sábado, 7 de maio de 2022

João Gabriel de Lima*: Partidos que traem a própria história

O Estado de S. Paulo

Buscar apoios de ocasião por pragmatismo político pode não ser uma boa decisão

“Navegar é preciso, viver não é preciso.” A frase do italiano Francesco Petrarca, adotada como lema de vida por outro poeta, o português Fernando Pessoa, marcou um discurso histórico de Ulysses Guimarães em 1973. Na ocasião, o deputado se lançou “anticandidato” à Presidência da República em protesto contra o jogo de cartas marcadas da ditadura militar. Surgia o mito fundador do MDB, partido forjado na oposição ao autoritarismo.

Vinte anos mais tarde, os brasileiros já haviam conquistado, com muita luta, a democracia, mas sofriam com outro flagelo: a inflação. Foi quando o presidente Itamar Franco chamou Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda. Comandando um time de economistas brilhantes, Fernando Henrique colocou em marcha o Plano Real e criou o que se tornaria a marca do PSDB: congregar acadêmicos de alto nível para resolver problemas complicados do País.

São talvez os momentos mais altos das trajetórias de MDB e PSDB, siglas que tiveram também vários pontos baixos, incluindo o envolvimento em escândalos de corrupção. São, no entanto, partidos com tradição e legado. Não são siglas oportunistas criadas para apoiar governos em troca de benesses de ocasião.

Faz sentido que deputados de tais partidos abram mão de criar uma alternativa eleitoral para apoiar Jair Bolsonaro?

O Estadão lançou este questionamento num editorial publicado nesta semana, “Vendilhões da democracia”. De acordo com o texto, a proximidade com um “presidente da República que afronta as instituições, põe em dúvida o processo eleitoral e tenta envolver as Forças Armadas em devaneios golpistas” não combina com a luta do MDB contra a ditadura.

Da mesma maneira, nada mais oposto ao espírito tucano que a atitude negacionista de Bolsonaro na pandemia. Políticos do PSDB de São Paulo passaram os últimos meses enxovalhando o presidente, enquanto o governo paulista comprava vacinas e contrariava, ponto por ponto, a cartilha do governo federal.

Buscar apoios de ocasião por pragmatismo político pode não ser uma boa decisão. “Derrotas em eleições são do jogo. O pior é a derrota política, quando um partido perde seu legado e não deixa nada para a eleição seguinte”, diz o cientista político George Avelino, da Fundação Getulio Vargas, em entrevista ao minipodcast da semana.

Os brasileiros são criticados por votar em pessoas e não em partidos, o que abre caminho para aventuras populistas. A crítica é pertinente. Para conquistar o respeito dos cidadãos, no entanto, os partidos precisam, primeiro, respeitar a si próprios. Ao rasgar o passado, arriscamse a jogar o futuro no lixo. •

*Escritor, professor da Faap e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa

Nenhum comentário: