Revista Prosa Verso e Arte
Hoje, o escritor que deseje combater a
mentira e a ignorância tem de lutar, pelo menos, contra cinco dificuldades. É-lhe
necessária a coragem de dizer a verdade, numa altura em que por toda a parte se
empenham em sufocá-la; a inteligência de a reconhecer, quando por toda a parte
a ocultam; a arte de a tornar manejável como uma arma; o discernimento
suficiente para escolher aqueles em cujas mãos ela se tornará eficaz;
finalmente, precisa de ter habilidade para difundir entre eles. Estas
dificuldades são grandes para os que escrevem sob o jugo do fascismo; aqueles
que fugiram ou foram expulsos também sentem o peso delas; e até os que escrevem
num regime de liberdades burguesas não estão livres da sua acção.
1- A CORAGEM DE DIZER A VERDADE
É evidente que o escritor deve dizer a
verdade, não a calar nem a abafar, e nada escrever contra ela. É sua obrigação
evitar rebaixar-se diante dos poderosos, não enganar os fracos, naturalmente,
assim como resistir à tentação do lucro que advém de enganar os fracos.
Desagradar aos que tudo possuem equivale a renunciar seja o que for. Renunciar
ao salário do seu trabalho equivale por vezes a não poder trabalhar, e recusar
ser célebre entre os poderosos é muitas vezes recusar qualquer espécie de
celebridade. Para isso precisa-se de coragem. As épocas de extrema opressão
costumam ser também aquelas em que os grandes e nobres temas estão na ordem do
dia. Em tais épocas, quando o espírito de sacrifício é exaltado ruidosamente,
precisa o escritor de muita coragem para tratar de temas tão mesquinhos e tão
baixos como a alimentação dos trabalhadores e o seu alojamento.
Quando os camponeses são cobertos de
honrarias e apontados como exemplo, é corajoso o escritor que fala da
maquinaria agrícola e dos pastos baratos que aliviariam o tão exaltado trabalho
dos campos. Quando todos os altifalantes espalham aos quatro ventos que o
ignorante vale mais do que o instruído, é preciso coragem para perguntar: vale
mais porquê? Quando se fala de raças nobres e de raças inferiores, é corajoso o
que pergunta se a fome, a ignorância e a guerra não produzem odiosas
deformidades. É igualmente necessária coragem para se dizer a verdade a nosso
próprio respeito, sobre os vencidos que somos. Muitos perseguidos perdem a
faculdade de reconhecer as suas culpas. A perseguição parece-lhes uma
monstruosa injustiça. Os perseguidores são maus, dado que perseguem, e eles, os
perseguidos, são perseguidos por causa da sua virtude. Mas essa virtude foi
esmagada, vencida, reduzida à impotência. Bem fraca virtude ela era! Má,
inconsistente e pouco segura virtude, pois não é admissível aceitar a fraqueza
da virtude como se aceita a humidade da chuva. É necessária coragem para dizer
que os bons não foram vencidos por causa da sua virtude, mas antes por causa da
sua fraqueza. A verdade deve ser mostrada na sua luta com a mentira e nunca
apresentada como algo de sublime, de ambíguo e de geral; este estilo de falar
dela convém justamente à mentira. Quando se afirma que alguém disse a verdade é
porque houve outros, vários, muitos ou um só, que disseram outra coisa,
mentiras ou generalidades, mas aquele disse a verdade, falou em algo de prático,
concreto, impossível de negar, disse a única coisa que era preciso dizer.
Não se carece de muita coragem para deplorar em termos gerais a corrupção do mundo e para falar num tom ameaçador, nos sítios onde a coisa ainda é permitida, da desforra do Espírito. Muitos simulam a bravura como se os canhões estivessem apontados sobre eles; a verdade é que apenas servem de mira a binóculos de teatro. Os seus gritos atiram algumas vagas e generalizadas reivindicações, à face dum mundo onde as pessoas inofensivas são estimadas. Reclamam em termos gerais uma justiça para a qual nada contribuem, apelam pela liberdade de receber a sua parte dum espólio que sempre têm partilhado com eles. Para esses, a verdade tem de soar bem. Se nela só há aridez, números e factos, se para a encontrar forem precisos estudos e muito esforço, então essa verdade não é para eles, não possui a seus olhos nada de exaltante. Da verdade, só lhes interessa o comportamento exterior que permite clamar por ela. A sua grande desgraça é não possuírem a mínima noção dela.
