além do presidente da Câmara, Arthur Lira (AL). Já o Republicanos
é conhecido pela associação com a bancada evangélica.
Com a movimentação no governismo, restou
esvaziada a União Brasil, com 46 deputados, agora composta do restante do
decadente DEM (ex-PFL) com bolsonaristas arrependidos do PSL.
Além do adesismo e de conveniências locais,
a procura de fundos partidários, de benesses de emendas e a pressão da cláusula
de barreira motivaram migrações.
Os partidos nanicos perderam deputados;
aqueles incluídos no bloco de esquerda também, casos de PSB, PDT, PSOL e PC do
B.
O MDB e o PSDB continuam no grupo das
legendas entre medianas e pouco significativas em tamanho. O PT teve modesto
crescimento, de 53 para 56 deputados.
Além de contarem com bancadas e fundos
eleitorais maiores, os partidos da centro-direita e da direita foram aqueles
que tiveram melhor resultado na eleição municipal de 2020. Ou seja, em termos
de bases políticas e de finanças, teriam condições de manter a força atual no
Parlamento.
Alianças regionais, relações com os
candidatos nos estados e o desenrolar da eleição presidencial podem mudar tal
quadro e a inclinação até mesmo dos ora bolsonaristas. De menos incerto,
pode-se dizer que o centro tradicional e a esquerda terão dificuldades de se
reerguer nesse Congresso marcado pelo colapso político de 2018.
Manhã e tarde na escola
Folha de S. Paulo
SP acerta ao ampliar ensino em período
integral, mas uso do tempo causa dúvidas
Uma rara boa notícia no campo da educação,
uma das áreas que mais sofreu com a pandemia, é que o
ensino em tempo integral está avançando. No estado de São Paulo havia, em
2019, 364 instituições funcionando sob esse modelo. Hoje, são 2.050, cobrindo
24% dos alunos.
Às vésperas de deixar o cargo de
governador, João Doria (PSDB) prometia levar o horário estendido a mais 950
escolas até 2023, o que corresponderia a uma cobertura de 40% dos estudantes.
Outras unidades federativas também estão
ampliando rapidamente o número de escolas que funcionam em tempo integral,
especialmente no ensino médio, em consonância com a lei de 2017 que reformou
essa etapa do aprendizado.
O paradigma aqui é Pernambuco, que, em 2004,
lançou um projeto-piloto para melhorar a qualidade da educação e diminuir a
evasão, que incluía o aumento da jornada escolar. Os resultados foram tão
vistosos que, quatro anos depois, o ensino integral já era política do estado,
onde, hoje, 75% dos estudantes do ensino médio frequentam escolas com jornada
ampliada.
Em 2007, Pernambuco ocupava o 21º lugar no
ranking do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do ciclo médio.
Em 2015, atingiu o 1º lugar e, desde então, tem-se mantido entre as primeiras
posições. Os índices de abandono e de desigualdade de aprendizagem também
caíram.
Verificou-se, ainda, que melhorou o desempenho dos alunos que passaram para o ensino superior.
Praticamente todos os países que vão bem nas avaliações globais têm jornada de
pelo menos sete horas —enquanto, no modelo tradicional brasileiro, são em média
cinco.
Há motivos para inquietações específicas.
Uma das razões para o modelo pernambucano ter funcionado é que houve uma
expansão acentuada da carga horária das disciplinas de português e,
principalmente, matemática, que foram de 20% e 50% respectivamente.
Já o modelo paulista não repete essa
fórmula de sucesso. Alunos até poderão dedicar mais tempo a essas matérias, mas
no âmbito de seu atendimento individualizado, não como política das escolas.
Nesse programa, o tempo extra será dedicado
a matérias eletivas e sessões de orientação. A carga horária básica de
português e matemática é a mesma nas escolas integrais e nas regulares.
É verdade que isso está de acordo com o espírito da reforma de 2017, que chegou até mesmo a limitar a um máximo de 1.800 horas anuais o período destinado às matérias básicas. O tempo dirá se essa foi uma boa escolha.
