O Estado de S. Paulo
Uma novela é só uma novela e não dará conta
de responder que mudanças históricas estarão por trás das transformações do
signo daquele lugar.
Eugênio pronuncia palavras sonoras e
precisas para retratar o pai de Zé – e Zé se abespinha. Aos seus ouvidos,
aquela história na voz de Eugênio faz alusões que ferem a figura de seu pai
idolatrado. Seu coração crispa. Para Zé, o pai é um ente intocável, que existe
num plano acima dos mortais. Sim, seu pai deixou a vida, mas não chegou a
entrar na morte. Filho dedicado, concebe o pai (isso mesmo, o filho concebe o pai) como um totem
que se move além da vista, capaz de agir – invisível, mas real – sobre o destino
de seus descendentes. Tomado por tão grande devoção, Zé não compreende as
palavras de Eugênio e as repele, agressivo e casmurro. Depois, terá tempo de
perceber que, em nome de seu zelo filial e vaidoso, rechaçou nada menos que a
verdade – mas, no primeiro momento, seu impulso é rechaçar o que não lhe soa
bem.
Estamos em Pantanal, a nova novela de horário nobre da Rede Globo de Televisão. A cena descrita no parágrafo acima foi ao ar na terça-feira. Eugênio, o violeiro interpretado por Almir Sater, canta uma bela moda que fala sobre um velho peão que sumiu sem deixar rastros. Zé Leôncio (Renato Góes), filho do peão de nome Juventino, que desapareceu feito sombra por este mundão de marruás, fica ofendido ao ouvir a cantiga. Detesta a sensação de ver o pai numa narrativa que fuja ao seu controle de herdeiro. Emburrado, fica de pé num repente e se retira da roda de viola.
Mais tarde, algumas cenas depois, Zé vai se
arrepender da própria rispidez. Comovido, vai retornar ao cantador, a quem
pedirá bis. Nessa hora os dois contracenam sozinhos, a bordo de uma chalana
atracada. Os acordes preenchem a vastidão alagada, a câmera sai voando (ah, os
drones) e o melodrama cumpre seu ciclo. O intervalo comercial se aproxima. Tudo
parece bem, tudo está calmo e os sons se afinam.
Algo ali, porém, continua arranhando os
olhos e os ouvidos da gente. Na nova trama ficcional da Globo, há signos que
não se reconciliam de jeito nenhum. Não é apenas a figura paterna que vira
objeto de disputa entre o canto do violeiro e a veneração mistificadora do
filho; outros signos, muitos outros, não encontram termos de convivência
harmônica. Assim, com seus cenários ambientados num paraíso turístico de
tuiuiús, sucuris, onças, jacarés e galãs que fingem tocar berrante, Pantanal nos apresenta,
voluntariamente ou não, uma trama de guerra entre signos. Nas frestas dessa
signagem atritada, entrevemos as feridas em carne viva de um Brasil cindido,
que não mais se reconhece em sua própria história.
Pantanal é um remake. Sua primeira versão foi ao
ar há 32 anos, pela extinta TV Manchete, num sucesso instantâneo e consistente.
Escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, a trama
arrebatou a audiência com sua alma hippie. Sua mensagem era meio ecológica,
meio bicho-grilo, meio poncho-e-conga, meio chá de cogumelo. Em 1990, a região
do Pantanal era um lugar idílico, atravessado pelo velho trem que se arrastava
rumo a Santa Cruz de la Sierra.
Agora, em 2022, os estereótipos se
inverteram. O Pantanal é um charco poluído e mastigado pelo agronegócio. O
arquétipo do peão, que já evocou sintonia com a natureza (o peão estava para o
mato mais ou menos como o surfista está para o mar), representa hoje a pecuária
mais sanguinolenta e maquinizada. O peão de 2022 vai a bordo de caminhonetes que
derrapam no pasto vomitando óleo diesel; sua turma são as falanges apinhadas em
botas texanas, que odeiam os ambientalistas e votam em Jair Bolsonaro. Em 1990,
os protagonistas de Pantanal eram
tacitamente de esquerda, muito embora latifundiários. Agora, os mesmos
protagonistas correm o risco bastante considerável de despontar como ícones de
direita, muito embora apolíticos.
Quando Zé Leôncio se irrita com Eugênio e
lhe volta as costas, a nova acepção do termo “Pantanal” entra em conflito com a
anterior. Almir Sater é um ator sobrevivente; esteve no elenco pioneiro da TV
Manchete e ressurge agora como um híbrido de instrumentista requintado e guia
espiritual de segunda, com falas de autoajuda. Renato Góes, que vive o Zé
Leôncio, é seu contrário: por mais que se esforce, não sabe ouvir o que não
seja o seu próprio eco.
O Pantanal mudou de sentido, exatamente
como aconteceu com Santos e Acapulco. A imagem de figuras públicas também vira
de ponta-cabeça, o que se viu com Volodmir Zelenski. Eleito presidente da
Ucrânia em 2019, o ex-comediante era esnobado como se não passasse de um
palhaço, e agora recebe aplausos mundo afora como um estadista sábio e
corajoso. Também os vocábulos mais prosaicos – principalmente eles – sofrem
drásticas alterações semânticas. O sociólogo e linguista francês Antoine
Meillet (1866-1936) pesquisou essas metamorfoses e demonstrou que “fatos
históricos e sociais agem e reagem para transformar o sentido das palavras”.
Que mudanças históricas estarão por trás
das transformações do signo do Pantanal? Que mudanças virão? Uma novela é só
uma novela, não dará conta de responder, mas os discursos já estão em convulsão
aberta neste país.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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