2- A INTELIGÊNCIA DE RECONHECER A VERDADE
Como é difícil dizer a verdade, já que por
toda a parte a sufocam, dizê-la ou não parece à maioria uma simples questão de
honestidade. Muitas pessoas pensam que quem diz a verdade só precisa de coragem.
Esquecem a segunda dificuldade, a que consiste em descobri-la. Não se pode
dizer que seja fácil encontrar a verdade.
Em primeiro lugar, já não é fácil descobrir
qual verdade merece ser dita. Hoje, por exemplo, as grandes nações civilizadas
vão soçobrando uma após outra na pior das barbáries diante dos olhos pasmados
do universo.
Acresce ainda o facto de todos sabermos que
a guerra interna, dispondo dos meios mais horríveis, pode transformar-se dum
momento para o outro numa guerra exterior que só deixará um montão de escombros
no sitio onde outrora havia o nosso continente. Esta é uma verdade que não
admite dúvidas, mas é claro que existem outras verdades. Por exemplo: não é
falso que as cadeiras sirvam para a gente se sentar e que a chuva caia de cima
para baixo. Muitos poetas escrevem verdades deste género. Assemelham-se a
pintores que esboçassem naturezas mortas a bordo dum navio em risco de
naufragar. A primeira dificuldade de que falamos não existe para eles, e
contudo têm a consciência tranquila. “Esgalham” o quadro num desprezo soberano
pelos poderosos, mas também sem se deixarem impressionar pelos gritos das
vítimas. O absurdo do seu comportamento engendra neles um “profundo” pessimismo
que se vende bem; os outros é que têm motivos para se sentirem pessimistas ao
verem o modo como esses mestres se vendem. Já nem sequer é fácil reconhecer que
as suas verdades dizem respeito ao destino das cadeiras e ao sentido da chuva:
essas verdades soam normalmente de outra maneira, como se estivessem relacionadas
com coisas essenciais, pois o trabalho do artista consiste justamente em dar um
ar de importância aos temas de que trata.
Só olhando os quadros de muito perto é que
podemos discernir a simplicidade do que dizem: “Uma cadeira é uma cadeira” e
“Ninguém pode impedir a chuva de cair de cima para baixo”. As pessoas não
encontram ali a verdade que merece a pena ser dita.
Alguns consagram-se verdadeiramente às
tarefas mais urgentes, sem medo aos poderosos ou á pobreza, e no entanto não
conseguem encontrar a verdade. Faltam-lhe conhecimentos. As velhas superstições
não os largam, assim como os preconceitos ilustres que o passado frequentemente
revestiu de uma forma bela. Acham o mundo complicado em demasia, não conhecem
os dados nem distinguem as relações. A honestidade não basta; são precisos
conhecimentos que se podem adquirir e métodos que se podem aprender. Todos os
que escrevem sobre as complicações desta época e sobre as transformações que
nela ocorrem necessitam de conhecer a dialéctica materialista, a economia e a
história. Estes conhecimentos podem adquirir-se nos livros e através da
aprendizagem prática, por mínima que seja a vontade necessária. Muitas verdades
podem ser encontradas com a ajuda de meios bastante mais simples, através de
fragmentos de verdades ou dos dados que conduzem à sua descoberta. Quando se
quer procurar, é conveniente ter-se um método, mas também se pode encontrar sem
método e até sem procura. Contudo, através dos diversos modos como o acaso se
exprime, não se pode esperar a representação da verdade que permite aos homens
saber como devem agir. As pessoas que só se empenham em anotar os factos
insignificantes são incapazes de tornar manejáveis as coisas deste mundo. O
objectivo da verdade é uno e indivisível. As pessoas que apenas são capazes de
dizer generalidades sobre a verdade não estão à altura dessa obrigação.
Se alguém está pronto a dizer a verdade e é
capaz de a reconhecer, ainda tem de vencer três dificuldades.
3-A ARTE DE TORNAR A VERDADE MANEJÁVEL COMO
UMA ARMA
O que torna imperiosa a necessidade de
dizer a verdade são as consequências que isso implica no que diz respeito à
conduta prática. Como exemplo de verdade inconsequente ou de que se poderão
tirar consequências falsas, tomemos o conceito largamente difundido, segundo o
qual em certos países reina um estado de coisas nefasto, resultante da
barbárie. Para esta concepção, o fascismo é uma vaga de barbárie que alagou
certos países com a violência de um fenómeno natural.
