Editoriais
Vendilhões da democracia
O Estado de S. Paulo
É estarrecedor que membros de MDB e PSDB, partidos ligados às lutas democráticas, sejam coniventes com Bolsonaro. Por benefícios de curto prazo, transigem com princípios inegociáveis
É triste constatar que a maioria do MDB,
partido cuja história está diretamente vinculada à restauração da democracia no
País e à Constituição de 1988, não veja problemas em aderir ao bolsonarismo.
Segundo revelou o Estadão,
se o MDB declinar da decisão de ter candidatura própria ao Palácio do Planalto,
a maioria do partido inclina-se por apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro. Os
dados são de uma sondagem feita pelo MDB entre seus prefeitos, bancadas e
delegados eleitos pelos diretórios estaduais.
Ainda que não diminua sua responsabilidade,
é preciso reconhecer que o MDB não está sozinho nessa proximidade com o
presidente da República que afronta as instituições, põe em dúvida o processo
eleitoral e tenta envolver as Forças Armadas em devaneios golpistas. Também
parte significativa do PSDB, especialmente na Câmara dos Deputados, não vê
empecilhos em alinhar-se ao bolsonarismo. Citam-se os dois partidos por seu
histórico de defesa do regime democrático, mas há também outras legendas que
tratam Jair Bolsonaro como um útil parceiro.
Observa-se, assim, um nítido decaimento da consciência cívica não apenas em parte da população – há, por exemplo, quem saia à rua para pedir o fechamento da Corte constitucional –, mas da própria classe política. É um nível de retrocesso ainda mais preocupante, pois se dá em pessoas que, pela própria trajetória profissional, deveriam ser especialmente cuidadosas com o regime democrático e as suas instituições. Como um deputado, por exemplo, pode apoiar um presidente da República que questiona, sem nenhuma prova, a lisura das eleições? Como um parlamentar pode apoiar um movimento político que, entre suas causas, defende o AI-5, pede o fechamento do Congresso e postula o retorno da ditadura militar?
É constrangedor, deve-se admitir, que parte
da população defenda essas barbaridades, numa imitação irrefletida do que Jair
Bolsonaro defendeu ao longo de sua carreira política. Nenhuma das bandeiras
antidemocráticas do bolsonarismo ajuda a resolver, por mínimo que seja, algum
dos problemas e desafios nacionais. Além disso, não faz sentido que alguém que
se considere defensor das liberdades de expressão e de opinião manifeste apoio
à reedição do AI-5. Agir assim expressa profunda ignorância histórica,
constitui evidente manipulação política.
Mas ainda mais chocante e constrangedor é
constatar que partidos políticos que, de uma forma ou de outra, participaram da
luta pela redemocratização – o PSDB, por exemplo, nasceu do MDB, que era
oposição ao governo militar – sejam coniventes com a agenda bolsonarista. Nessa
indignação aqui não há nenhuma ingenuidade. É notório que esses partidos,
especialmente os seus grupos mais próximos ao bolsonarismo, estão sendo
fartamente alimentados pelo governo federal por meio das mais variadas emendas
e de outras verbas públicas. Ninguém esconde isso, nem mesmo Jair Bolsonaro.
Com sua falta de modos, o bolsonarismo instaurou em Brasília um ambiente de
escárnio em relação à compra de apoio político. Tudo é respondido com um “e
daí?”.
O grande problema, para o qual os partidos
perigosamente fazem vista grossa, é que o bolsonarismo não é apenas um governo
fraco e omisso, com o qual políticos hábeis podem lucrar muito no curto prazo.
Jair Bolsonaro ameaça o livre funcionamento das instituições, a começar pela
Justiça Eleitoral. Ou seja, ele coloca em risco a própria continuidade dos
partidos. Na contagem paralela de votos do bolsonarismo, quem garante que os
votos dados para o MDB e o PSDB irão mesmo para os dois partidos? No sonho
bolsonarista de ter um Judiciário refém do Executivo, não há espaço para
demandas contrárias aos interesses de Jair Bolsonaro.
