O Globo
Uma das acusações mais graves contra o
presidente Jair Bolsonaro (PL) afirma que ele comanda um governo “miliciano”.
Bolsonaro pode ser considerado odioso por diversos motivos. Seu desprezo pela
vida alheia durante a pandemia o coloca num patamar acima dos piores políticos
do mundo democrático. Mas chamá-lo de miliciano — como já fizeram Fernando Haddad (PT) e Ciro Gomes (PDT) — não é correto.
É preciso primeiro definir “milícia”. Segundo antropólogos como Alba Zaluar e Ignacio Cano, milícias são grupos armados que dominam um território para, ao mesmo tempo, “proteger” e extorquir moradores e empreendedores. São formadas em parte por funcionários públicos como bombeiros ou policiais. Com origem no jornalismo carioca, essa definição é a mais comum no Brasil. É a usada pelo jornalista e cientista social Bruno Paes Manso no premiado “A república das milícias: dos esquadrões da morte à Era Bolsonaro”.
No exterior, a definição acadêmica mais
corrente é dos cientistas políticos Sabine Carey e Neil Mitchell. Eles
consideram “milícia pró-governo” como um grupo armado, organizacionalmente
robusto, ligado aos governantes, mas sem relação oficial com o aparato estatal
de segurança pública.
Resumidamente, a definição “brasileira”
frisa os aspectos do controle territorial e da extorsão, enquanto a definição
internacional se distingue por identificar vínculos formais (ou informais) de
integrantes da milícia com representantes políticos (e não burocratas, como faz
a definição brasileira).
Nenhuma dessas acepções descreve o que Jair
Bolsonaro (PL) faz como presidente. Ambas são inúteis para entender seu
governo. Não há um grupo armado ligado formal ou informalmente ao governo
Bolsonaro, nem o presidente controla territórios e extorque moradores e
comerciantes com a ajuda de agentes armados do Estado.
O então deputado estadual Flávio Bolsonaro
(PL) foi, sim, responsável pela contratação de integrantes de milícias, como
Fabrício Queiroz e Adriano da Nóbrega, na Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro entre 2007 e 2018. Pelas denúncias, com a anuência — e entusiasmo — de
seu pai. A família Bolsonaro é acusada de ter contratado Queiroz para que ele
organizasse um esquema de apropriação de parte dos salários de seus
funcionários. Assim que o esquema foi revelado, Queiroz foi demitido.
Quando Bolsonaro foi eleito presidente, o
esquema das “rachadinhas” foi descoberto e abandonado. O elo entre ele e os
milicianos, até onde se sabe, findou. Para caracterizar seu governo como
“miliciano”, seria preciso expandir o conceito de “milícia” — até para além da
definição internacional, mais abrangente que a brasileira.
É o que fez Paes Manso em entrevista ao
site The Intercept Brasil em setembro de 2021, contrariando o conceito de
“milícia” — próximo à definição brasileira — que ele usa em seu livro sobre o
assunto. Ele afirma que “milicianismo é a ideia de que você tem instituições
democráticas frágeis, incapazes de lidar com o crime, e de que, para você levar
a ordem a esses lugares, tem de se impor pelo uso da violência”.
Com a eleição de Bolsonaro, segundo Paes
Manso, “o milicianismo ganha uma dimensão nacional”. “Uma figura e um grupo que
dizem não acreditar no Estado de Direito, na Constituição, querem reinventar
uma nova ordem a partir dos valores que eles representam, [pela] violência armada, adesão de
grupos armados que compactuam dos mesmos valores”, diz ele. “E a gente passa a
correr o risco de se transformar na República Federativa de Rio das Pedras.”
Não há evidências de que Bolsonaro tenha
instituído uma “ordem violenta” no país, com a “adesão de grupos armados que
compactuam [seus] valores”.
Embora nosso atual presidente não seja fã da Constituição, é preciso esticar
demais o conceito de “milicianismo” para afirmar que é uma prática do governo
federal. Quando conceitos são esgarçados, tornam-se inúteis para entender o
mundo. Mas podem ser úteis para campanhas políticas.
*Cientista político e professor na Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC)
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