Os que assim pensam, entendem o fascismo como
um novo movimento, uma terceira força justaposta ao capitalismo e ao socialismo
(e que os domina). Para quem partilha esta opinião, não só o movimento
socialista, mas também o capitalismo teriam podido, se não fosse o fascismo,
continuar a existir, etc. Naturalmente que se trata de uma afirmação fascista,
de uma capitulação perante o fascismo. O fascismo é uma fase histórica na qual
o capitalismo entrou; por consequência, algo de novo e ao mesmo tempo de velho.
Nos países fascistas, a existência do capitalismo assume a forma do fascismo, e
não é possível combater o fascismo senão enquanto capitalismo, senão enquanto
forma mais nua, mais cínica, mais opressora e mais mentirosa do capitalismo.
Como se poderá dizer a verdade sobre o
fascismo que se recusa, se quem diz essa verdade se abstêm de falar contra o
capitalismo que engendra o fascismo? Qual será o alcance prático dessa verdade?
Aqueles que estão contra o fascismo sem
estar contra o capitalismo, que choramingam sobre a barbárie causada pela
barbárie, assemelham-se a pessoas que querem receber a sua fatia de assado de
vitela, mas não querem que se mate a vitela. Querem comer vitela, mas não
querem ver sangue. Para ficarem contentes, basta que o magarefe lave as mãos
antes de servir a carne. Não são contra as relações de propriedade que produzem
a barbárie, mas são contra a barbárie.
As recriminações contra as medidas bárbaras
podem ter uma eficácia episódica, enquanto os auditores acreditarem que
semelhantes medidas não são possíveis na sociedade onde vivem. Certos países
gozam do raro privilégio de manter relações de propriedade capitalistas por
processos aparentemente menos violentos. A democracia ainda lhes presta os
serviços que noutras partes do mundo só podem ser prestados mediante o recurso
à violência, quer dizer, aí a democracia chega para garantir a propriedade
privada dos meios de produção. O monopólio das fábricas, das minas, dos
latifúndios gera em toda a parte condições bárbaras; digamos que em alguns
sítios a democracia torna essas condições menos visíveis. A barbárie torna-se
visível logo que o monopólio já só pode encontrar protecção na violência nua.
Certas nações que conseguem preservar os
monopólios bárbaros sem renunciar às garantias formais do direito, nem a
comodidades como a arte, a filosofia, a literatura, acolhem carinhosamente os
hóspedes cujos discursos procuram desculpar o seu país natal de ter renunciado
a semelhantes confortos: tudo isso lhes será útil nas guerras vindouras. É
licito dizer-se que reconheceram a verdade, aqueles que reclamam a torto e a
direito uma luta sem quartel contra a Alemanha, apresentada como verdadeira
pátria do mal da nossa época, sucursal do inferno, caverna do Anticristo?
Desses, não será exagerado pensar que não passam de impotentes e nefastos imbecis,
já que a conclusão do seu blá-blá-blá aponta para a destruição desse pais
inteiro e de todos os seus habitantes (o gás asfixiante, quando mata, não
escolhe os culpados).
O homem frívolo, que não conhece a verdade,
exprime-se através de generalidades, em termos nobres e imprecisos. Encanta-o
perorar sobre “os” alemães ou lançar-se em grandes tiradas sobre “o” Mal, mas a
verdade é que nós, aqueles a quem o homem frívolo fala, ficamos embaraçados,
sem saber que fazer de semelhantes ditames. Afinal de contas, o nosso homem
decidiu deixar de ser alemão? E lá por ele ser bom, o inferno vai desaparecer?
São desta espécie as grandes frases sobre a barbárie. Para os seus autores, a
barbárie vem da barbárie e desaparece graças à educação moral que vem da educação.
Que miséria a destas generalidades, que não visam qualquer aplicação pratica e,
no fundo, não se dirigem a ninguém.
Não nos admiremos que se digam de esquerda,
“mas” democratas, os que só conseguem elevar-se a tão fracas e improfícuas
verdades. A “esquerda democrática” é outra destas generalidades-álibís onde
correm a acoitar-se as pessoas inconsequentes, isto é, os incapazes de viver
até as últimas consequências as verdades que quer a esquerda, quer a democracia
contêm. Reclamar-se alguém da “esquerda democrática” significa, em termos
práticos, que pertence ao grupo dos ineptos para revolucionar ou conservar as
coisas, ao clã dos generalistas da verdade.
