Correio Braziliense
Na próxima semana, faz 134 anos da
Abolição, mas a escravidão continua mantida por sua última trincheira: a
desigualdade na qualidade da escola
Em 1850, o deputado baiano Silva Guimarães
teve a estranha ideia de propor lei declarando livres os filhos das escravas
nascidos a partir daquela data. A proposta foi obviamente arquivada porque era
inconcebível romper o princípio jurídico de que o ventre da escrava pertencia
ao seu senhor. Além disso, o recém-nascido era negro, não fazia sentido
declará-lo livre sem alforria individual proclamada por seu dono. Cento e
setenta anos depois, ainda parece estranha a ideia de pobre estudar na mesma
escola de brasileiro rico.
Foi necessário esperar até 1871 para que a
ideia do "ventre livre" chegasse ao parlamento com chance de
aprovação. Depois de seis meses de debates, a lei foi aprovada por 56 votos
contra 47 deputados que se opunham ao que consideravam injusta ilegalidade de
"desapropriar os donos e sequestrar os filhos de escravas".
Para conseguir os votos, foi necessário determinar que os filhos só seriam livres ao completar 21 anos, as filhas aos 18. Achando pouco, o sistema encontrou forma de impedir que a lei fosse posta em prática: negar escola aos libertos. Os escravocratas perceberam que o ser humano nasce duas vezes: ao sair do ventre da mãe e ao entrar na escola.
Para abolir a escravidão de uma criança, não basta declarar livre o ventre de sua mãe, é preciso libertar o cérebro da criança ao receber conhecimento para se orientar e usufruir do mundo. O trabalho é servil por compra de escravo ou por negação de educação que assegure a possibilidade do trabalho livre. A Lei do Ventre Livre ficou incompleta por não libertar os cérebros. Os libertos receberam alforria para usar os pés e as mãos, mas não a educação necessária para usufruírem da liberdade.
Mais 20 anos foram necessários para abolir
a escravidão no 13 de maio de 1888, mas manteve-se o mesmo antídoto à liberdade
plena, negando escola aos pobres, descendentes sociais dos escravos; e mais 100
anos para aprovarem leis que assegurassem vaga em escola a toda criança a
partir de quatro aos 17 anos; e adotar o programa Bolsa Escola, para dar aos
pobres as condições de frequentarem aulas, no lugar do trabalho.
Também para a criação dos programas de
Merenda Escolar, Livro Didático, Piso Salarial Nacional para o Professor,
Planos Nacionais de Educação I e II, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Básico, Base Nacional Comum Curricular. Apesar disso tudo, o sistema
escravocrata não se submeteu à abolição plena da escravidão.
Na próxima semana, faz 134 anos da
Abolição, mas a escravidão continua mantida por sua última trincheira: a
desigualdade na qualidade da escola. Não sendo mais possível negar matrícula a
todos, o escravismo entranhado na mente brasileira mantém as escolas divididas
entre "escolas casa grande" e "escolas senzala", de acordo
com a renda da criança: os pobres, descendentes sociais dos escravos, separados
dos descendentes sociais dos senhores.
Até hoje, a ideia de filhos de pobres
estudarem na mesma escola de filhos de ricos parece tão estranha quanto, em
1850, a ideia de libertar os filhos das escravas. Ainda não se aceita a ideia
de que a escola é a continuação do ventre; não se busca promover uma lei do
cérebro livre para entrar no colégio independentemente da renda. Ainda vale a
regra jurídica de que o conhecimento pertence a quem pode comprá-lo.
A proposta do deputado Silva Guimarães foi
arquivada no século 19, tanto quanto no século 21 foram arquivadas a proposta
de lei que declarava falta de decoro o parlamentar matricular o filho em escola
privada e a proposta de emenda à Constituição determinando prazo de 30 anos
para todas as escolas serem de acesso público, mesmo não sendo estatais, todas
parte de um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base.
A escravidão sobreviverá enquanto os
descendentes sociais dos escravos não tiverem seus filhos em escolas com a
mesma qualidade daqueles são descendentes dos senhores de escravos: todas em um
sistema único. A lei da abolição só estará completa quando, além do seu artigo
"é declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no
Brasil", um outro determinar: "fica implantado um Sistema Único
Nacional Público de Educação de Base em todo território nacional", que
assegure a mesma qualidade na educação oferecida a cada brasileiro,
independentemente da renda e do endereço dos pais.
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