Medo da luz do dia
O Estado de S. Paulo
Numa democracia, os cidadãos têm direito à informação. Não cabe ao Palácio do Planalto negar acesso às informações sobre as visitas de Valdemar Costa Neto a Jair Bolsonaro
O governo de Jair Bolsonaro não quer que o
público saiba quando e quantas vezes Valdemar Costa Neto, presidente do PL, foi
ao Palácio do Planalto. O Estadão solicitou
os registros das visitas, mas o pedido foi negado pelo Gabinete de Segurança
Institucional (GSI) sob a justificativa de risco à segurança do presidente da
República. A alegação da burocracia bolsonarista é estapafúrdia. A informação
sobre as idas de Valdemar Costa Neto ao Palácio do Planalto afeta outras coisas,
algumas decerto inconfessáveis, mas não a segurança de Jair Bolsonaro.
Não é incomum que governos queiram ocultar
informações que, sendo relevantes para a sociedade, podem prejudicar sua
imagem, ao revelar, por exemplo, a existência de uma grande distância entre o
discurso oficial e o que ocorre na prática. Para essas situações, os países
democráticos adotam uma estratégia já bastante consolidada: privilegiam o
acesso da população a tais informações, em detrimento de eventual interesse do
governo em sentido contrário. Ou seja, em regimes democráticos, não cabe ao
poder público definir arbitrariamente o que mostrar e o que esconder. O cidadão
tem direito às informações de interesse público.
Ao restaurar a democracia no País, a
Constituição de 1988 definiu que “todos têm direito a receber dos órgãos
públicos informações (...) de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas
no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo
seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (art. 5.º, XXXIII).
Em 2011, o Congresso Nacional regulamentou esse direito fundamental por meio da
Lei de Acesso à Informação (LAI, Lei 12.527/11), à qual estão subordinados,
entre outros, todos “os órgãos públicos integrantes da administração direta dos
Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e
do Ministério Público” (art. 1.º, § único, I).
A regra é a transparência, mas há exceções,
como a própria Constituição admite. Para evitar que governos façam um uso
abusivo das situações excepcionais, a partir de interpretações peculiares sobre
o que seria sigilo “imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”, a LAI
definiu em seu art. 23, de forma expressa, as hipóteses em que é possível
restringir o acesso à informação.
As informações solicitadas sobre as visitas
de Valdemar Costa Neto ao Palácio do Planalto não se enquadram em nenhuma das
hipóteses do art. 23 da LAI. Não põem em risco a defesa e a soberania
nacionais. Não prejudicam as relações do Brasil com outros países. Não
comprometem as atividades de inteligência. Não causam risco a projetos de
pesquisa. As informações apenas poderiam oferecer algumas pistas sobre como é o
relacionamento do presidente Jair Bolsonaro com o líder do Centrão: se é
habitual ou esporádico e se Bolsonaro conta frequentemente com o conselho do
presidente do PL ou apenas em situações especiais.
As informações solicitadas são tão singelas
– ninguém pediu ao GSI a gravação das conversas do presidente Bolsonaro com
Valdemar Costa Neto, por exemplo – que a resistência do Palácio do Planalto em
dar-lhes transparência é, por si só, bastante reveladora. O governo Bolsonaro
prefere descumprir a Constituição e a LAI a mostrar ao público quantas vezes o
presidente do PL foi ao Palácio do Planalto. Por que tanto receio? Essas
informações são assim tão prejudiciais à imagem de Jair Bolsonaro em ano
eleitoral?
A resistência à transparência por parte do
governo federal não é de agora. Contrariando as promessas de 2018 – de que
seria um governo limpo, sem escândalos de corrupção e sem negociações com o
Centrão –, Jair Bolsonaro tem realizado uma das administrações mais opacas da
história recente do País. São vários os exemplos: campanhas de desinformação,
negativas abusivas a solicitações por meio da LAI, funcionamento de estruturas
paralelas dentro dos Ministérios e até orçamento secreto. De fato, o governo
não quer que a população veja o que ocorre dentro de suas repartições. Boa
coisa não deve ser.
