Editoriais
A PEC que estraçalha a Constituição
O Estado de S. Paulo
Ninguém tem o poder de destruir a Carta ou desvirtuar o regime democrático, como Bolsonaro tenta fazer por meio da PEC do Desespero. Oposição e Judiciário têm o dever de reagir
O Congresso dispõe do chamado poder
constituinte derivado, que é a competência dada pela Assembleia Constituinte –
titular do poder constituinte originário – para alterar o texto constitucional.
É a própria Constituição prevendo a possibilidade de sofrer alterações, para
que não fique desajustada à realidade social. Ou seja, as emendas
constitucionais têm a finalidade de proteger a efetividade da Constituição ao
longo do tempo.
O governo de Jair Bolsonaro, com a
conivência do Senado, inverteu inteiramente essa dinâmica. A Proposta de Emenda
à Constituição (PEC) 1/2022, a “PEC do Desespero”, é uma violência contra a
Constituição e o Estado Democrático de Direito.
A “PEC do Desespero” – assim chamada porque se destina a permitir que o presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição, compre votos para tentar reverter seu mau desempenho nas pesquisas – altera as regras do jogo eleitoral às vésperas das eleições. Para evitar mudanças abruptas desse tipo, a Constituição de 1988 estabeleceu o princípio da anualidade. “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, diz o art. 16. Segundo jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF), as emendas constitucionais também têm de respeitar o princípio da anualidade.
Ainda que não altere formalmente o processo
eleitoral, a PEC 1/2022 afeta diretamente as limitações vigentes relativas ao
processo eleitoral. Uma ação estatal que até agora sempre foi proibida – a
criação de benefício social em ano de eleições – passará a ser subitamente
autorizada com a aprovação da “PEC do Desespero”. E, além do mais, essa
interferência nas eleições não é um aspecto secundário, mas a finalidade
central da PEC 1/2022. Isso não é segredo para ninguém.
A PEC 1/2022 não é apenas rigorosamente
antidemocrática, mas explicitamente antijurídica. Na manobra forjada pelo
governo Jair Bolsonaro, nada é sutil. O deboche com a ordem jurídica é
escancarado. O governo que passou os últimos dois anos negando a gravidade da
pandemia quer decretar agora um inexistente “estado de emergência” porque é um
atalho malandro para burlar as limitações fiscais e eleitorais.
É patente que os requisitos legais para
decretar a medida emergencial não estão preenchidos. O próprio governo sabe
disso – tanto sabe que patrocinou a excrescência, tal como consta na PEC
1/2022, de criar um dispositivo constitucional dizendo que, até o fim de 2022,
vigorará o estado de emergência no País.
Nunca foi necessário emenda constitucional
para instituir ou extinguir estado de emergência. Por exemplo, o governo
federal, ao decretar em maio o fim do estado de emergência causado pela
pandemia de covid, não precisou mexer em nenhum texto constitucional. Bastou
editar um decreto. Quando Bolsonaro almeja que o estado de emergência seja
instituído por meio de PEC, ele está reconhecendo que se trata de uma ficção
eleitoreira, sem base na lei. No caso, a via constitucional é mero recurso para
evitar questionamentos na Justiça. Ou seja, altera-se a Constituição não para
assegurar sua vitalidade, mas para minar sua capacidade de proteção da
República, transformando-a em instrumento de abuso: permitir que Jair Bolsonaro
viole impunemente as regras fiscais e eleitorais, uma vez que o Judiciário
estaria supostamente de mãos atadas.
Os políticos comprometidos com o regime
democrático não podem ser coniventes com tal violência contra a Constituição.
Também o Judiciário deve estar vigilante, já que o poder constituinte derivado
não é absoluto. Na tramitação de uma PEC, o Congresso está submetido a normas
que o STF tem a missão de defender. Afinal, a Constituição de 1988, a despeito
das aparências, ainda está em vigor – e vale mais do que a manobra ilegal e
autoritária de um governante desesperado em manter-se no poder.
