Valor Econômico
Certezas, desejos e impossibilidades no
programa do PT
Programas de governo não têm sido levados
muito a sério na política brasileira. É verdade que houve o Plano de Metas de
JK, um amplo diagnóstico da economia brasileira acompanhado de 30 objetivos
para os mais diferentes setores - além da construção de Brasília, considerada a
“meta-síntese”. Com o tempo, porém, esses documentos foram se tornando meras
formalidades, até chegarmos ao “Projeto Fênix”, um compilado de 81 slides
“powerpoint” apresentado pelo candidato Jair Bolsonaro em 2018.
No caso do PT, porém, as propostas assumem
um outro valor, por dois motivos principais. Em primeiro lugar, pela própria
tradição do partido, que tem na academia e na intelectualidade parte de suas
raízes, estimulando desde sempre a elaboração de amplas reflexões sobre a
realidade brasileira. Por outro lado, a forte desconfiança do mercado em
relação a Lula e sua legenda cobra a apresentação de garantias e compromissos
num grau de exigência muito superior à de outros concorrentes à Presidência.
Foi assim em 2002 e não é diferente agora, 20 anos depois.
Na semana passada a coligação de sete partidos que apoiam Lula (PT, PCdoB, PV, PSB, Psol, Rede e Solidariedade) publicou as Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil (2023-2026). Ainda não é o plano de governo, mas as 34 páginas podem ser lidas como uma prévia de como será vendido um eventual terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva durante a campanha eleitoral.
A leitura dos 121 parágrafos do texto
lulista traz um sem-número de promessas para praticamente todos os segmentos
sociais e econômicos do país. Para cumpri-las são necessários dois ingredientes
escassos hoje em dia no Brasil: disponibilidade orçamentária e amplo apoio político.
Caso consiga retornar ao Palácio do
Planalto, a prioridade nº 1 de Lula será viabilizar espaço fiscal para
estimular a economia e o emprego, elementos essenciais a fim de garantir
popularidade e neutralizar a forte oposição bolsonarista. É por isso que seu
programa fala em “revogar o teto de gastos e rever o atual regime fiscal
brasileiro”.
Acontece que o teto está inscrito na
Constituição, e para extingui-lo ou modificá-lo é necessário o apoio de três
quintos do Congresso. Embora seja esperado um crescimento da bancada da
esquerda nas eleições deste ano, seu tamanho ficará bem longe do mínimo
necessário para aprovação de uma PEC. É bem provável, então, que Lula consumirá
boa parte do primeiro ano de seu novo governo barganhando a revisão do teto com
o Centrão - que virá ainda mais forte em 2023 e cada vez mais guloso depois do
orçamento secreto bilionário.
Caso as negociações com Arthur Lira, Ciro
Nogueira e companhia progridam (elas sempre progridem; o problema é o preço)
Lula conseguirá uma folga para ampliar os gastos públicos durante seu mandato.
E no documento lançado na última semana há uma lista de prioridades que
certamente serão atendidas de pronto: retomada da política de valorização real
do salário-mínimo, ampliação e reformulação do Bolsa Família e reajustes para
certas categorias do serviço público.
Resolvida (?) a questão fiscal, resta saber
com o que Lula queimará o restante da sua energia política. Seu programa fala
bastante em reforma tributária, revisão da reforma trabalhista e novo modelo
previdenciário. Se tiver que apostar em uma delas, eu ficaria com a primeira,
pois Lula sabe que mexer com a legislação trabalhista e previdenciária traria
muito desgaste e poucos ganhos.
Além do mais, já há um relativo consenso no
Congresso em torno da PEC nº 45/2019, que simplifica a tributação sobre o
consumo, e cujo idealizador é um antigo quadro do PT, o economista Bernard
Appy. Lula ainda poderia aproveitar (vejam só a ironia!) uma contribuição de
Paulo Guedes, que elaborou uma proposta de tributação sobre lucros e dividendos
que pode ser aprimorada (PL nº 2337/2021). Para deixar uma marca no seu
terceiro mandato, Lula com certeza optará pela reforma tributária.
Podemos também esperar a implementação de
outros pontos da agenda econômica do PT citados na proposta, até porque não
dependem de aprovação do Congresso. A política de preços internacionais da
Petrobras, por exemplo, é a primeira na mira do partido. A utilização dos
bancos oficiais para estimular o crédito privado e ao consumidor também é
mencionada várias vezes no documento, assim como a recuperação do papel ativo
do BNDES na reindustrialização do país. São ecos do passado de Guido Mantega
que permanecem no programa de Lula e muito provavelmente ganharão nova vida.
O documento não anuncia a intenção de
revogar a autonomia do Banco Central, mas há um trecho que causa arrepios nos
monetaristas mais ortodoxos: “reduzir a volatilidade da moeda brasileira por
meio da política cambial também é uma forma de amenizar os impactos
inflacionários de mudanças no cenário externo”. Em outras palavras, a pressão
para utilizar as reservas internacionais para forçar o câmbio para baixo poderá
ser grande a partir de janeiro. Aqui vale um lembrete: a gestão Meirelles no
Bacen fez exatamente isso, mas com o sinal trocado, nos primeiros dois mandatos
de Lula.
No quesito “reconstrução”, não há dúvida
alguma que uma nova administração petista investirá todos os seus esforços para
reestruturar entidades e políticas públicas demolidas por Bolsonaro. Cultura,
direitos humanos, meio-ambiente, saúde e programas voltados para mulheres,
negros, LGBTQIA+, quilombolas e indígenas serão contemplados por medidas que em
geral podem ser feitas por decreto e para as quais a esquerda tem experiência e
pessoal qualificado para concebê-las e implementá-las.
As diretrizes do programa Lula também falam
em reforma política, cidades inteligentes e reforma urbana, sistema único de
segurança pública, transição ecológica, revolução da inovação e outras
promessas. Para alguns desses objetivos, faltam propostas concretas. Para
outros, a competência cabe a Estados e municípios, não ao governo federal. A
maioria delas está longe de nossa realidade fiscal e política.
O papel aceita tudo, já dizia o velho dito
popular. Por isso é importante distinguir o viável e a utopia, os compromissos
factíveis e os falsos juramentos.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras).
Um comentário:
Artigo esclarecedor,muito bom.
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