Uma cadeira radioativa
O Estado de S. Paulo
Bolsonaro e Lula coincidem na ambição de submeter a Petrobras a seus projetos pessoais de poder, ante a saúde da empresa – e isso torna especialmente desafiador presidi-la
A presidência da Petrobras certamente é uma
posição desejada por executivos de todo o País. Uma das maiores produtoras
mundiais de petróleo e gás, a empresa registrou lucro líquido de R$ 106,6
bilhões em 2021 e distribuiu R$ 72,2 bilhões em dividendos, dos quais R$ 37,3
bilhões à União. No ano passado, a contribuição da companhia na arrecadação de
tributos federais chegou a R$ 53,8 bilhões e para Estados e municípios, quase
R$ 95 bilhões, fora os royalties e as participações especiais. Com mais de 40
mil funcionários, sem contar os empregos gerados na cadeia de fornecedores, os
números não deixam dúvidas: é uma das organizações que mais contribuem com o
País. Ainda assim, a rotatividade da presidência é reveladora das dificuldades
do cargo. Como mostrou o Estadão,
a permanência média não chega a dois anos.
O presidente mais longevo na história da
Petrobras foi José Sergio Gabrielli, entre 2005 e 2012. Sua gestão foi marcada
por uma política definida pelo ministro da Fazenda Guido Mantega, cuja
prioridade, longe de ser a gestão da companhia, era segurar a inflação por meio
do controle artificial de preços administrados. Entre 2008 e 2018, a empresa
acumulou prejuízos de R$ 180 bilhões ao não repassar integralmente a variação
das cotações internacionais do petróleo ao mercado interno, bem mais que as
perdas de R$ 6,2 bilhões reconhecidas em balanço em decorrência das
investigações da Operação Lava Jato.
Os dados expõem um misto de oportunismo,
cegueira e memória curta que vigora no País a respeito da Petrobras. O
presidente Jair Bolsonaro chegou ao cúmulo de criticar o desempenho excepcional
da estatal. Paradoxalmente, o erro do ainda presidente da estatal Joaquim Silva
e Luna foi ter feito seu trabalho bem demais. Seu antecessor, Roberto Castello
Branco, em plena pandemia de covid-19, cometeu a ousadia de usar máscara em
reunião no Palácio do Planalto. Perdeu o cargo dias depois, ao dizer o óbvio:
que as ameaças de greve de caminhoneiros em razão do aumento dos preços de
combustíveis não eram um problema da companhia.
Se o governo quisesse realmente ajudar os
caminhoneiros autônomos, poderia elaborar uma política pública e criar um
subsídio para a categoria com o dinheiro dos impostos e dividendos pagos pela
Petrobras. Seria uma solução mais simples, barata e efetiva que a criação de
fundos de estabilização de preços que fracassaram no mundo todo. Mas isso seria
exigir algo impossível de Bolsonaro: que governe. A preocupação do presidente
não é resolver problemas, mas encontrar culpados para se livrar de questões que
possam custar sua reeleição. Nessa saga, ele não hesita em submeter seus
assessores à humilhação pública, algo que deveria servir de alerta para os
interessados em presidir a Petrobras.
Lula, por sua vez, promete dobrar a aposta
no equívoco que foi a política da Petrobras ao longo de seus mandatos. Ao falar
em “abrasileirar” o preço dos combustíveis, prova que o PT não aprendeu nada
com o passado. No Legislativo, o debate é ainda mais raso. O presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sugeriu revisar a Lei das Estatais, que deu fim ao
loteamento político de cargos de direção nas empresas públicas, e ainda teve o
desplante de dizer que a Petrobras não traz “nenhum benefício para o Estado nem
para o povo brasileiro”, embora a empresa, no ano passado, tenha engordado o
caixa da União, dos Estados e dos municípios com R$ 230 bilhões, referentes a
dividendos, impostos e participações.
Assumir a presidência da Petrobras é algo
desafiador em governos populistas. Nessas situações, a cadeira fica radioativa.
A opção é fazer uma administração correta e assumir o preço político da
competência ou arruinar a empresa e a biografia em nome dos interesses
eleitorais do mandatário de plantão. Ao fim e ao cabo, Bolsonaro e Lula, que se
apresentam como opostos no espectro político, defendem precisamente a mesma
solução para a Petrobras: prejudicar a companhia e, por consequência, a
sociedade, em nome de seus projetos pessoais de poder.