A compreensível alienação eleitoral
O Estado de S. Paulo
Estudo mostra crescente desinteresse em votar, como reflexo da incapacidade dos políticos de representar os eleitores
Um estudo realizado pelo Instituto
Votorantim e publicado em reportagem do Estadão mostra o crescente
desinteresse do brasileiro por participar de forma ativa das eleições. A
quantidade de pessoas que deixaram de votar subiu de 18% em 2006 para 25% em
2018. O fenômeno, classificado como “alienação eleitoral”, inclui tanto aqueles
que se abstiveram, chamado de alienação passiva, quanto os que optaram pelo
voto branco ou nulo, classificado como alienação ativa. O movimento cresce de
modo gradual e sustentado há anos, principalmente nas regiões metropolitanas
das maiores cidades brasileiras.
Se o voto branco e nulo muitas vezes
representa a insatisfação diante das opções disponíveis, a omissão eleitoral
pode ser lida como uma expressão da desesperança completa. Ambas, com suas
diferenças, explicitam que uma boa parte da população não vê valor em seu voto
– e o fato de que os jovens estão entre os que mais optam pelo branco e nulo
deveria ser motivo de reflexão por parte dos dirigentes partidários.
O declínio da participação política pode
até ter alcance mundial, mas, no caso brasileiro, devem ser agregadas, também,
razões profundamente locais. A fragmentação política, traduzida pela existência
de 32 legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), não contribui
em nada para que os cidadãos se sintam representados. E a decepção com os
recorrentes escândalos de corrupção decerto tem impacto na decisão de
comparecimento às urnas.
Razões que levam a uma crescente
indiferença da sociedade em relação à política não param de surgir. O maior e
mais recente símbolo do divórcio entre o interesse público e o eleitoral foi o
apoio quase unânime do Senado a uma Proposta de Emenda Constituição (PEC) que
limou todos os limites fiscais, legais, constitucionais e, sobretudo, morais,
usando os mais pobres como pretexto para conferir uma competitividade mínima à
candidatura do presidente Jair Bolsonaro à reeleição.
Quando o governo, a oposição e até a dita
terceira via se unem a favor do descalabro e da desfaçatez, aumentar o
engajamento político pode se tornar uma meta impossível. Uma participação mais
ativa, no entanto, é a única solução para resgatar um grau mínimo de
representatividade nas instâncias federais, estaduais e municipais.
Apesar desse cenário desalentador, é digno
de nota que o índice brasileiro de comparecimento nas urnas, em torno de 75%, é
alto quando comparado a outros países latino-americanos. No Chile, a taxa foi
de 50% em 2018, enquanto Costa Rica e México atingiram 65% no período. É
verdade que no Brasil o voto é obrigatório, mas, na prática, os eleitores que
escolhem não votar podem fazê-lo sem maiores problemas – a multa é irrisória e
a regularização se faz pela internet.
Ou seja, a despeito da crescente alienação,
o brasileiro ainda vai em massa às urnas. Resta à classe política fazer jus a
esse voto – do contrário, os mandatos recebidos nas eleições terão cada vez
menos representatividade, o que é fatal para a democracia.
Os inimigos da razão
O Estado de S. Paulo
Infame homenagem da Biblioteca Nacional ao deputado Daniel Silveira, notório por seu analfabetismo cívico, é a mais recente ofensiva da guerra bolsonarista à inteligência
A entrega da medalha da Ordem do Mérito do
Livro, pela Biblioteca Nacional, ao deputado federal bolsonarista Daniel
Silveira (PTB-RJ), no último dia 1.º de julho, ultrapassou todos os limites do
deboche. O que poderia ser entendido como mais uma demonstração da corriqueira
irreverência do governo do presidente Jair Bolsonaro em relação à cultura e às
instituições, é na verdade bem mais que isso: a condecoração de Silveira com
uma das mais altas honrarias culturais do País reveste-se de perigoso
simbolismo que nada tem de banal.
