O Globo
Vamos rumo à eleição mais tensa e histérica
do Brasil moderno, clímax de todos os erros que cometemos desde o Império
Não acredito nos argumentos viciados que
começam com uma frase irritante, a afirmar a superioridade sobre o outro: “Eu
não disse?”, diz o interlocutor infeliz que, embora em maus lençóis, ri do
fracasso de quem não previu para onde estávamos indo. O que estão querendo nos
dizer com um sorriso de satisfação, embora seja o sorriso do infeliz derrotado
e humilhado, é que o outro é um imbecil que não percebeu o valor da intervenção
feita no passado. Uma intervenção decisiva que, uma vez ouvida, nos salvaria da
merda em que hoje rolamos.
Claro que não é isso o que desejo impor
aqui. Mas não posso deixar de lembrar o que escrevi nessa mesma coluna na
segunda metade de outubro de 2018, às vésperas do segundo turno de nossa última
eleição para presidente.
“Nesses dias antes do voto decisivo”, eu
escrevia, “não quero fazer proselitismo. Já o fiz no primeiro turno e meu
candidato favorito ficou atrás dos dois que disputam essa final. Um montado na
sela de velho cavalo que já desapontou tanto o povo que o aplaudia; outro nos
assustando, a prometer o demônio armado para conter nossos desejos inocentes”.
Agora estamos no rumo da eleição mais tensa e histérica do Brasil moderno. Não é que todas as outras tenham sido mais saudáveis. Mas essa pode se tornar o clímax de todos os erros que cometemos desde o Império, quando o imperador bonachão deixava que os dois partidos, o Liberal e o Conservador, ficassem dando golpes um no outro. Ou igual à primeira eleição de Jair Bolsonaro, que se tornou presidente da República mesmo com suas ideias assustadoras (que ele aliás nunca escondeu).
Não sei como, pois o Brasil não é assim,
elegemos um cara que afirmava sem disfarce que o voto não ia mudar nada no
país, que tínhamos que fazer uma guerra civil, que era preciso fuzilar umas 30
mil pessoas, que a ditadura militar tinha errado prendendo gente em vez de
matar logo. Que seu herói pessoal, o homem de governo que mais admirava, era o
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o responsável pelas mais terríveis
torturas nos porões do regime. Nós o elegemos rindo, como se o país estivesse
acabando; mas nós não temos o direito de desistir do Brasil.
Os defensores dessas ideias foram todos
para o governo de Jair Bolsonaro, absorvendo e espalhando abertamente seus
conceitos. Gente protegida por pensadores oficiais, como Sérgio Camargo,
presidente da Fundação Palmares, um preto que dizia sempre que “a escravidão
foi benéfica para os descendentes dos afro-brasileiros”. Ou o deputado Eduardo
Bolsonaro, que se divertiu à beça com a tortura imposta à jornalista Miriam
Leitão, então grávida, declarando às gargalhadas que tinha pena da cobra com a
qual os torturadores a fizeram conviver no escuro de sua cela. Ou ainda o
próprio presidente: “Somos um dos países no mundo que mais protege o meio
ambiente”. E ainda nos advertia contra a vacina da Covid, se a tomássemos
“podíamos virar jacaré”.
Entre a Política e a Justiça, entre o desejo de uma parte da população (mesmo que eventualmente majoritária) e as regras que mantêm o país num regime de liberdade democrática (mesmo que nem sempre claras e suficientes), o que fazer? O populismo caudilhista já nos causou muitos prejuízos, agora e no passado. Não podemos aceitá-lo como uma forma de atraso civilizatório a que estamos condenados. Se precisamos mesmo de um “salvador da pátria” autocrático e cruel, é porque a nação não tem e não merece ter salvação. Só a nós mesmos cabe a resposta a esse impasse. O resto é soprar contra o vento da democracia, o único regime político que nos garante uma existência civilizada.
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