A pandemia de inflação
O Estado de S. Paulo
Expectativa de juros mais altos aumenta insegurança, e alta de preços inferniza a vida de consumidores e empresários
Uma nova pandemia, com preços em disparada
e mais desarranjos nos mercados, assola o mundo capitalista e espalha o temor
de entraves maiores ao consumo, à produção e ao emprego. A expectativa de um
rápido aumento de juros nos Estados Unidos assusta os investidores e afeta os
negócios em bolsas. A inflação pode ser uma doença devastadora, mas o remédio
mais comum, o aperto monetário, também amedronta e pode doer muito. O Brasil,
um dos países mais afetados pelo desajuste dos preços, já enfrenta o
desconforto de uma terapia severa, mas sem perspectiva, por enquanto, de uma
firme recuperação.
A inflação anual chegou a 7,7% em fevereiro, no conjunto de 39
países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Foi
a taxa mais alta desde dezembro de 1990. Essa taxa foi em grande parte puxada
pela alta de preços na Turquia, de 54,4%. Mas o conjunto tem sido afetado
também pela inflação nos Estados Unidos, onde a alta anual dos preços ao
consumidor bateu em 7,9%, a maior variação desde janeiro de 1982. Alimentos e
energia são os itens mais vistosos no painel inflacionário, mas, descontados
esses componentes, as taxas de inflação continuam elevadas: 6,4% nos Estados
Unidos, 4,6% no Reino Unido, 4,4% nos sete maiores países capitalistas e 5,5%
na OCDE.
Não há mistério nesses números. A onda
inflacionária decorre, em grande parte, de dois desastres. O primeiro, a pandemia
de covid-19, prejudicou a oferta de matérias-primas e de insumos de origem
industrial, como os semicondutores, e desarranjou os transportes. O segundo, a
invasão da Ucrânia, afetou os mercados de petróleo, gás, fertilizantes e de
trigo e milho. Além disso, o mundo sofre os efeitos de uma enorme expansão
monetária no mundo rico, especialmente nos Estados Unidos. Essa inundação de
dinheiro, com forte efeito inflacionário, começou como reação à crise
financeira de 2008 e cresceu a partir da retração econômica deflagrada pela
pandemia de covid-19.
O Brasil enfrenta os efeitos de todos esses
fatores, além das consequências dos problemas climáticos internos e, em
qualquer circunstância, da insegurança econômica e da instabilidade cambial
causadas pelos arroubos e arranjos do presidente Jair Bolsonaro. Ativos baratos
para os estrangeiros e juros muito altos têm atraído dinheiro de fora. Por isso
o dólar se depreciou em relação ao real nos últimos meses, mas o câmbio
continuará sujeito, nos próximos tempos, ao comportamento do presidente
Bolsonaro, empenhado na busca da reeleição e vulnerável aos interesses do
Centrão.
Os juros básicos devem subir de 11,75% para
12,75% na reunião de maio do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco
Central, e deverão continuar muito altos por longo tempo. Se os juros nos
Estados Unidos subirem mais velozmente, como têm sinalizado autoridades
monetárias americanas, as possibilidades de afrouxamento no Brasil ficarão mais
limitadas. O País continuará afetado, por um bom período, tanto pela pandemia
da inflação quanto pela terapia desconfortável.
Federal Reserve buscará aperto maior e mais
rápido
Valor Econômico
Os efeitos de uma política monetária mais
apertada serão tão menos perturbadores quanto mais se conhecerem os objetivos e
os próximos passos do banco
Com inflação de 7,9% em doze meses, e com
viés de alta, o Federal Reserve Bank americano indicou, na ata de sua reunião
de meados de março, que vai intensificar o ritmo de aumento de juros. Ele
deverá passar de 0,25 ponto percentual para 0,5 ponto em várias das seis
reuniões subsequentes no ano, até chegar perto da taxa neutra de juros,
estimada em 2,25% a 2,5% no ano. O ânimo dos investidores, após a ata, variou
de um razoável pessimismo, com quedas nas bolsas, a uma atitude mais realista,
de que os juros não irão para o terreno contracionista tão logo.
