quarta-feira, 6 de julho de 2022

Daniel Rittner: Argentina flerta, de novo, com dolarização

Valor Econômico

Fim de moeda própria tem sido debatido por grandes empresários

O economista Simon Kuznets dizia haver quatro tipos de países no mundo: os ricos, os pobres, o Japão (que tinha tudo para ser pobre, mas ficou rico) e a Argentina (que tinha tudo para ser rica, mas virou pobre).

Apesar da crise, Buenos Aires continua linda. É a cidade latino-americana com melhor qualidade de vida, segundo a Economist Intelligence Unit. As praças estão bem cuidadas. Há fartura de espaços gratuitos e ao ar livre. O prolongamento de duas linhas de metrô facilitou a mobilidade urbana. Para quem adota os padrões brasileiros de segurança, bate até uma certa tranquilidade. Caminha-se à noite, nas principais avenidas, sem necessidade de entrar em pânico. Os pobres têm mais dignidade. Luz e gás residencial são fortemente subsidiados. A tarifa de ônibus corresponde a menos de R$ 1. Hospitais e escolas públicas funcionam (ainda) minimamente bem.

Nada disso minimiza o declínio econômico da Argentina, que chegou a ter uma das maiores rendas per capita do mundo no início do século XX. Os subsídios nas tarifas de energia consomem 2% do PIB. As contas públicas seguem descontroladas e o déficit fiscal está piorando. O dólar paralelo, chamado por todos de “blue”, vale o dobro do oficial. Quem consegue trazer divisas do exterior, por algum motivo, paga tudo pela metade do preço. Posto de outra forma: quem não tem acesso a moeda forte paga duas vezes mais. A escassez de dólares impede a normalização dos fluxos de comércio exterior e mantém o país fechado. E há a inflação, uma inflação assustadora, cuja taxa anual aumenta entre 15 e 25 pontos percentuais a cada ciclo presidencial. O mercado projeta alta superior a 70% em 2022. Negociações de reajustes salariais passaram a acontecer duas, até três vezes por ano.

Em uma típica tarde portenha de fins de junho, com céu claro e temperatura abaixo de 10° C, o presidente de uma das maiores multinacionais da Argentina me dizia em tom de lamentação, na sede da companhia: “Ninguém aguenta isso. Hoje, em todas as conversas entre empresários, só se discute sobre os prós e contras de uma possível dolarização”.

Esse alto executivo se mostra simpático à ideia e avalia ser o único caminho para estabilizar a economia depois de tantos planos fracassados. Ele lembra que atualmente, para fazer um investimento de maior porte, é preciso trazer dólares de fora. Mas, depois, as receitas geradas vêm em pesos - em ambiente de inflação acelerada e no qual há enormes dificuldades para convertê-los novamente em dólares. Resumo: melhor não se dar o trabalho do investimento.

Independentemente do balanço entre vantagens e desvantagens potenciais de uma dolarização, o espantoso é que esse debate tenha surgido em um país como a Argentina. Os vizinhos pagaram com perda de competitividade, corralito, moratória da dívida e recessão profunda a saída do regime de conversibilidade cambial vivido nos anos 1990.

Fim da indexação, queda no custo de capital, incentivos a um ajuste fiscal são alguns dos fatores positivos normalmente apontados. Perda da política monetária, menor capacidade de resposta a choques externos, encarecimento da economia como um todo são aspectos negativos. Um projeto de lei instituindo a dolarização foi apresentado em março para impulsionar o debate. Pessoas próximas ao ex-presidente Mauricio Macri já receberam propostas de economistas com esse mesmo teor. O deputado libertário Javier Milei, estrela midiática da oposição e em flerte com a extrema direita, defendeu o abandono do peso.

Além do festival de incertezas econômicas, o quadro político é de total indefinição. As eleições ocorrem em 18 meses e não dá para cravar os candidatos. Pelo kirchnerismo, sabe-se que Alberto Fernández não poderá pleitear um novo mandato. Ele está com a popularidade no chão. Cristina Kirchner detém a militância e os votos, mas sua candidatura também é inviável: ela tem piso alto (um terço do eleitorado) e teto baixo (imensa dificuldade em atingir maioria em um eventual segundo turno).

Na falta de nomes óbvios no grupo do Frente de Todos, muitos veem o corredor aberto para um novo voo do moderado Daniel Scioli, ex-governador da Província de Buenos Aires, ex- embaixador no Brasil e recém- nomeado ministro da Produção.

As últimas pesquisas indicam a coalizão oposicionista Juntos por el Cambio na preferência do eleitorado atualmente. Macri, que desde a derrota em 2019 afirmava não ter interesse em voltar à Casa Rosada, se insinua novamente. É aconselhado a não entrar em campanha por ter, como sua rival Cristina, alta rejeição e teto baixo. Horacio Larreta, prefeito de Buenos Aires completando dois mandatos, e Patricia Bullrich, ex-ministra de Segurança no governo Macri, podem disputar as primárias.

Outra dúvida é onde se encaixa Milei (La Libertad Avanza), o economista de penteado insólito que ganhou fama fazendo comentários na TV e chegou a ser mencionado como o preferido de 20% nas sondagens. Pode candidatar-se ou aliar-se ao grupo de Macri. Entre as ideias que ele prega abertamente, está o comércio legalizado de órgãos humanos.

Obrigação

A Argentina relançou sua tentativa de sediar a Copa de 2030 com Uruguai, Paraguai e Chile. Ao mesmo tempo, Bariloche se apresentou como candidata para receber a Exposição Universal de 2027. Málaga (Espanha), Minnesota (EUA), Belgrado (Sérvia) e Phuket (Tailândia) concorrem.

 

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