A conivência dos partidos, especialmente
MDB e PSDB, com o golpismo de Jair Bolsonaro é muito perigosa. Tolera-se o
intolerável. Normaliza-se um antirrepublicano e inconstitucional exercício do
poder. E tudo isso vindo de legendas que, como se viu nas eleições de 2020, não
precisam de Jair Bolsonaro para ser competitivas nas urnas.
Muito ajuda quem não atrapalha
O Estado de S. Paulo
Amplas incertezas econômicas, agravadas pela produtiva usina de crises do Palácio do Planalto, afastam investidores dos leilões de infraestrutura
Inflação em patamares que não eram vistos
há décadas, taxa básica de juros nas alturas, desemprego elevado e crescimento
pífio afetam o dia a dia da população, mas também os negócios. A combinação
entre um governo populista como o de Jair Bolsonaro, o desarranjo causado pela
pandemia de covid-19 nas cadeias produtivas mundiais, a insistência da China em
adotar quarentenas draconianas e a guerra entre Rússia e Ucrânia são a
representação de uma tempestade perfeita. Em tempos conturbados, o investidor
prudente prefere aguardar a passagem da crise antes de tomar uma decisão, algo
que costuma ter efeitos nefastos para países emergentes como o Brasil.
As consequências mais claras dessa
instabilidade têm sido vistas nos leilões de infraestrutura cancelados nas
últimas semanas e foram coroadas com a postergação da licitação do Rodoanel
Norte pelo governo de São Paulo. Com 44 quilômetros de extensão e previsão de
conclusão em agosto de 2025, cortando os municípios de São Paulo, Arujá e
Guarulhos, o projeto exigiria investimentos de R$ 4,1 bilhões em obras e
despesas de operação e manutenção ao longo de 31 anos de concessão. A Agência
de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) justificou o adiamento ao
mencionar as incertezas do cenário macroeconômico interno e externo e a alta de
preços de insumos.
Quando nem mesmo um projeto que tem demanda
certa na maior cidade brasileira consegue atrair interessados, não se pode
esperar nada diferente de outras localidades. A disputa pelo Rodoanel
Metropolitano de Belo Horizonte foi adiada para julho. A Secretaria de Estado
de Infraestrutura e Mobilidade de Minas Gerais disse que a extensão do prazo
visa a garantir a ampla concorrência e dar tempo para empresas estrangeiras
providenciarem a documentação exigida pelo edital. A licitação da BR 381-262,
que liga Belo Horizonte e Governador Valadares a Vitória, foi adiada por três
vezes antes de ser finalmente suspensa em fevereiro, quando a União admitiu a
necessidade de fazer ajustes no edital para atrair os potenciais interessados.
Por ajuste, leia-se elevar as taxas de retorno dos empreendimentos.
O problema não atinge apenas as novas
concessões. O avanço do preço dos insumos da construção civil tem levado
entidades empresariais a encomendarem estudos que ensejem futuros pedidos de
reequilíbrio econômico-financeiro por parte das operadoras – e,
consequentemente, tarifas de pedágio e serviços de transporte de carga mais
caros. Enquanto os reajustes costumam ter o IPCA como referência, a disparada
de itens básicos para rodovias e ferrovias, como diesel, cimento, aço e
asfalto, gerou um descasamento entre receitas e despesas e pode colocar em
xeque a sustentabilidade dos projetos já leiloados. A secretária de Fomento,
Planejamento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura, Natália Marcassa,
rejeitou uma solução única para todos e disse ao Estadão/Broadcast que é
preciso analisar as situações caso a caso.
Às incertezas econômicas somam-se as
políticas. Enquanto as licitações patinam, o tempo corrói a qualidade da
deficiente infraestrutura nacional e a lista de obras paradas só aumenta, o
presidente Jair Bolsonaro faz campanha antecipada, participa de atos
antidemocráticos e questiona a confiabilidade do processo eleitoral. Com o
menor nível de investimento público da história, o governo reservou apenas R$
42,3 bilhões para todos os ministérios e privilegiou a área militar e as
emendas de relator do Centrão. Em uma peça orçamentária engessada por 95% de
despesas obrigatórias, é arrogância achar que o investimento público algum dia
vai superar o privado. Mas a premissa que garante o apetite desse setor, além
de um marco regulatório e jurídico adequado, é um ambiente macroeconômico
saudável e estável, com controle da inflação, equilíbrio fiscal e juros
civilizados, o contrário do que o Brasil tem apresentado. Sem capacidade
econômica e financeira para resolver gargalos históricos do País, o governo
faria muito se, ao menos, não atrapalhasse.
