O Globo
Pouco antes da invasão à Ucrânia, com o
ambiente geopolítico já bastante tenso, setores da esquerda e da direita
sustentavam que era tudo culpa dos Estados Unidos. A tese: como líder da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), os EUA
levaram essa aliança militar a avançar sobre o Leste Europeu, como que ocupando
países que haviam estado na órbita soviética. Esse movimento ameaça a
integridade territorial da Rússia, aqui vista como a sucessora da União
Soviética.
Lula partilha essa tese, como deixou claro
na entrevista à revista Time. Para ele, o presidente da Ucrânia, Volodymyr
Zelensky, também é responsável pela guerra por não ter adiado a discussão sobre
a entrada na Otan. Ou seja, Putin é responsável pela invasão, mas... e cabe um
monte de coisa nessa adversativa, cujo fim é jogar a culpa nos EUA, na União
Europeia e em Zelensky.
Um festival de equívocos. Começa que a
Rússia não é a sucessora da União Soviética. Esta tinha uma doutrina,
partilhada por partidos comunistas de muitos países. Deu errado, é verdade, mas
o regime funcionou por quase 50 anos.
A Rússia de hoje é o quê? Uma ditadura, como na era soviética, mas sem nenhuma doutrina a não ser a reverência a Putin e o assalto ao Estado promovido por ele e por seus aliados. Putin fala nos valores da Grande Rússia, em oposição aos “valores decadentes” do Ocidente.
Os valores do Ocidente são a democracia, a
liberdade individual, a liberdade de imprensa e o capitalismo com predominância
do empreendedor privado. Não estão decadentes, como se viu com a formidável
reação ocidental à invasão e às barbaridades praticadas por Putin.
A população da Ucrânia praticou esses
valores com a eleição de Zelensky e a decisão, também tomada no voto, de entrar
na União Europeia e na Otan. Exatamente como fizeram outros países do Leste.
Não foi a aliança militar que avançou sobre o Leste. Os países que escaparam da
órbita soviética tomaram decisões soberanas de se juntar ao lado ocidental. Reparem:
a Otan não deu um tiro sequer quando caiu o Muro de Berlim. E não fez nenhuma
ameaça aos países ex-soviéticos.
Essas nações fizeram aquele movimento por
dois motivos principais. Primeiro, partilhar o progresso e o desenvolvimento
econômico e social da União Europeia. Segundo, obter a proteção da Otan
justamente contra as ameaças do imperialismo russo.
Como se vê agora, tinham razão. A Ucrânia
deu azar. Levou tempo para se livrar de uma ditadura, de modo que o governo
democrático de Zelensky não teve prazo para consolidar a aliança com o
Ocidente. Putin antecipou a invasão.
Hoje, quem está ao lado de Putin? Ditadores
já estabelecidos no poder e aspirantes a ditador, como o presidente Bolsonaro.
Por que a esquerda, se não apoia Putin, é
tão tolerante com ele, a ponto de achar que a vítima, a Ucrânia, também é
responsável pela guerra? Trata-se de uma posição infantil anti-EUA e
anti-Europa Ocidental, como se ainda fosse tempo da Guerra Fria. Cobram de
Zelensky que abra mão da União Europeia e da Otan — que derrube decisões
soberanas tomadas pela população. Cobram de Zelensky uma abertura às
negociações. Mas quem não negocia é Putin, cuja exigência é transformar a
Ucrânia em satélite russo. A resistência das tropas e da população ucranianas
mostra bem que essa não é uma opção.
Não se sabe como terminará a guerra. A
Rússia limitou suas operações, e a Ucrânia, ao contrário, reforçou sua
capacidade de resistência com armas recebidas de países da Otan. Já não se
considera impossível que as tropas ucranianas ponham as russas em retirada.
De todo modo, não se trata de uma disputa
entre capitalismo e socialismo. Nem se trata de uma guerra por petróleo. São
valores que estão em jogo. Ditaduras de um lado, democracias de outro.
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