Não é a mim, fugido da Alemanha com a roupa
que tinha no corpo, que me vão apresentar o fascismo como uma espécie de força
motriz natural impossível de dominar. A escuridade dessas descrições esconde as
verdadeiras forças que produzem as catástrofes. Um pouco de luz, e logo se vê
que são homens a causa das catástrofes. Pois é, amigos: vivemos num tempo em que
o homem é o destino do homem.
O fascismo não é uma calamidade natural,
que se possa compreender a partir da “natureza” humana. Mas mesmo confrontados
com catástrofes naturais, há um modo de descrevê-las digno do homem, um modo
que apela para as suas qualidades combativas.
O cronista de grandes catástrofes como o
fascismo e a guerra (que não são catástrofes naturais) deve elaborar uma
verdade praticável, mostrar as calamidades que os que possuem os meios de
produção infligem às massas imensas dos que trabalham e não os possuem.
Se se pretende dizer eficazmente a verdade
sobre um mau estado de coisas, é preciso dizê-la de maneira que permita
reconhecer as suas causas evitáveis. Uma vez reconhecidas as causas evitáveis,
o mau estado de coisas pode ser combatido.
4- DISCERNIMENTO SUFICIENTE PARA ESCOLHER
OS QUE TORNARÃO A VERDADE EFICAZ
Tirando ao escritor a preocupação pelo
destino dos seus textos, as usanças seculares do comércio da coisa escrita no
mercado das opiniões deram-lhe a impressão de que a sua missão terminava logo
que o intermediário, cliente ou editor, se encarregava de transmitir aos outros
a obra acabada. O escritor pensava: falo e ouve-me quem me quiser ouvir. Na
verdade, ele falava e quem podia pagar ouvia-o. Nem todos ouviam as suas
palavras, e os que as ouviam não estavam dispostos a ouvir tudo o que se lhes
dizia. Tem-se falado muito desta questão, mas mesmo assim ainda não chega o que
se tem dito: limitar-me-ei aqui a acentuar que “escrever a alguém” tornou-se
pura e simplesmente “escrever”. Ora não se pode escrever a verdade e basta: é
absolutamente necessário escrevê-la a “alguém” que possa tirar partido dela. O
conhecimento da verdade é um processo comum aos que lêem e aos que escrevem.
Para dizer boas coisas, é preciso ouvir bem e ouvir boas coisas. A verdade deve
ser pesada por quem a diz e por quem a ouve. E para nós que escrevemos, é
essencial saber a quem a dizemos e quem no-la diz.
Devemos dizer a verdade sobre um mau estado
de coisas àqueles que o consideram o pior estado de coisas, e é desses que
devemos aprender a verdade. Devemos não só dirigir-nos às pessoas que têm uma
certa opinião, mas também aos que ainda a não têm e deviam tê-la, ditada pela
sua própria situação. Os nossos auditores transformam-se continuamente! Até se
pode falar com os próprios carrascos quando o prémio dos enforcamentos deixa de
ser pago pontualmente ou o perigo de estar com os assassinos se torna muito
grande. Os camponeses da Baviera não costumam querer nada com revoluções, mas
quando as guerras duram demais e os seus filhos, no regresso, não arranjam
trabalho nas quintas, tem sido possível ganhá-los para a revolução.
Para quem escreve, é importante saber
encontrar o tom da verdade. Um acento suave, lamentoso, de quem é incapaz de
fazer mal a uma mosca, não serve. Quem, estando na miséria, ouve tais lamúrias,
sente-se ainda mais miserável. Em nada o anima a cantilena dos que, não sendo
seus inimigos, não são certamente seus companheiros de luta. A verdade é
guerreira, não combate só a mentira, mas certos homens bem determinados que a
propagam.