Indústria à espera de uma política
O Estado de S. Paulo
A indústria cresceu em fevereiro e março, mas continua longe de retomar o dinamismo perdido há uma década
Promover a recuperação e a modernização da
indústria deveria ser prioridade do governo federal, se houvesse um presidente
e uma equipe econômica interessados na prosperidade do País. Enquanto se espera
a mudança no centro do poder, prossegue o retrocesso da economia. Dois meses de
crescimento – 0,7% em fevereiro e 0,3% em março – foram insuficientes para a
indústria compensar a perda de 2% em janeiro e fechar o primeiro trimestre no
azul e em melhor condição do que antes da pandemia. Liderados pelo setor
automobilístico, 14 dos 26 ramos cobertos pela pesquisa mensal produziram mais
em março do que no mês anterior. Mas a média trimestral ainda ficou 0,4% abaixo
daquela registrada nos três meses finais de 2021. Além disso, o volume
acumulado em 2022 foi 4,5% inferior ao de um ano antes. Os
dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A produção de março ficou 2,1% abaixo
daquela observada 12 meses antes. Pelo oitavo mês consecutivo, essa comparação
mostrou recuo. Além disso, o volume produzido em março foi 2,1% menor que o de
fevereiro de 2020, antes dos danos causados pela pandemia.
Como tem ocorrido em muitos países, a
atividade industrial tem sido prejudicada, no Brasil, por desajustes globais.
Primeiro ocorreram problemas de suprimento decorrentes da pandemia. Houve
dificuldades de transporte e falhas na produção de semicondutores e de outros
insumos. Depois vieram desarranjos na oferta de petróleo, gás e cereais,
causados pela agressão russa à Ucrânia. A recente baixa da produção chinesa,
resultante de restrições vinculadas a um surto de covid-19, complicou o
cenário. Desde o começo da pandemia, os desajustes de suprimento e de produção
foram agravados pela alta de preços.
A onda inflacionária vem sendo enfrentada
em várias economias, incluídas a americana e a brasileira, com aumentos de
juros destinados a conter a demanda. Também essa política deve arrefecer o
crescimento industrial. No Brasil, o efeito tende a ser mais doloroso, porque o
mercado interno vem sendo, há mais tempo, afetado pelo desemprego e pela
redução da renda familiar. A persistência da inflação, já acima de 12% em 12
meses, torna mais difícil a recuperação da atividade. Mesmo com alguma melhora,
a maior parte das projeções indica expansão econômica abaixo de 1% neste ano. A
mediana das estimativas aponta crescimento de apenas 1% em 2023.
A crise da indústria, no Brasil, é muito
mais que um problema conjuntural. O setor mostrou pouco dinamismo na maior
parte dos últimos dez anos. Depois do tombo de 2020, ocasionado pela pandemia,
houve forte reação da atividade em muitos países. No Brasil, a indústria de
transformação produziu 4,9% mais que em 2020, mal conseguindo compensar a perda
de 4,8%, de acordo com os dados da Organização das Nações Unidas para o
Desenvolvimento Industrial (Unido). A indústria de transformação brasileira
ficou em 82.º lugar numa lista de 113 países. Se o próximo governo der alguma
atenção a esses fatos, o futuro será mais animador.
É preciso resgatar critérios técnicos no
Orçamento
O Globo
Uma das involuções mais relevantes no
Brasil de Jair Bolsonaro foi a disseminação do dispositivo orçamentário
conhecido por “emenda do relator” ou pela sigla RP9, que resultou no famigerado “orçamento secreto” operado pelas lideranças
do Congresso. Usadas pelo governo como moeda de troca com o
Legislativo, essas emendas alcançam cifras gigantescas (R$ 38,1 bilhões em 2020
e 2021, em valores corrigidos). Reportagem do GLOBO revelou que metade dos
repasses às prefeituras nesses dois anos ficou concentrada em 7,7%, ou 422, dos
5.570 municípios do país.