Desde a posse do presidente, em 1.º de
janeiro de 2019, o grupo que chegou ao poder já deu sucessivas demonstrações de
que trava uma guerra contra a razão. Não que haja surpresa nisso: governos com
tendências autoritárias costumam se contrapor à racionalidade e ao pensamento
livre. Cultuam uma espécie de anti-intelectualismo que vê as artes, o uso da
inteligência e qualquer espécie de crítica como ameaças, avessos que são ao
contraditório e ao exercício da liberdade, exceto a própria.
Sob Bolsonaro, a área da cultura virou
vitrine de batalhas ideológicas em que o imperativo parece ser o de desfazer
boa parte do que o País levou décadas para construir − e que contribuiu para a
pujança, a criatividade e a diversidade da cultura nacional. Nos últimos três
anos e meio, a sociedade brasileira, boquiaberta, já viu de tudo: até discurso
inspirado em Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Adolf Hitler na
Alemanha nazista, proferido pelo então secretário especial da Cultura, Roberto
Alvim, em 2020. Enquanto isso, artistas consagrados eram tratados com
desrespeito e a Lei Rouanet, mecanismo concebido para fomentar o
desenvolvimento cultural, demonizada.
É nesse contexto de ataque à cultura que a
condecoração do deputado Silveira causa redobrada indignação. Como se sabe, o
parlamentar bolsonarista foi condenado em abril a 8 anos e 9 meses de prisão
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após ter defendido o fechamento da Corte e
incitado agressões a ministros. Silveira só deixou de cumprir a pena graças a
um inusitado indulto concedido pelo presidente Jair Bolsonaro no dia seguinte
ao julgamento − indulto esse que, cabe lembrar, não o inocenta das graves
acusações que levaram à sua condenação.
Pior: o parlamentar ganhou notoriedade bem
antes dos ataques ao STF. Na campanha eleitoral de 2018, ele saiu do anonimato
para a ribalta bolsonarista ao quebrar uma placa em homenagem à vereadora
Marielle Franco (PSOL), assassinada a tiros na cidade do Rio de Janeiro meses
antes.
A Ordem do Mérito do Livro foi entregue na
sede da Biblioteca Nacional, uma prestigiada instituição cuja origem é anterior
à Independência do Brasil. A distinção, é bom lembrar, reconhece a contribuição
de escritores, intelectuais e personalidades à literatura brasileira e à própria
Biblioteca Nacional. Tal homenagem já foi concedida a nomes como o poeta Carlos
Drummond de Andrade, o sociólogo Gilberto Freyre e o arquiteto Oscar Niemeyer.
Por uma infeliz coincidência, Silveira, um orgulhoso analfabeto cívico, foi
condecorado no ano do Bicentenário da Independência do Brasil.
Por óbvio, houve reações. O escritor e
poeta Marco Lucchesi, que também seria contemplado, recusou-se a receber a
honraria. “Se eu aceitasse a medalha seria referendar Bolsonaro”, disse
Lucchesi. E completou: “Agradeço, mas não posso aceitar”. Na mesma linha, os
netos de Drummond, Pedro e Maurício Drummond, divulgaram carta classificando
como “verdadeiro deboche” o reconhecimento conferido a Silveira. Ambos
afirmaram que, na época em que o avô ganhou a medalha, as autoridades “não nos
envergonhavam e não nos apequenavam como nação”.
Essas críticas, ao contrário de constranger Bolsonaro e seus fanáticos seguidores, provavelmente serão recebidas como elogios por essa horda bárbara que tomou o poder. Afinal, ao bolsonarismo interessa representar o exato oposto da civilização e da razão. Não por acaso, o presidente, em recente live nas redes sociais, disse que, se o petista Lula da Silva vencer a eleição, “clube de tiro vai virar biblioteca”. Que perigo!
Espantalho argentino
Folha de S. Paulo
Turbulência política e econômica se acentua
no governo do esquerdista Fernández
"Dólar paralelo" é uma aberração
da qual só os brasileiros de mais idade —ou os que operam à margem da lei—
devem se lembrar. Trata-se do resultado de restrições e cotações artificiais
impostas pelo governo no mercado de câmbio, que forçam cidadãos que necessitam
da moeda americana a buscá-la por meios clandestinos.