O roteiro da ação do Fed, porém, não se
restringirá à elevação dos fed funds, reconhecido pela direção do banco como
principal instrumento de atuação. Como ação coadjuvante, será iniciada logo na
próxima reunião, se as condições o permitirem, uma redução rápida do balanço da
instituição, hoje próximo da astronômica quantia de US$ 9 trilhões - antes da
crise de 2008, ele era de US$ 850 bilhões. Conforme assinalado na ata, os
membros do comitê de política do mercado aberto estimaram que o ritmo adequado
de diminuição das reservas nos próximos três meses, e sujeito a reavaliação
posterior, seria de US$ 95 bilhões mensais. Se essa cadência for mantida ao
longo do ano, haverá um corte de liquidez no ano de US$ 570 bilhões.
Há muitas dúvidas sobre os efeitos desse
“aperto quantitativo”, que se segue ao “afrouxamento quantitativo” que, com
intervalos, perdurou por quase uma década e meia. O próprio Fed considera as
consequências desse aperto bem mais incertas em relação aos já conhecidos e
testados aumentos dos juros. O presidente do Fed, Jerome Powell, e algumas
consultorias, como a Oxford Economics, avaliam que o resultado da redução do
balanço na proporção indicada corresponderia a um aumento adicional de 0,25 ponto
percentual na taxa dos fed funds.
A ata do Fed revela com mais clareza sua
urgência em modificar o passo do aperto monetário, que não estava tão
explícito. Muitos participantes da reunião apontaram que, com a inflação bem
acima do objetivo (a meta é 2%), e com riscos de alta, prefeririam um aumento
de 0,5 ponto percentual já na reunião passada. Mais que isso, consideraram que
um ou vários aumentos de 0,5 ponto seria a decisão adequada a ser tomada nos
próximos encontros.
Qual seria o ponto de chegada imediato
desta instância de política monetária? Foi indicado que seria necessário chegar
rapidamente ao juro neutro, isto é, algo entre 2,25% e 2,5%. Em que tempo? Lael
Brainard, indicada para vice-presidência do Fed, em palestra anteontem, disse
que seria importante chegar a essa taxa até o fim do ano.
Os efeitos de uma política monetária mais
apertada serão tão menos perturbadores quanto mais se conhecerem os objetivos e
os próximos passos do banco. Diante de uma inflação não vista desde a década de
70, buscar juros neutros pode não significar que o BC americano pretende um
esfriamento radical da economia americana, ou seja, uma recessão, como teme
parte dos investidores.
No entanto, as incertezas são enormes e
atuam sobre níveis inflacionários muito elevados para as economias avançadas,
como a dos EUA. Segundo o BIS, 60% delas tem hoje inflação ao consumidor de 5%
ou mais, enquanto que em pelo menos metade dos países emergentes ela se iguala
ou ultrapassa 7% (Valor,
5/4). A invasão da Ucrânia pela Rússia piorou uma situação que já não era
confortável, aumentando preços de várias matérias primas essenciais e
prolongando a perturbação da oferta em cadeias de produção que não se
normalizaram desde o início da pandemia, em 2020.
A elevação dos juros pode parecer rápida
demais, mas ela vem após o maior e mais longo período de estímulos monetários
da história do capitalismo. As consequências de desarmar estes estímulos leva o
Fed para território desconhecido. A volta triunfal da geopolítica como fator
essencial de decisões econômicas, após a invasão da Ucrânia, adiciona um
elemento de enorme instabilidade global com o qual os BCs não estão acostumados
a lidar.
Por outro lado, a previsibilidade e a ampla
liquidez remanescente podem permitir uma transição menos turbulenta do que se
prevê. Por muito menos, o taper tantrum de 2013 fez estragos fortes e variados
nos emergentes. Um país vulnerável como o Brasil, por exemplo, viu até agora um
afluxo significativo de capital externo, quase o contrário do que se previa.
Não parece o prenúncio de uma tempestade que, no entanto, pode estar prestes a
vir.
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