A dúvida estimula o discernimento e a
reflexão sobre a reação visceral, imprudente e impulsiva.
Victoria Camps, a filósofa espanhola nos
diz em seu livro Elogio da Dúvida (Edições 70, Coimbra, 2021) que duvidar como
diz Montaigne (1553-1592) é dar um passo atrás, distanciar-se de si mesmo, não
ceder à espontaneidade do primeiro impulso. É uma atitude reflexiva e prudente.
A regra do intelecto que busca a resposta mais justa em cada circunstância.
Há aqueles que têm grandes suspeitas das
virtudes da dúvida, principalmente na política, veem um divórcio entre a dúvida
e a ação que consideram tarefa própria do político. Torcem o nariz diante dela
e acreditam que ela está destinada a provocar ações sempre marcadas pela
moderação e lentidão, quando não pela paralisia total da ação.
Eles preferem a reação emocional repentina, instantânea, a resposta forte e clara, mesmo que seja grossa e grosseira. A abordagem categórica que se baseia em dizer “ao pão, pão e vinho, vinho”, mesmo quando não é (e não há) pão nem vinho.
A dúvida não significa paralisia da ação,
ela abre a possibilidade de realizar uma ação fundamentada que não elimina os
erros, algo que não é fácil neste mundo onde todos buscam certezas, mas que ajuda
a reduzi-los.
Imagino que, ao contrário, Vladimir Putin
despreza a dúvida na política e seu desejo é recuperar o espaço da Rússia
Imperial. A única linguagem que faz sentido para ele é a força, destruição e
morte. Ele declarou que a Ucrânia não existia e depois a invadiu. Mas a
realidade é teimosa, a Ucrânia tem uma história antiga e sofrida, é composta de
diversos povos, de diversas línguas, passou por grandezas e tristezas. Kiev que
foi o berço da Rússia, a que mais tarde foi submetida, mas acabou por optar por
ser, no final do século XX, voluntariamente um Estado-Nação. Uma estrutura
democrática foi estabelecida e, contra todas as probabilidades, resisti ao que
deveria ter sido uma ocupação relâmpago. O que os une, o que lhes deu essa
tremenda força? Claro, sua longa existência histórica.
A Ucrânia é uma democracia perfeita ou
mesmo bem-sucedida? Não! Basta ver seus números, tem muitos problemas e
iniquidades, mas estão unidos pelo desejo de liberdade e democracia.
Vejamos o debate (ou seria a ausência
dele?) até agora sobre o bicentenário do Brasil. Praticamente ele se encontra
com pouquíssimo espaço para o pluralismo, substitui a dúvida por convicções
identitárias e ideológicas que se apegam a um único eixo discursivo de acordo
com a conveniência. O evento envolvendo a Medalha Biblioteca Nacional - Ordem
do Mérito do Livro, em alusão ao Bicentenário da Independência do Brasil
(1822-2022), constituiu, lamentavelmente, mais um triste episódio.
Ler a história do Brasil de forma tendenciosa,
onde apenas dominação, abuso e humilhação parecem ter existido é negar o que de
melhor a historiografia produziu. É claro que isso, dolorosamente, existiu e
está nela, mas também nesses duzentos anos foi criado um tecido social
extremamente complexo e mestiço. De tudo isso, surgiu uma poderosa
miscigenação, que moldou o nosso Estado-Nação com um valioso poder sincrético
cultural.
Tivemos a vantagem histórica da emancipação
numa "revolução sem revolução" no rico conceito de Gramsci
(1891-1937) e da criação de um Estado laico, em que, embora subsistisse o
patrimonialismo, ao mesmo tempo e de forma sobreposta, as ideias do Iluminismo e
da Ilustração tiveram seu reconhecimento.
Os povos originários graças a eles e aos
intelectuais se juntaram a eles como o Marechal Rondon (1865-1958), Darcy Ribeiro
(1922-1997) e tantos outros persistem no Brasil, aliás, com seus direitos, suas
línguas, seus costumes, seu valor cultural e seus próprios espaços de
desenvolvimento que seguem sendo reconhecidos. Mas o processo de miscigenação
foi enorme, foi reforçado pela migração de várias latitudes planetárias nos
séculos XIX e XX, e continua sendo reforçado pela migração ibero-americana e de
outras paragens no século XXI. Não há cidades puras no Brasil. Ninguém pode
reivindicar pureza em nosso país.
Então temos algumas dúvidas, mas não devemos
ter, porém, sobre a existência de multiculturalismo e multietnicidade neste
país mestiço.
Não estamos no caminho certo, é preciso
duvidar, refletir e dar espaço aos interesses gerais democráticos para termos
um caminho que nos ajude a conviver e reforce aquele “nós” que Ernest Renan (1823–1892)
exigiu de uma Nação, e que Norbert Elias (1897-1990) reconfigurou, pois como
nos mostrou Pascal (1623-1662), antecipando Dostoievski (1821-1881), não
devemos apostar a nossa integridade a roleta que aí está.
*Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
Nenhum comentário:
Postar um comentário