Transações paralelas em dólares ainda fazem
parte do cotidiano na Argentina, o que dá ideia da desordem crônica da economia
do país vizinho. E nelas o preço da divisa dos Estados Unidos disparou nesta
semana, sinal do agravamento de uma crise que abala a Casa Rosada.
No sábado (2), Martín Guzmán, tido como um
moderado no governo do esquerdista Alberto Fernández, renunciou ao
Ministério da Economia. Era alvo de ataques da ala mais
radical, liderada pela
vice-presidente, Cristina Kirchner.
Chega a ser difícil fazer tais distinções
ideológicas num país em que a inflação atingiu assustadores 60% nos últimos 12
meses —o quíntuplo da já elevada taxa do Brasil.
Guzmán não caiu devido à leniência com os
preços, tanto que sua substituta, Silvina Batakis,
é uma heterodoxa defensora da expansão de gastos públicos. O ex-ministro foi o
articulador de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para a
renegociação da dívida argentina, em troca de medidas de ajuste orçamentário.
Cristina Kirchner, que governou o país por
oito anos, até o final de 2015, viveu momentos de bonança e, ao final, de
deterioração econômica. Quanto à inflação, sua gestão ficou vergonhosamente
celebrizada pela manipulação de índices, a ponto de as estatísticas oficiais
terem sido desacreditadas.
A Argentina não dispõe de uma moeda digna
da confiança de sua população, muito menos da comunidade internacional —daí a
corrida permanente pelo dólar, da qual o próprio governo participa.
Numa versão agravada de mazelas
brasileiras, não reúne consenso político para abandonar políticas populistas de
intervenção estatal que desorganizam a economia e exaurem as contas públicas.
Num momento em que forças de esquerda
voltam a ganhar protagonismo na América Latina, o país vizinho se candidata ao
posto de novo espantalho a ser apresentado aos eleitores da região.
O governo Fernández já foi derrotado no
pleito legislativo de novembro do ano passado, tendo perdido o
controle do Senado, e deve enfrentar uma disputa presidencial duríssima em
2023.
Muitos dos problemas do país vêm de longa
data e também afligiram a administração anterior, do liberal Mauricio Macri. O
risco de que se radicalizem daqui em diante parece cada vez maior, como mostra
a escalada do dólar paralelo.
Ensino arejado
Folha de S. Paulo
Datafolha mostra que maioria dos
brasileiros é liberal quanto a conteúdo em aula
A nova pesquisa
Datafolha sobre a educação escolar de crianças e adolescentes traz
uma lufada de bom senso num tema que, nos últimos tempos, tem sido contaminado
por querelas ideológicas completamente alheias às reais necessidades do ensino
do país.
Coordenada pelas organizações Cenpec e Ação
Educativa, a sondagem mostra que os brasileiros não compactuam, em sua maioria,
com a agenda conservadora defendida por grupos religiosos e encampada pelo
governo Jair Bolsonaro (PL).
Exemplo disso pode ser visto nas opiniões
referentes à orientação sexual e identidade de gênero, que o bolsonarismo quer
coibir em nome do combate a uma fantasmagórica "ideologia de gênero".
De acordo com o levantamento, 73% concordam
que a educação sexual seja abordada no ambiente escolar e 81% defendem que os
estabelecimentos de ensino promovam o direito das pessoas a viverem sua
sexualidade.
Predomina entre especialistas o
entendimento de que isso não induz ao sexo precoce nem constitui apologia da
homossexualidade, à diferença do que pregam conservadores mais estridentes.
Em realidade, tal ensino colabora, e nisso
concordam mais de 90% dos brasileiros, para a prevenção da gravidez na
adolescência e o combate ao abuso infantil.
É escasso o apoio à bandeira do ensino
domiciliar, tema que o governo trata como prioritário. Nada menos que 78%
discordam de que pais tenham o direito de tirar os filhos da escola e
ensiná-los em casa.
Uma proibição intransigente decerto seria
exagero, mas essa parcela da população acaba por endossar a importância do
professor no processo pedagógico e da interação com colegas e docentes no
desenvolvimento dos estudantes.
