O Globo
Convém não confundir as coisas — enquanto o
cérebro nos é dado pela biologia, é a vida que transforma esse cérebro em
mente. Há mais de 5 mil anos poetas e filósofos, sumidades religiosas e Prêmios
Nobel de Medicina tentam desvendar os mistérios dessa dualidade. Avançou-se
relativamente pouco. Embora o conhecimento científico dos atributos físicos e
do comportamento do cérebro tenha dado saltos triunfais, a composição
metafísica da mente humana continua fugidia. Isso porque ela pode ser definida
como essência, não substância. A mente reflete tudo o que o corpo inteiro
percebe e sente. Em suma, é o universo privado e subjetivo com que respondemos
a emoções, medicamentos, enzimas, poluição, genes, hormônios, percepções e tudo
o mais. Na mente de cada um também mora a consciência, que por vezes vem
acompanhada de busca do saber, coragem de ver e ouvir. E de reagir.
Esta semana foi infame para a História do Brasil, pois não reagimos.
“Eles chegaram de surpresa, só estavam as
três (uma criança de 4 anos, uma menina de 12 e uma adulta, todas da tribo
ianomâmi). O restante da comunidade estava no mato, trabalhando na roça e
caçando. Então elas estavam sozinhas, e os garimpeiros se aproveitaram...”
Assim começava o relato em rede social do presidente do Conselho Distrital de
Saúde Indígena Ianomâmi e Yek’wana (Condisi YY) , Júnior Hekurari. Teriam sido
levadas até o acampamento ilegal dos garimpeiros, onde a menina foi estuprada e
morta. A criança? Arremessada para o rio e engolida pelas águas, segundo a
denúncia. A mulher, única sobrevivente, teria conseguido nadar de volta à
tribo.
Pelos caminhos tortuosos da mente, essa
nova denúncia de crimes contra a aldeia de Aracaçá, no norte de Roraima, bateu
forte na consciência coletiva. Ricocheteou nos noticiários, fez chorar grandes
jornalistas exaustos de tanto horror nacional e recebeu dura cobrança e
opróbrio por parte da ministra Cármen Lúcia em sessão do Supremo Tribunal
Federal. Se os fatos puderem ser comprovados, algum dossiê acabará chegando a
mãos internacionais, robustecendo o caudaloso dossiê Brasil de violação de todo
tipo de direitos — humanos, ambientais, animais, sociais e raciais.
Desde a publicação do Relatório “Yanomami
Sob Ataque”, de 2015, já era sabido que aquela comunidade indígena apresentava
o maior índice (92%) de contaminação por mercúrio. Desestruturação social,
ataques a tiros com mortes de crianças, oferta de comida em troca de sexo com
meninas vinham sendo denunciados no rastro do garimpo ilegal na Terra Ianomâmi.
Os responsáveis quase sempre continuam impunes e livres, quando não são
incentivados obliquamente pelo governo. Não foi diferente desta vez. Equipes da
Polícia Federal, da Funai e do Ministério Público Federal despachadas para
Aracaçá informam não ter encontrado indícios do crime. E nós, apesar de dotados
de cérebro e mente, toleramos como sempre. Assim chegamos a 2022.
Corte a seco para uma entrevista exibida na
quarta-feira pela TV Bahia. Madalena Silva é negra e traz na pele seus 62 anos
de idade — 54 dos quais dentro de uma “casa de família”, onde era submetida a
condições análogas à escravidão. Não tinha salário, não tinha folga, não sabia
o que era ser gente. Resgatada um ano atrás por auditores do Ministério do
Trabalho, Madalena talvez pensasse estar preparada para falar do passado. Mas
não se preparou para o presente de sentar-se à mesa com uma jornalista branca,
Adriana Oliveira. Quando a repórter lhe estendeu as mãos para confraternizar,
tudo veio à tona — e com força. O que se viu foi um ser humano desumanizado,
arrancado da liberdade de ser negro. O diálogo entre essas duas mulheres é um
registro histórico do Brasil de 2022. Deixa exposta, sem filtro, a brutalidade
e crueza do racismo nacional:
—Fico com receio de pegar na sua mão branca
— diz Madalena na cena, retraindo-se em choro e medo.
— Mas por quê? Tem medo de quê? — pergunta
a repórter, com vagar e empatia.
—Porque ver a sua mão branca... eu pego e
boto a minha em cima da sua e acho feio isso — responde a entrevistada,
sacudida por emoções e temores ancestrais. Vimos uma vida negra em frangalhos.
Cenas assim não se ensaiam, elas
simplesmente explodem, e delas brota uma consciência. Em momento tão
desconcertante a jornalista encontrou o caminho da humanidade e conseguiu
abrigar a mão negra entre as suas. E o Brasil pôde sentir-se confortado,
enternecido, aliviado com o abraço final dessas duas mulheres.
Só que continuamos covardes. O mesmo Brasil que ostenta aspirações democráticas e logo mais se engalanará para as comemorações pelo Bicentenário da Independência nunca foi capaz de proclamar coletivamente — na rua e no trabalho, em casa, nas instituições, nas esferas pública e privada — que temos vergonha do racismo e não queremos mais extinguir a vida indígena. Sem essa pauta mínima de construção da sociedade brasileira, não há eleição que resolva esse horror. Questão de consciência.
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