Folha de S. Paulo
Orçamento secreto aluga centrão, seduz
oposição, ainda libera e esconde o ladrão
Gilmar Mendes foi entusiasta da Lava
Jato. Dizia na Fiesp que a operação teria descoberto "modelo de
governança corrupta" e, "felizmente para o Brasil",
"estragou tudo". Os missionários de Curitiba teriam desvendado a
"cleptocracia".
Após o impeachment, Gilmar trocou de lado e
inverteu o alvo de xingamentos e liminares. A virada lhe rendeu título de
trincheira do Estado de Direito, honraria graciosa dada pela advocacia também a
Augusto Aras, outro ícone da "descriminalização da política".
Artur Lira e Rodrigo
Pacheco, presidentes da Câmara e do Senado, construíram um magistral
"modelo de governança corrupta". Dessa vez, secreto.
O segredo abre múltiplos túneis escuros de corrupção, além de reconfigurar, de modo inconstitucional, antirrepublicano e antidemocrático, a separação de Poderes, o jogo federativo e a competição eleitoral. Os adjetivos soam hiperbólicos. Mais hiperbólico é esse tatuzão.
Remodelou a relação entre Executivo e
Legislativo, entre presidente da República e presidentes das Casas do
Congresso; e também entre parlamentares e governos locais. E a possibilidade de
lucrar com isso sem prestar contas e curtir a anonimidade.
O orçamento
secreto é capítulo central da corrupção bolsonarista. Criou laço de
reciprocidade e mútua dependência entre a parcela mais venal e parasitária da
política brasileira e Jair
Bolsonaro.
Estrutura uma permuta: para evitar
impeachment, delinquir sem consequência e disputar reeleição ameaçando ignorar
as urnas, parlamentares do centrão recebem poderes como nunca para negociar
recursos pelas prefeituras do país, garantir sua reeleição e com liberdade de
colocar recurso no próprio bolso.
Reportagens impressionantes de Breno Pires,
no Estadão e na Piauí, a partir de 2021, radiografaram o mecanismo: Lira e
Pacheco, empoderados, negociam apoio com cada parlamentar e premiam os
disciplinados com quantias não sabidas.
Com esses recursos, o parlamentar pode
bater à porta, por exemplo, de prefeituras e oferecer recursos em troca de
contrapartidas. Entre as contrapartidas, às vezes, está a chamada
"volta", ou seja, o retorno de parte do dinheiro para o bolso do
parlamentar.
O último texto de Breno Pires descreveu
remessas recordes de dinheiro para municípios minúsculos do Maranhão, onde se
falsificam consultas e exames no setor de saúde. Depois do escândalo dos
tratores, das máquinas agrícolas e dos fundos de educação, é urgente aprofundar
investigação do que se passa no SUS.
O STF foi chamado a intervir nessa turbina
nuclear do clientelismo. Cobrou transparência. Suas ordens continuam ignoradas.
O Congresso simula obediência pela publicação de planilhas obscuras que não
revelam valores destinados a "usuários externos". E esses usuários
desconhecidos levam parte significativa dos recursos secretos.
Ao lado de sua postura no tema do meio
ambiente e do armamento, a passividade diante de mais essa desobediência a suas
decisões completa uma trinca de omissões retumbantes do STF. Talvez prefiram
deixar para depois das eleições. Depois das eleições, o orçamento secreto já
terá reeleito a nata da elite venal do Congresso. E poderá ter feito por
Bolsonaro, nas eleições
de 2022, ainda não sabemos o quê.
Pode-se comparar, do ponto de vista
financeiro, o volume de recursos movimentados nos últimos grandes escândalos de
corrupção. No mensalão, R$ 140 milhões. No petrolão, R$ 2,1 bilhões desviados
da Petrobras. O secretão, entre 2020 e 2022, teve R$ 53 bilhões de dotação
orçamentária, R$ 44 bilhões empenhados e R$ 28 bilhões já pagos.
Mas a comparação financeira diz pouco.
Importante analisar a função de cada um na arquitetura da corrupção. No
mensalão, parlamentares vendiam seu voto e embolsavam dinheiro. No petrolão,
desvios e propinas nos contratos da empresa geravam dinheiro para partidos da
coalizão governamental. Um "quid pro quo" rudimentar.
O secretão é plurifuncional: não apenas facilita que dinheiro incerto enriqueça
o parlamentar como lhe concede poder inédito de influenciar a microgestão do
gasto em política pública. Multiplica não só a irracionalidade mas o potencial
do roubo. O dinheiro não vai para o lugar que mais precisa, mas para onde o
parlamentar quiser.
E diante de pedidos por transparência do recurso público secreto, gritos contra
a "criminalização da política" voltaram a ressoar no Planalto.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
2 comentários:
Não falo,a era bolsonarista conseguiu piorar até o que já era ruim.
Protegendo sua fortuna, o diabo berra na tripa conhece esse ditado?
Medo porque sabe de onde veio e como veio, mas não sabe como acabara.
Alguém tem que avisa-ló que caixão não tem gaveta.
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