5- HABILIDADE PARA DIFUNDIR A VERDADE
Muitos, orgulhosos de ter a coragem de
dizer a verdade, contentes por a terem encontrado, porventura fatigados com o
esforço necessário para lhe dar uma forma manejável, aguardam impacientemente
que aqueles cujos interesses defendem a tomem em suas mãos e consideram
desnecessário o uso de manhas e estratagemas para a difundir. Frequentemente, é
assim que perdem todo o fruto do seu trabalho. Em todos os tempos, foi
necessário recorrer a “truques” para espalhar a verdade, quando os poderosos se
empenhavam em abafá-la e ocultá-la. Confúcio falsificou um velho calendário
histórico nacional, apenas lhe alterando algumas palavras. Quando o texto
dizia: “o senhor de Kun condenou à morte o filósofo Wan por ter dito frito e
cozido”, Confúcio substituía “condenou à morte” por “assassinou”. Quando o
texto dizia que o Imperador Fulano tinha sucumbido a um atentado, escrevia “foi
executado”. Com este processo, Confúcio abriu caminho a uma nova concepção da
história.
Na nossa época, aquele que em vez de
“povo”, diz “população”, e em lugar de terra”, fala de “latifúndio”, evita já
muitas mentiras, limpando as palavras da sua magia de pacotilha. A palavra
“povo” exprime uma certa unidade e sugere interesses comuns; a “população” de
um território tem interesses diferentes e opostos. Da mesma forma, aquele que
fala em “terra” e evoca a visão pastoral e o perfume dos campos favorece as
mentiras dos poderosos, porque não fala do preço do trabalho e das sementes,
nem no lucro que vai parar aos bolsos dos ricaços das cidades e não aos dos
camponeses que se matam a tornar fértil o “paraíso”. “Latifúndio” é a expressão
justa: torna a aldrabice menos fácil. Nos sítios onde reina a opressão, deve-se
escolher, em vez de “disciplina”, a palavra “obediência”, já que mesmo sem amos
e chefes a disciplina é possível, e caracteriza-se portanto por algo de mais
nobre que a obediência. Do mesmo modo, “dignidade humana” vale mais do que
“honra”: com a primeira expressão o indivíduo não desaparece tão facilmente do
campo visual; por outro lado, conhece-se de ginjeira o género de canalha que
costuma apresentar-se para defender a honra de um povo, e com que prodigalidade
os gordos desonrados distribuem “honrarias” pelos famélicos que os engordam.
Ao substituir avaliações inexactas de
acontecimentos nacionais por notações exactas, o método de Confúcio ainda hoje
é aplicável. Lénine, por exemplo, ameaçado pela polícia do czar, quis descrever
a exploração e a opressão da ilha Sakalina pela burguesia russa. Substituiu
“Rússia” por “Japão” e “Sakalina” por “Coreia”. Os métodos da burguesia
japonesa faziam lembrar a todos os leitores os métodos da burguesia russa em
Sakalina, mas a brochura não foi proibida, porque o Japão era inimigo da
Rússia. Muitas coisas que não podem ser ditas na Alemanha a propósito da Alemanha,
podem sê-lo a propósito da Áustria. Há muitas maneiras de enganar um Estado
vigilante.
Voltaire combateu a fé da Igreja nos
milagres, escrevendo um poema libertino sobre a Donzela de Orleans, no qual são
descritos os milagres que sem dúvida foram necessários para Joana d’Arc
permanecer virgem no exército, na Corte e no meio dos frades.
Pela elegância do seu estilo e a descrição
de aventuras galantes inspiradas na vida relaxada das classes dirigentes, levou
estas a sacrificar uma religião que lhes fornecia os meios de levar essa vida
dissoluta. Mais e melhor deu assim às suas obras a possibilidade de atingir por
vias ilegais aqueles a quem eram destinadas. Os poderosos que Voltaire contava
entre os seus leitores favoreciam ou toleravam a difusão dos livros proibidos,
e desse modo sacrificavam a polícia que protegia os seus prazeres. E o grande
Lucrécio sublinha expressamente que, para propagar o ateísmo epicurista
confiava muito na beleza dos seus versos.
Não há dúvida de que um alto nível
literário pode servir de salvo-conduto à expressão de uma ideia. Contudo,
muitas vezes desperta suspeitas. Então, pode ser indicado baixá-lo
intencionalmente. É o que acontece, por exemplo, quando sob a forma desprezada
do romance policial, se introduz à socapa, em lugares discretos, a descrição
dos males da sociedade. O grande Shakespeare baixou o seu nível por
considerações bem mais fracas, quando tratou com uma voluntária ausência de
vigor o discurso com que a mãe de Coriolano tentou travar o filho, que marchava
sobre Roma: Shakespeare pretendia que Coriolano desistisse do seu projecto, não
por causa de razões sólidas ou de uma emoção profunda, mas por uma certa
fraqueza de carácter que o entregava aos seus velhos hábitos. Encontramos
igualmente em Shakespeare um modelo de manhas na difusão da verdade: o discurso
de Marco António perante o corpo de César, quando repete com insistência que
Brutus, assassino de César, é um homem honrado, descrevendo ao mesmo tempo o
seu acto, e a descrição do acto provoca mais impressão que a do autor.