As opiniões se mostram mais divididas
quanto a falar de política em sala de aula. Para 56%, os professores deveriam
evitar o tema, embora mais de 90% defendam que se discuta pobreza, desigualdade
social e discriminação racial.
Se a preocupação com o proselitismo
político é legítima, sejam quais forem as preferências manifestadas, a correção
de eventuais excessos por meio da censura é equívoco ainda mais grave.
O caminho para melhorar o ensino brasileiro
passa não pela luta ideológica, como quer fazer crer o bolsonarismo, mas pelo
enfrentamento de problemas concretos —a exemplo da evasão escolar e da má
formação do professorado.
Câmara tem dever de conter danos da PEC
Eleitoral
O Globo
Kamikaze, eleitoral, dos combustíveis, das
bondades, do desespero... não há consenso sobre que nome dar à Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) 1/2022, aprovada no Senado para criar um
estapafúrdio estado de emergência que permita distribuir benesses a
caminhoneiros, taxistas e aumentar o valor do programa de transferência de
renda Auxílio Brasil a poucos meses das eleições. Independentemente do nome da
PEC, um fato é certo: ela é uma excrescência cujo único objetivo é driblar a
lei eleitoral, jogando no lixo as regras fiscais e de controle de gastos.
Invertendo os papéis geralmente associados
às duas Casas do Congresso, a Câmara tem nesta semana a chance de conter os
danos. Alguém em Brasília precisa recobrar a sensatez. O ideal é derrubar a
PEC. Se não for possível, que sejam feitas todas as mudanças necessárias para
reduzir os estragos aprovados no Senado.
Por caminhar nessa direção, era bem-vinda a
proposta do relator, deputado Danilo Forte (União-CE), de retirar do texto da
PEC a decretação do estado de emergência. O fato de Forte ter sido pressionado
a abandoná-la não muda a realidade. O estado de emergência descrito na PEC é
tão somente uma farsa. A guerra na Ucrânia transcorre há mais de quatro meses.
A taxa de desemprego está em queda. A inflação caiu entre março e maio. Por que
falar em emergência apenas agora? O motivo é a tentativa de blindar o
presidente Jair Bolsonaro de punições por descumprir a lei eleitoral criando
benefícios em ano de eleições. Um motivo torpe, que não justifica o absurdo.
A base governista quer acelerar a aprovação
sem mudanças para que as medidas entrem logo em vigor, ainda a tempo de cumprir
o único objetivo: alavancar a popularidade de Bolsonaro antes da eleição de
outubro. Eventuais modificações na Câmara poderiam levar a nova votação no
Senado, atrasando o primeiro pagamento das benesses e o aumento no Auxílio
Brasil para agosto, a um custo alto para a campanha bolsonarista.
Na tentativa de passar o trator na Câmara,
como fez no Senado, os governistas demonstram uma responsabilidade fiscal
seletiva. Afirmam que a proposta dos deputados para incluir os motoristas de
aplicativos entre os beneficiados promoveria um estrago fiscal grande demais,
como se os mais de R$ 40 bilhões já aprovados não fossem motivo de preocupação.
Na verdade, o “vale-Uber” é uma ideia tão descabida quanto o “Pix caminhoneiro”
ou o auxílio para taxistas. Não passam de maneira nada sofisticada de pôr em marcha
a conhecida estratégia de comprar votos.
Fica cada vez mais clara a necessidade de a
Câmara analisar todos os pontos sem açodamento, pelo tempo que for necessário.
Nenhuma mudança na Constituição deve ser feita a toque de caixa. A PEC 1/2022,
que terá efeito sobre uma campanha eleitoral, merece reflexão serena e bom
senso.
É certo que o combate à fome e à pobreza
enseja programas sociais mais robustos. Mas a Câmara não pode ser conivente com
quem quer escapar das leis e levar o país à ruína fiscal. O Brasil pode não
saber que nome dar à PEC, mas saberá muito bem o nome de todos os congressistas
que resistiram a esse casuísmo descabido, que certamente ficará marcado como um
dos maiores absurdos na história do Congresso.