A escolha não foi feita com base em
critérios técnicos, privilegiando regiões e populações mais necessitadas. A
concentração dos recursos é meramente fruto dos interesses políticos de aliados
de Bolsonaro. O dinheiro tem como objetivo fortalecer os interesses paroquiais.
Tome o caso de Petrolina (PE), base
eleitoral de Fernando Bezerra Coelho (MDB), líder do governo no Senado até o
fim do ano passado. É uma das seis cidades mais ricas do estado e recebeu R$
173,6 milhões entre 2020 e 2021 (em valores atualizados até dezembro). Governada
até março pelo filho de Bezerra Coelho, foi o município que mais ganhou verbas
das emendas no período. O deputado Domingos Neto (PSD), relator do orçamento de
2020, privilegiou a pequena Tauá (CE), governada por Patrícia Aguiar, sua mãe,
com R$ 172,3 milhões. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), principal
operador do orçamento secreto, segue a mesma toada em Alagoas.
Outra inovação perversa do Congresso é o
salto na parcela das emendas individuais dos parlamentares repassada a
prefeituras sem necessidade de apresentar projeto nem de fiscalização pelo
Tribunal de Contas da União (TCU). Conhecidas como “emendas cheque em branco”
ou “Pix”, elas quase triplicaram no ano passado, alcançando R$ 1,87 bilhão (num
total de R$ 8,47 bilhões). No Orçamento de 2022, estão previstos R$ 3,28
bilhões.
É certo que parlamentos têm como uma de suas prerrogativas determinar para onde vão os gastos públicos. Também é verdade que, no Brasil, é indecente a fatia do Orçamento cujo destino já é carimbado (quase 95%). No México, o percentual é de aproximadamente 80%, e no Chile 65%, segundo estudo do Banco Mundial. Os defensores das emendas do relator partem dessa realidade, que deveria ser revisada, para justificar todo tipo de distorção. Além de basear decisões somente em cálculos políticos, apostam na falta de transparência. São naturais as suspeitas de irregularidades.
Noutros países, regras técnicas são
impostas para eleger prioridades, e recursos são destinados aos locais que mais
precisam, sem acobertar indícios de corrupção. Num país como o Brasil, onde há
escassez crônica de recursos e os impostos já são sufocantes, seria o mínimo a
exigir do Parlamento.
No caso do orçamento secreto, não basta
apenas cumprir a determinação do Supremo Tribunal Federal e revelar quem são
todos os políticos responsáveis pelas destinações. É preciso que haja
justificativas técnicas, sensatas e livres de roubalheiras. A escolha de
Bolsonaro foi clara: pagar a blindagem do seu governo com a entrega de bilhões
nas mãos de lideranças do Congresso para que possam agradar a suas bases. Os
parlamentares ganham; o Brasil perde.
No país dos absurdos, clubes de tiro
proliferam enquanto faltam escolas
O Globo
É lamentável constatar que, enquanto faltam
escolas — pelo menos 3.500 não foram concluídas por falta de verba —, os clubes
de tiro se multiplicam, alguns instalados a curta distância de estabelecimentos
de ensino. Como revelou reportagem do GLOBO, dados obtidos pelos institutos
Igarapé e Sou da Paz, com base na Lei de Acesso à Informação, mostram que, em
2021, 457 novos clubes de tiro desportivo foram abertos em território nacional,
mais de um por dia. Em relação ao ano anterior, o aumento foi de 34%.
A estatística tende a aumentar. Apenas nos
três primeiros meses de 2022 foram criados 268, quase três por dia. No Brasil,
já há 2.070 clubes e estandes de tiro, de acordo com o Exército, responsável
pela fiscalização. A questão não é só a quantidade, mas também a localização.
Em Santo Augusto, no interior do Rio Grande do Sul, a Prefeitura sancionou uma
lei proibindo clubes de tiro perto de escolas. A decisão foi motivada por um
estande situado a cerca de 200 metros de salas de aula.
