Valor Econômico
O contraditório é parte fundamental para o
avanço da ciência e é essencial estarmos abertos ao debate
Não sei se o fato é recente ou se no
passado também era assim, mas hoje as opiniões se tornam tão rígidas e fortes
que nem as evidências objetivas são consideradas. Tudo tende a se tornar dogma,
mais similar à religião do que à ciência.
São vários os tópicos que causam discussões
inflamadas, sobre os quais opiniões rígidas são formadas. Por exemplo: o papel
da vacinação na imunização e transmissão do novo coronavírus; ações humanas
causam ou não mudanças climáticas; ações afirmativas diminuem ou não a
meritocracia; há ou não racismo na polícia; entre outras questões.
Com a crescente disponibilidade de dados, cada vez mais aumenta a possibilidade de analisarmos a realidade com diversas abordagens estatísticas e potentes computadores. Assim, podemos formar nossas visões com evidências científicas, discutidas e debatidas por um conjunto de especialistas, que sejam replicadas e periodicamente verificadas.
Há os que afirmam que os cientistas são
parte de uma elite com o mero interesse de manter o status quo. E, portanto,
não se pode acreditar no que é produzido por tais especialistas. Dentre as
diversas narrativas, a teoria antropocêntrica da mudança climática seria uma
conspiração internacional, inventada para beneficiar a China, para que a
indústria do Ocidente perdesse competitividade. Já outra afirma que a
preservação da Amazônia, com o objetivo de proteger e explorar de forma
sustentável um dos principais ativos naturais do planeta, serviria
exclusivamente aos interesses globais e não aos do Brasil.
Hoje irei discutir uma questão central
sobre a atuação da polícia nos Estados Unidos, que gerou questionamento também
a respeito de uma das principais universidades americanas. O ponto é: há ou não
viés racial na polícia americana? Abordarei dois dos principais trabalhos sobre
o assunto.
O primeiro, possivelmente o mais influente,
é um artigo de Roland Fryer. Em 2007, aos 30 anos de idade, Fryer se tornou o
mais jovem afro-americano a ser efetivado para o quadro principal de
professores da Universidade de Harvard. Tempos depois, em 2015, Fryer recebeu a
prestigiosa medalha John Bates Clark da Associação Americana de Economia, que
premia os economistas de maior grau de excelência que atuam nos Estados Unidos
com menos de 40 anos de idade.
2019 foi quando Roland Fryer publicou no
Journal of Political Economy um trabalho marcante sobre o viés racial da
polícia nos Estados Unidos. Neste artigo, Roland Fryer demonstra que existe um
forte viés da polícia americana contra os negros em diversas situações.
Mesmo considerando um conjunto de fatores
que caracterizam uma abordagem policial, os negros tem uma maior probabilidade
de serem interrogados, algemados, revistados, jogados ao chão e receberem spray
de pimenta, do que os brancos em situações semelhantes.
Me parece que tais resultados corroboram a
visão predominante sobre a atuação da polícia nos Estados Unidos e não são
controversos. No entanto, outro resultado da pesquisa do Fryer contrariou a
visão predominante. Fryer mostrou que, dada uma situação de interpelação
policial, não há viés racial da polícia americana no uso da arma de fogo. Ou
seja, em uma determinada infração, por exemplo, envolvendo um furto, a polícia
americana não atira mais em média nos negros do que nos brancos.
Há críticas em relação ao artigo do Fryer.
Uma delas é a de que sua amostra não é representativa e os boletins policiais
usados para construir a base de dados foram preenchidos pela própria polícia.
Mas a conclusão central do artigo é que há viés racial significativo da polícia
em várias situações, mas não no uso da arma de fogo.
Mesmo assim, já testemunhei pessoas
afirmando que a pesquisa do Fryer conclui que não há viés racial da polícia nos
Estados Unidos. O que claramente não é a interpretação correta dos resultados.
Em junho de 2019, Fryer foi suspenso por
dois anos pela Universidade de Harvard devido às acusações de assédio sexual
por uma ex-funcionária do laboratório do qual ele era diretor. Há quem afirme
que tal suspensão foi muito mais um “cancelamento” aos resultados da pesquisa
do Fryer, que de certa forma questionavam a visão dominante do viés racial da
polícia americana, entre outras pesquisas sobre questões raciais que
contrariavam as visões dogmáticas. É o que afirma de forma veemente Glenn
Loury, professor de economia da Universidade de Brown, em um documentário
recente, “Harvard Canceled its Best Black Professor. Why?”, produzido por Rob
Montz.
Um outro trabalho publicado em março de
2022 na American Economic Review investiga a atuação da polícia em duas cidades
dos Estados Unidos. Usando o fato de que as chamadas telefônicas de emergência
da polícia americana (911) não podem ser escolhidas por policiais em serviço,
os pesquisadores Mark Hoekstra e CarLyWill Sloan analisam 1,6 milhão de
ligações para a polícia dessas duas cidades. Eles demonstram que, controlando
para um conjunto de fatores, os latinos e negros têm uma probabilidade cinco
vezes maior de receberem tiros se o policial em ação for branco do que ser for
negro ou latino.
Os economistas mostram também que não há
uma probabilidade maior dos brancos receberem tiros se os policiais forem
negros ou latinos. De fato, a probabilidade de brancos receberem tiros
independe da raça dos policiais em ação.
O trabalho de Hoekstra e Sloan não
necessariamente contraria os resultados do Fryer, já que o desenho da pesquisa
é diferente e o conjunto de dados também. Fora que não demonstra se há ou não
discriminação racial dos policiais brancos. Pode ser que os policiais brancos
tenham percepções diferentes em relação a situações de perigo em diferentes
comunidades. Ou pode ser que as comunidades de latinos e negros recebam os
policiais de diferentes raças de forma diferente. Mas, claro, pode ser também
racismo de policiais brancos.
Sobre o tema da atuação policial, os
resultados apresentados pelas duas pesquisas são importantes, pois contribuem
para a discussão e definição de políticas públicas essenciais. E é assim que o
mundo acadêmico deve contribuir para as sociedades. Isolar as visões dogmáticas
e enfrentar a realidade como ela é. O contraditório é parte fundamental da vida
em sociedade e para o avanço da ciência, sendo essencial estarmos sempre
abertos ao debate e às controvérsias.
*Tiago Cavalcanti é professor de Economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.
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