O Globo
O
orçamento secreto é a razão do atentado à República em que consistiu a aprovação
da PEC Kamikaze e a explicação para a facilidade com que o ataque às regras
fiscais e à lei eleitoral avançou no Congresso.
O
fenômeno emenda do relator — fachada ao exercício do orçamento secreto — é a
chave. Não apenas achaque aos princípios da transparência e da publicidade, mas
também assalto à impessoalidade na distribuição de recursos públicos, limita à
mão de poucos o poder de exercer o poder escolhendo os pares — distinguindo
aliados, comprando aliados — que apadrinharão milhões em detrimento de outros.
Para pensar nas possibilidades de traficância que uma modalidade de gestão obscura e arbitrária do orçamento da União enseja, leia-se a reportagem de Breno Pires na Piauí. Destrinça esquema de fraude ao SUS que se alastrou por municípios do Maranhão.
É
só um exemplo de criatividade. A prefeitura informa ao Ministério da Saúde
haver prestado serviços que não prestou; forja e inflaciona a realização de
atendimentos, com o que aumenta artificialmente o teto dos dinheiros federais
que poderá receber. Esse espaço, então, é preenchido, do chão até o telhado, na
forma de emendas —via orçamento secreto —propostas por parlamentares influentes
na região ou por “usuários externos” a serviço de parlamentares influentes na
região. Os montantes não resultam em benefícios para o cidadão. Chegam e
desaparecem, ou por meio de empresas prestadoras de serviço ligadas aos
emendadores, ou em função de propina retirada sem qualquer disfarce, o político
patrono recebendo a sua “volta”.
A
coisa pode ter várias formas e ocorre também nas artérias de outros
ministérios, como o do Desenvolvimento Regional, aquele cuja Codevasf fez o
alcance da zona de influência dos rios São Francisco e Parnaíba chegar ao
Amapá. Em resumo: parlamentar indica emenda a partir de golpe no SUS, ou de
perversão da finalidade de uma autarquia, e vai pegar a sua parte — em dinheiro
ou em capital político, não raro ambos — na paróquia.
Jogo
de ganha-ganha, com muitas camadas de exercícios de poder, desde o poder
grandão de Brasília até o miúdo, na ponta. Tem laranjas e rochas. Mais grandões
que miúdos. Mais rochas que maranhãozinhos. Uma cadeia patrimonialista
perfeita. Esquema encabeçado pelos comandos do Congresso. Senão pela ciência do
que se passa, pela forma como agem. Ou já nos teremos esquecido do que revelou,
ao Estadão, o senador Marcos do Val?
Que
recebeu, em orçamento secreto, cota maior do que a que lhe caberia como ato de
gratidão de Rodrigo Pacheco por lhe haver apoiado à presidência do Senado. Como
se fosse a emenda do relator parte do Orçamento da União — de repente uma
herança — de que o vovô pode dispor como quiser, deixando mais para o netinho
que lhe cuidou num momento importante.
Prefeituras
alagoanas cujas cadeiras estão sob aliados de Arthur Lira vão entre as mais
acarinhadas em orçamento secreto —inclusive aquela tocada pelo pai desse
transformer, um trator na Câmara. Uma cadeia patrimonialista perfeita.
O
orçamento secreto, a própria materialização do contrato firmado entre governo
Bolsonaro e o consórcio parlamentar Nogueira/Lira/Costa Neto, expressa o
transtorno por meio do qual algo em essência saudável, a gestão do Orçamento
pelo Congresso, converteu-se em braço legislativo para um projeto autocrático
de poder que vem progressivamente minando, desde dentro, a própria atividade
legislativa.
A
manutenção do orçamento secreto — na forma como se executa hoje e sob os atuais
executores — é o motivo por que se impôs algo como a PEC Kamikaze. Não é apenas
Bolsonaro que se quer reeleger ao custo de endividamento, inflação e juros. Mas
o arranjo orçamentário que costura a sociedade entre Planalto e os senhores do
Congresso. A reeleição desse conjunto significaria a sustentação incontornável
das emendas do relator nas mãos correntes.
O
orçamento secreto veio para ficar. A diferença sendo que, com um presidente da
República diferente, e estando o trator Lira mui comprado de Bolsonaro, talvez
seja outro o lira a tocar as distribuições.
E
Lira quer continuar a ser o lira. Com Bolsonaro, sem riscos. Donde as camadas
de violência sobrepostas pela aprovação da PEC Kamikaze, cuja existência
decorre da necessidade de decretar um estado de emergência artificial para
violar, com segurança, a lei eleitoral. PEC para cuja aprovação o transformer
Lira aterrou o regimento da Câmara. A porteira está aberta.
Não
é apenas o conteúdo inconstitucional da emenda à Constituição, que formaliza
que o governo de turno — extinguindo qualquer paridade de armas na disputa
eleitoral — poderá despejar bilhões de reais até o fim do ano; mas também a
forma como se a produziu, com a intenção para a qual se a produziu.
A
intenção: garantir o statu quo encarnado pelo orçamento secreto; uma máquina
que dá autonomia ao Parlamento — autonomia em relação à República.
3 comentários:
Adoro quando tem sua coluna, acho-o extremamente realista em suas análises e conclusões.
Eu falo que o mundo virou uma máfia e que a Internet facilitou a vida de malandros como esse Centrão. Só falta matar para completar a bandidagem e isso não vai demorar, não
É uma bandidagem sem fim.
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