Não surpreende que a atividade tenha
crescido concomitantemente ao afrouxamento da legislação. Desde que assumiu, em
2019, o presidente Jair Bolsonaro já publicou mais de 30 normas facilitando a
compra e o porte de armas e munições, além de ter dificultado o rastreamento. O
desmonte do Estatuto do Desarmamento levou a um aumento do arsenal. Reportagem
do GLOBO mostrou que o registro de novas armas de fogo por civis bateu recorde
em 2021, chegando a 204.314, o quádruplo do que havia em 2018.
O registro de Caçador, Atirador ou
Colecionador (CAC) virou febre. Até bandidos obtêm licença. Em janeiro, foram
apreendidas no Rio 65 armas compradas legalmente por um CAC. O destino era uma
facção criminosa. A fiscalização tem se mostrado inócua. Em 2020, o Exército
vistoriou 2,3% dos arsenais privados do país, ou 7.234 de 311.908 locais, entre
residências dos CACs, lojas e clubes de tiro.
O que justifica a multiplicação perigosa e
absurda dos clubes de tiro? Certamente não é o agravamento da violência, cujos
índices têm se mantido relativamente estáveis nos últimos anos, com pequenas
oscilações.
Ainda que o motivo fosse esse, não faria
sentido. O que combate a criminalidade não são ações individuais, mas políticas
públicas. Bolsonaro foi incapaz de apresentá-las ou mesmo de formulá-las em
três anos e meio de governo. Alguém acha que estará mais seguro porque tem arma
e aprendeu a atirar? Não são poucas as mortes de policiais, treinados e
experientes, fora de confrontos. Quando arma os cidadãos, o país opta por um
caminho comprovadamente perigoso, de acordo com todos os estudos acadêmicos
sérios.
Em vez de incentivar a prática de tiro e criar oportunidades a milícias particulares, o governo deveria adotar outras prioridades no combate ao crime. É verdade que os clubes de tiro, entidades privadas, podem nem ter relação com a violência. Mas uma coisa é certa: investir em boas escolas e bons professores é o melhor caminho para oferecer um futuro aos jovens tragados pela criminalidade por falta de opção.
Lucidez fardada
Folha de S. Paulo
Comandante da PM paulista delineia
fronteira óbvia entre corporação e política
Dadas as tensões políticas e institucionais
dos últimos tempos, estimuladas por Jair Bolsonaro (PL), há ocasiões em que uma
autoridade pública merece ser elogiada simplesmente por dizer o óbvio.
Nesse contexto, acerta o novo comandante da
Polícia Militar de São Paulo —maior força do gênero do país, com 83 mil
integrantes. Disse
o coronel Ronaldo Miguel Vieira à Folha:
"Estamos em um Estado democrático de Direito, temos de respeitar a opinião
de todas as pessoas e as preferências políticas. Só que política é fora de
quartel".
Ao delinear uma fronteira entre corporação
e política, a observação de Vieira não diz respeito apenas ao panorama mais
recente.
Desde que eclodiram os grandes movimentos
de policiais no pós-redemocratização, nos anos 1990, a ideia de reivindicações
e protestos vindos de pessoas com armas na mão assusta governantes e sociedade.
De 1992 para cá, 18% das intervenções das Forças Armadas a pedido de
administrações locais ocorreram devido a motins.
O Supremo Tribunal Federal enfim estendeu,
em 2017, a proibição de sindicalização e direito de greve às polícias, nos
moldes fixados pela Constituição às Forças Armadas.
Regramento claro, mas contestado com
estímulo dado por um novo tipo de político, cujo maior expoente é o atual
presidente. Bolsonaro, que sempre atuou como militar sindicalista, buscou apoiar
e instrumentalizar tais ações.
No Ceará, em 2020, o chefe da Força
Nacional de Segurança Pública, tropa encarregada de lidar com esses incidentes,
chegou a confraternizar com os amotinados. O bolsonarismo amplia, desse modo, a
estratégia intimidatória também empregada com os militares.
Até aqui, instituições e forças políticas
contiveram boa parte da ofensiva. O Congresso não deixou andar a federalização
do controle das PMs; em São Paulo, um coronel que incentivou atos
antidemocráticos foi afastado em 2021.