É um descalabro desperdiçar vacinas, testes
e remédios numa crise sanitária
O Globo
Inépcia custa caro. É o que se depreende da
análise feita no Ministério da Saúde pela Controladoria-Geral da União (GGU)
mostrando que a pasta perdeu, somente no primeiro semestre deste ano, R$ 104
milhões em medicamentos, testes e vacinas cuja validade expirou. Considerado o
período entre outubro de 2016 e junho de 2021, o desperdício chega a R$ 230
milhões. Dinheiro do contribuinte literalmente jogado no lixo em meio a uma
crise fiscal e a uma emergência sanitária sem precedentes.
Nas lixeiras do Ministério da Saúde foram
jogados 800 mil kits de insulina, 500 mil doses de vacinas contra hepatite B,
200 mil contra varicela, 87 mil da tetraviral (sarampo, caxumba, rubéola e
varicela) e 245 mil frascos de BCG (proteção contra a tuberculose em falta em
alguns estados). Um absurdo num país que precisa urgentemente melhorar seus
índices de vacinação para impedir a volta de doenças erradicadas ou
relativamente sob controle graças à vacinação em massa. Não adianta dizer que
as vacinas encalharam porque os cidadãos não compareceram aos postos de saúde.
Que as doses fossem até onde eram necessárias.
Num roteiro que mistura incompetência, negligência
e falta de vergonha, os testes de vírus respiratórios são um capítulo à parte.
O relatório constatou que o Ministério da Saúde deixou vencer cerca de 1,1
milhão de testes RT-PCR para diagnóstico de Covid-19 e influenza, doenças em
ascensão no Brasil. Segundo a CGU, o ministério não geriu adequadamente seus
estoques de testes, e o prejuízo chegou a R$ 37,3 milhões. Faltando poucos dias
para o vencimento, testes foram enviados à Universidade de São Paulo (USP) para
ser usados em pesquisas. Não era a finalidade da compra.
Ao longo da pandemia, o Brasil ficou
célebre pela baixa testagem, na contramão do recomendado para deter o contágio.
Vê-se agora que a situação é ainda pior. Além de oferecer poucos testes à
população, o país desperdiça o pouco que tem. Enquanto isso, muitos recorrem a
farmácias e laboratórios privados, pagando do próprio bolso para saber se estão
infectados.
Convém esvaziar logo as lixeiras, porque
novos lotes podem estar a caminho. No mês passado, o Tribunal de Contas da
União (TCU) fez um alerta ao Ministério da Saúde sobre o risco de jogar fora 28
milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 que vencem entre julho e agosto —
custaram R$ 1,2 bilhão. Espera-se que o governo corra para evitar o
desperdício. Seria um despropósito descartar vacinas contra o coronavírus num
país que já perdeu quase 700 mil vidas para a doença.
Pelo visto, o problema não se resume ao
desleixo com os estoques. O relatório da CGU detectou distorções contábeis de
R$ 20 bilhões no fluxo de caixa do Ministério da Saúde em 2021 e pelo menos 38
situações que representam falhas de controle. Ao comentar as conclusões, o
Ministério da Saúde informou que avaliará os apontamentos e, se constatadas
inconformidades, serão corrigidas. É o que se espera. Mas os problemas vão
muito além de “inconformidades”. São um descalabro.
A piora do risco fiscal e um 2023 com mais
inflação
Valor Econômico
O resultado é mais inflação e menos
crescimento, com impacto negativo sobre o emprego e a renda
Os cortes de impostos e aumentos de gastos
promovidos pelo governo e pelo Congresso nas últimas semanas têm agravado a
percepção sobre o risco fiscal do país. Com o objetivo de tentar melhorar a
todo custo a popularidade do presidente Jair Bolsonaro, a menos de 100 dias das
eleições presidenciais de outubro, o Executivo e o Legislativo patrocinam
cortes de tributos e elevação de despesas públicas sem a menor cerimônia.