Jonathan Swift propôs numa das suas obras o
seguinte meio de garantir o bem-estar da Irlanda: meter em salmoura os filhos
dos pobres e vendê-los como carniça no talho. Através de minuciosos cálculos,
provava que se podem fazer grandes economias quando não se recua diante de
nada. Swift armava voluntariamente em imbecil, defendendo uma maneira de pensar
abominável e cuja ignomínia saltava aos olhos de todos. O leitor podia-se
mostrar mais inteligente, ou pelo menos mais humano que Swift, sobretudo aquele
que ainda não tinha pensado nas consequências decorrentes de certas concepções.
São consideradas baixas as actividades
úteis aos que são mantidos no fundo da escala: a preocupação constante pela
satisfação de necessidades; o desdém pelas honrarias com que procuram engodar
os que defendem o país onde morrem de fome; a falta de confiança no chefe
quando o chefe nos leva a todos à catástrofe; a falta de gosto pelo trabalho
quando ele não alimenta o trabalhador; o protesto contra a obrigação de ter um
comportamento de idiotas; a indiferença para com a família, quando de nada
serve a gente interessar-se por ela. Os esfomeados são acusados de gulodice; os
que não têm nada a defender, de cobardia; os que duvidam dos seus opressores,
de duvidar da sua própria força; os que querem receber a justa paga pelo seu
trabalho, de preguiça, etc.
Numa época como a nossa, os governos que
conduzem as massas humanas à miséria, têm de evitar que nessa miséria se pense
no governo, e por isso estão sempre a falar em fatalidade. Quem procura as
causas do mal, vai parar à prisão antes que a sua busca atinja o governo. Mas é
sempre possível opormo-nos à conversa fiada sobre a fatalidade: pode-se
mostrar, em todas as circunstâncias, que a fatalidade do homem é obra de outros
homens. Até na descrição de uma paisagem se pode chegar a um resultado conforme
à verdade, quando se incorporam à natureza as coisas criadas pelo homem.
RECAPITULAÇÃO
A grande verdade da nossa época (só seu
conhecimento em nada nos faz avançar, mas sem ela não se pode alcançar nenhuma
outra verdade importante) é que o nosso continente se afunda na barbárie porque
nele se mantêm pela violência determinadas relações de propriedade dos meios de
produção. De que serve escrever frases corajosas mostrando que é bárbaro o
estado de coisas em que nos afundamos (o que é verdade), se a razão de termos
caído nesse estado não se descortina com clareza? É nossa obrigação dizer que,
se se tortura, é para manter as relações de propriedade. Claro que ao dizermos
isso perdemos muitos amigos; aqueles que são contra a tortura porque julgam ser
possível manter sem ela as relações de propriedade (o que é falso).
Devemos dizer a verdade sobre as condições
bárbaras que reinam no nosso país a fim de tornar possível a acção que as fará
desaparecer, isto é, que transformará as relações de propriedade.
Devemos dizê-la aos que mais sofrem com as
relações de propriedade e estão mais interessados na sua transformação, ou
seja: aos operários e aos que podemos levar a aliarem-se com eles, por não
serem proprietários dos meios de produção, embora associados aos lucros e
benefícios da exploração de quem produz. E, é claro, devemos proceder com
astúcia.
Devemos resolver em conjunto, e ao mesmo
tempo, estas cinco dificuldades, já que não podemos procurar a verdade sobre
condições bárbaras sem pensar nos que sofrem essas condições e estão dispostos
a utilizar esse conhecimento. Além disso, temos de pensar em apresentar-lhes a
verdade sob uma forma susceptível de se transformar numa arma nas suas mãos, e
simultaneamente com a astúcia suficiente para que a operação não seja
descoberta e impedida pelo inimigo.
São estas as virtudes exigidas ao escritor
empenhado em dizer a verdade.
*Bertolt Brecht – poeta e
dramaturgo alemão (texto escrito em 1934). Tradução Ernesto Sampaio. Publicado
no “Diário de Lisboa”, em 25 de abril de 1982
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