Permanecem espasmos, todavia, como o ataque
policial a manifestantes em Recife, no ano passado. O risco não deve ser
desprezado.
Há ainda o impacto na segurança pública.
Também em São Paulo, a bem-sucedida iniciativa de instalar câmeras corporais nos
policiais ficou sob fogo do candidato bolsonarista ao governo estadual,
Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Ele diz que elas colocam em risco a
eficácia da PM —enquanto a letalidade policial caiu 85% nos batalhões em que os
artefatos foram adotados nos sete meses finais de 2021, em comparação com o
mesmo período do ano anterior. As mortes de agentes em tiroteios seguiram uma
tendência similar.
O endosso do comandante Vieira ao programa de câmeras é, portanto, mais uma obviedade necessária.
Efeito Índia
Folha de S. Paulo
Calor extremo prejudica saúde e colheita do
trigo no 2º maior produtor mundial
A Índia teve o março mais quente desde os
primeiros registros, há 122 anos. No Paquistão, o pior em 61 anos. Mais de 1
bilhão de pessoas sofrem com a onda de calor que chegou mais cedo e com mais
impacto em 2022, local e globalmente.
Na média as temperaturas estão mais de 1ºC
acima do normal, mas em vários lugares do subcontinente os termômetros foram
além de 43ºC e alcançam picos de 47ºC. Os verões escaldantes costumam ocorrer
em maio e junho, não em março e abril, como agora.
A anomalia preocupa porque só 7% da
população indiana dispõe de condicionadores de ar, recurso comum contra a
canícula, e mesmo assim o aumento da demanda por eletricidade tem ocasionado
blecautes. Sofrem idosos e crianças; houve mais de 12 mil mortes em 660 ondas
de calor de 1978 a 2014.
Não se sabe ainda o efeito do verão precoce
sobre as monções, que chegam a partir de junho. A expectativa é de chuva em
níveis usuais ou pouco acima, embora não se descartem perturbações mais graves
da norma pela interação entre a condição La Niña (águas frias no Pacífico
Oriental) e o aquecimento incomum do Ártico.
Tampouco se pode já atribuir o calor
recordista inequivocamente à mudança do clima. Especialistas apontam o
aquecimento global como causa provável, uma vez que a predição desses fenômenos
extremos conta com confiança muito alta nos modelos climatológicos.
Além do impacto sobre a saúde no segundo
país mais populoso do planeta, suscita alarme também a quebra da safra de
trigo. A Índia é o segundo maior produtor do grão, nos dois casos depois da
China.
O governo em Nova Déli estima redução de 6%
na colheita, e há quem preveja 10%. O efeito negativo terá repercussão global,
pois a Índia vinha aumentando exportações drasticamente com a demanda forçada
pela guerra na Ucrânia, até então sexto maior exportador.
Após cinco anos em crescimento acelerado, o
trigo indiano acabou prejudicado pelo calor inusual na fase de enchimento dos
grãos. No ano fiscal encerrado em março, a Índia havia exportado um recorde de
7,85 milhões de toneladas, 275% acima do ano anterior, e a previsão era
embarcar 12 milhões.
A perda de produção, além de contribuir
para a alta da commodity no mercado global, eleva os preços para o consumidor
de um país extremamente pobre.
Calor extremo e pão caro, flagelo duplo
para legiões de indianos.
Fed poderá dar adeus a sua política contra
a inflação
Valor Econômico
As decisões de hoje na reunião do Fomc
podem ser um divisor de águas
Uma década depois de terem feito tudo para
evitar a deflação, os bancos centrais estão agora em uma enrascada, tendo
diante de si uma inflação vigorosa. A vingança inflacionária suscita a velha
reação monetária dos manuais sugerida por investidores - doses de juros cada
vez mais altas até que os índices de preços voltem a se comportar. Se esse
comportamento prevalecer na reunião de hoje do Federal Reserve americano, será
o enterro da nova estratégia do Fed sob o comando de Jerome Powell, que buscou
uma inflação consistente acima dos 2% para evitar agir preventivamente a
qualquer sinal desconfortável dos preços e deslocou o foco para os desvios do
pleno emprego como móvel da ação monetária.