Recorrer a Propostas de Emendas à Constituição (PECs) para resolver problemas
orçamentários de curto prazo se tornou um expediente comum, especialmente para
driblar o teto de gastos.
No curto prazo, esse conjunto de medidas
tende a reduzir um pouco a inflação e dar algum fôlego extra ao consumo das
famílias. O vale tudo para tentar reeleger Bolsonaro, porém, piora a avaliação
sobre as contas públicas, como fica claro no comportamento do câmbio e dos
juros de longo prazo. Já aprovada pelo Senado e em vias de passar na Câmara dos
Deputados, a PEC eleitoral, que eleva o Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600,
dobra o vale-gás, institui uma bolsa caminhoneiro de R$ 1 mil por mês e cria um
auxílio a taxistas, terá um custo de R$ 41,25 bilhões, montante que ficará fora
do teto de gastos. É mais um golpe na credibilidade já arranhada do mecanismo
que limita o crescimento das despesas não financeiras da União à inflação do
ano anterior.
Além disso, à custa de baixar os índices de
preços e estimular a atividade no segundo semestre, o que se constata é um
ambiente mais complicado para 2023. Para o ano que vem, o cenário que se
desenha é de mais inflação, mais juros e menos crescimento. O Bradesco, por
exemplo, revisou na sexta-feira as suas projeções econômicas para este ano e
para o ano que vem. O crescimento projetado para 2022 subiu de 1,5% para 1,8%,
num quadro em que a economia tem mostrado mais força do que se previa, com a recuperação
mais firme da ocupação no mercado de trabalho. Para 2023, porém, o banco
reduziu a estimativa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 0,3% para
zero.
As desonerações tributárias, como a
imposição de um teto para a alíquota do ICMS que Estados podem cobrar de itens
como energia elétrica e combustíveis, devem baixar a inflação deste ano de 9%
para 7,5%, estima o Bradesco. Para 2023, a revisão foi no sentido contrário,
com a projeção para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)
subindo de 4,1% para 4,9%, bem acima da meta de 3,25%. “A inflação de serviços
- cuja inércia é mais elevada - está em aceleração e a dinâmica do mercado de
trabalho não mostra arrefecimento no curto prazo. Por fim, os impostos federais
sobre gasolina e etanol devem retornar em janeiro do próximo ano, adicionando
mais alguns pontos na inflação”, resume o relatório dos economistas do
Bradesco.
Nesse quadro, o Brasil terá que conviver
com juros mais altos por mais tempo. O banco elevou a previsão da Selic para o
fim de 2022 de 13,25% para 13,75% ao ano, aumentando a do fim de 2023 de 10,5%
para 11,75%. Com isso, o juro básico real (descontada a inflação) deverá ficar
em 4,55% neste ano e pular para 7,75% no ano que vem, uma taxa elevadíssima.
As medidas de estímulo à economia vão
exigir uma política monetária mais apertada por parte do Banco Central (BC), o
que terá custos em termos de atividade econômica e em termos fiscais. As
despesas financeiras do governo vão subir, piorando a trajetória do
endividamento público, que se beneficia temporariamente do efeito da inflação
elevada e das commodities caras.
Os cortes de impostos têm sido feitos
considerando como permanentes um aumento de arrecadação impulsionado
especialmente pela alta da inflação e pelos preços elevados de commodities,
fenômenos obviamente transitórios. As elevações das transferências de renda,
por sua vez, driblam as restrições impostas pelo teto de gastos e pela
legislação eleitoral. Não há pudores em criar despesas que superam R$ 40
bilhões em poucos meses, usando um mecanismo que deveria seguir prazos e
procedimentos muito mais rigorosos, como é o caso das Propostas de Emenda à
Constituição.
Esse desrespeito continuado às instituições
fiscais piora a percepção sobre a trajetória futura das contas públicas, o que
tende a se traduzir em juros estruturalmente mais elevados e num câmbio mais
desvalorizado. O resultado num prazo mais longo é mais inflação e menos
crescimento, com impacto negativo sobre o emprego e a renda.
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