segunda-feira, 27 de junho de 2022

Bruno Carazza*: O que esperar do governo Lula

Valor Econômico

Certezas, desejos e impossibilidades no programa do PT

Programas de governo não têm sido levados muito a sério na política brasileira. É verdade que houve o Plano de Metas de JK, um amplo diagnóstico da economia brasileira acompanhado de 30 objetivos para os mais diferentes setores - além da construção de Brasília, considerada a “meta-síntese”. Com o tempo, porém, esses documentos foram se tornando meras formalidades, até chegarmos ao “Projeto Fênix”, um compilado de 81 slides “powerpoint” apresentado pelo candidato Jair Bolsonaro em 2018.

No caso do PT, porém, as propostas assumem um outro valor, por dois motivos principais. Em primeiro lugar, pela própria tradição do partido, que tem na academia e na intelectualidade parte de suas raízes, estimulando desde sempre a elaboração de amplas reflexões sobre a realidade brasileira. Por outro lado, a forte desconfiança do mercado em relação a Lula e sua legenda cobra a apresentação de garantias e compromissos num grau de exigência muito superior à de outros concorrentes à Presidência. Foi assim em 2002 e não é diferente agora, 20 anos depois.

Na semana passada a coligação de sete partidos que apoiam Lula (PT, PCdoB, PV, PSB, Psol, Rede e Solidariedade) publicou as Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil (2023-2026). Ainda não é o plano de governo, mas as 34 páginas podem ser lidas como uma prévia de como será vendido um eventual terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva durante a campanha eleitoral.

A leitura dos 121 parágrafos do texto lulista traz um sem-número de promessas para praticamente todos os segmentos sociais e econômicos do país. Para cumpri-las são necessários dois ingredientes escassos hoje em dia no Brasil: disponibilidade orçamentária e amplo apoio político.

Caso consiga retornar ao Palácio do Planalto, a prioridade nº 1 de Lula será viabilizar espaço fiscal para estimular a economia e o emprego, elementos essenciais a fim de garantir popularidade e neutralizar a forte oposição bolsonarista. É por isso que seu programa fala em “revogar o teto de gastos e rever o atual regime fiscal brasileiro”.

Acontece que o teto está inscrito na Constituição, e para extingui-lo ou modificá-lo é necessário o apoio de três quintos do Congresso. Embora seja esperado um crescimento da bancada da esquerda nas eleições deste ano, seu tamanho ficará bem longe do mínimo necessário para aprovação de uma PEC. É bem provável, então, que Lula consumirá boa parte do primeiro ano de seu novo governo barganhando a revisão do teto com o Centrão - que virá ainda mais forte em 2023 e cada vez mais guloso depois do orçamento secreto bilionário.

Caso as negociações com Arthur Lira, Ciro Nogueira e companhia progridam (elas sempre progridem; o problema é o preço) Lula conseguirá uma folga para ampliar os gastos públicos durante seu mandato. E no documento lançado na última semana há uma lista de prioridades que certamente serão atendidas de pronto: retomada da política de valorização real do salário-mínimo, ampliação e reformulação do Bolsa Família e reajustes para certas categorias do serviço público.

Resolvida (?) a questão fiscal, resta saber com o que Lula queimará o restante da sua energia política. Seu programa fala bastante em reforma tributária, revisão da reforma trabalhista e novo modelo previdenciário. Se tiver que apostar em uma delas, eu ficaria com a primeira, pois Lula sabe que mexer com a legislação trabalhista e previdenciária traria muito desgaste e poucos ganhos.

Além do mais, já há um relativo consenso no Congresso em torno da PEC nº 45/2019, que simplifica a tributação sobre o consumo, e cujo idealizador é um antigo quadro do PT, o economista Bernard Appy. Lula ainda poderia aproveitar (vejam só a ironia!) uma contribuição de Paulo Guedes, que elaborou uma proposta de tributação sobre lucros e dividendos que pode ser aprimorada (PL nº 2337/2021). Para deixar uma marca no seu terceiro mandato, Lula com certeza optará pela reforma tributária.

Podemos também esperar a implementação de outros pontos da agenda econômica do PT citados na proposta, até porque não dependem de aprovação do Congresso. A política de preços internacionais da Petrobras, por exemplo, é a primeira na mira do partido. A utilização dos bancos oficiais para estimular o crédito privado e ao consumidor também é mencionada várias vezes no documento, assim como a recuperação do papel ativo do BNDES na reindustrialização do país. São ecos do passado de Guido Mantega que permanecem no programa de Lula e muito provavelmente ganharão nova vida.

O documento não anuncia a intenção de revogar a autonomia do Banco Central, mas há um trecho que causa arrepios nos monetaristas mais ortodoxos: “reduzir a volatilidade da moeda brasileira por meio da política cambial também é uma forma de amenizar os impactos inflacionários de mudanças no cenário externo”. Em outras palavras, a pressão para utilizar as reservas internacionais para forçar o câmbio para baixo poderá ser grande a partir de janeiro. Aqui vale um lembrete: a gestão Meirelles no Bacen fez exatamente isso, mas com o sinal trocado, nos primeiros dois mandatos de Lula.

No quesito “reconstrução”, não há dúvida alguma que uma nova administração petista investirá todos os seus esforços para reestruturar entidades e políticas públicas demolidas por Bolsonaro. Cultura, direitos humanos, meio-ambiente, saúde e programas voltados para mulheres, negros, LGBTQIA+, quilombolas e indígenas serão contemplados por medidas que em geral podem ser feitas por decreto e para as quais a esquerda tem experiência e pessoal qualificado para concebê-las e implementá-las.

As diretrizes do programa Lula também falam em reforma política, cidades inteligentes e reforma urbana, sistema único de segurança pública, transição ecológica, revolução da inovação e outras promessas. Para alguns desses objetivos, faltam propostas concretas. Para outros, a competência cabe a Estados e municípios, não ao governo federal. A maioria delas está longe de nossa realidade fiscal e política.

O papel aceita tudo, já dizia o velho dito popular. Por isso é importante distinguir o viável e a utopia, os compromissos factíveis e os falsos juramentos.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras).

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Artigo esclarecedor,muito bom.