O Federal Reserve pode hoje elevar o juro
em meio ponto percentual, pela primeira vez desde 2000, o que não quer dizer
muita coisa - há duas décadas os juros estão baixos e, na maior parte do tempo,
negativos. E nos EUA, com um IPC de 8,5%, muito negativos. A reação dos
investidores parece não ter mudado, após confiarem na mudança anterior de rumo
do Fed e se enganarem. Querem agora que o BC recupere o atraso no combate
inflacionário.
Powell está hoje em maus lençóis, mas
esteve boa parte do tempo na direção correta. Os EUA não teriam voltado tão
logo ao pleno emprego sem que o Fed mantivesse por longo tempo os estímulos
monetários, que agora vai retirar. Bastou a Ben Bernanke, cinco anos após a
crise monetária de 2008, apenas sinalizar que interromperia estímulos para que
os mercados tivessem “chiliques” que o obrigaram a mudar de rota. Janet Yellen
tentou fazer a mesma coisa em 2016 e recuou. Nenhum dos dois tinha pela frente
uma inflação das proporções que Powell terá de encarar, mas nenhum deles também
teve de enfrentar uma depressão resultante de uma pandemia global e uma guerra
em pleno solo europeu, que catapultou preços e reduziu a produção mundial.
Ainda que Powell possa vir a ser lembrado
como o presidente do Fed que trouxe a inflação de volta, nenhum de seus
antecessores após Alan Greenspan conseguiu cumprir a meta de inflação - Powell
tampouco, ao menos no curto prazo. Olhando em retrospecto, houve lógica nas
ações do Fed, ainda que pareça ingênua agora. Powell alinhou seus passos à
ideia de que, após tantos fracassos em chegar à meta de 2%, seria possível
continuar estimulando a economia até que a inflação a ultrapassasse. A um
período de inflação muito baixa seguiria outro, com ela acima da meta, por um
bom tempo.
O presidente do Fed nunca disse quanto
acima da meta a inflação precisaria chegar para que os estímulos cessassem, e
certamente foi surpreendido, como todos, com 8,5% do IPC e um núcleo do PCE de
6%. Da mesma forma, não explicitou qual seria o tempo adicional no qual a
inflação acima da meta seria tolerável. Houve um consenso “sem fórmulas” entre
os membros do Fed, o que parecia uma grande desconversa que justificasse
improvisos, e um sinal verde para a discricionaridade. Os mercados, habituados
há mais de uma década com uma liquidez jamais vista na história do capitalismo,
compraram o peixe do Fed na forma mal embrulhada com que foi vendido.
Muitos esqueceram essa política do Fed e já
projetam juros entre 5% e 6% para virar o jogo contra a inflação. Outras
apostas, mais moderadas, vão a 3%. Em sua ata mais recente, o Fed indicou
apropriado elevar os fed funds, com rapidez não pre-determinada, ao juro neutro
de 2,5%-3%. Não há dúvida de que um aperto maior virá, mas ele pode não ser
aquele que alguns investidores vislumbram.
Powell não estava de todo errado quando
usava o termo traiçoeiro de “provisória” para a inflação. O fim da guerra na
Europa e mudanças na política contra a covid na China vão desinchar os preços -
se ocorrerem. A desaceleração global em curso vai ajudar nesta tarefa. Mas o
mercado de trabalho americano está aquecido e em março 4,5 milhões de pessoas
deixaram o emprego - há no país 1,9 posto de trabalho disponível para cada
trabalhador desempregado. Esfriar esse mercado exigirá aperto considerável.
Mais: não se sabe com que rapidez e nem em quanto tempo o Fed considera
prudente obter êxito.
A missão, diante de uma sucessão de choques imprevisíveis é difícil. Há quem estime que se a economia americana desacelerar a 1% e 1,5% anual será possível fazer pouso suave, sem doses de juros à la Volcker. Pelo histórico de Powell, porém, ele provavelmente recuará antes de os EUA entrarem em uma recessão, se isso estiver ao seu alcance. As decisões de hoje na reunião do Fomc podem ser um divisor de águas na história recente do banco.
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